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A Infância sequestrada pelos algoritmos

  • Foto do escritor: Rey Aragon
    Rey Aragon
  • há 2 minutos
  • 20 min de leitura

Como a metaintermediação algorítmica remodela o cérebro das crianças, captura o afeto e transforma o direito de crescer em dado de plataforma


Em poucos anos, a tela deixou de ser só entretenimento para se tornar a principal mediação entre as crianças e o mundo. Por trás de vídeos fofos, jogos “gratuitos” e redes “para toda a família”, operam sistemas de metaintermediação algorítmica que antecipam desejos, moldam emoções e treinam o cérebro infantil para viver sem pausa, sem silêncio e sem fricção. Este ensaio investiga como a vida plataformizada está redesenhando a própria ideia de infância e lança um alerta urgente a pais, educadores e governantes sobre o que está em jogo quando deixamos que algoritmos eduquem nossas crianças.

A primeira tela. A primeira ferida



Há um instante quase invisível em que a infância se dobra diante do mundo. Pode acontecer em qualquer lugar: na sala abafada de um apartamento pequeno, no banco traseiro de um carro parado no trânsito, no restaurante ruidoso onde adultos conversam entre si. É sempre um instante breve — um gesto simples demais para que alguém o perceba como decisivo. A criança estende a mão. A tela acende. E algo se desloca silenciosamente dentro dela, como se uma porta tivesse se fechado sem que ninguém escutasse o clique.


A luz azul envolve o rosto pequeno com a mesma delicadeza com que a madrugada envolve uma cidade adormecida. Os olhos, antes inquietos, se fixam com uma obediência que não pertence à idade. O corpo relaxa não porque encontrou descanso, mas porque encontrou direção. A tela sabe para onde levá-lo antes mesmo que ele saiba o que deseja. Ali, no colo da tecnologia, o tempo se reorganiza. A espera desaparece. A curiosidade é guiada. O desejo é curado antes de nascer. A primeira experiência de autonomia é interrompida antes de existir.


Os adultos, aliviados pela quietude repentina, raramente enxergam o que está acontecendo. Para eles, é só uma pausa, um respiro. Para a criança, é outra coisa: uma entrada inaugural num mundo que não foi feito para acolher seu tempo interno, mas para substituí-lo. Uma máquina que não observa a infância, mas a captura. Que não acompanha, mas conduz. Que não mostra caminhos, mas os antecede. A criança toca a tela — e a tela toca de volta, com uma força que ninguém treinou ainda para reconhecer.


Não há violência visível ali. Não há grito, nem medo, nem dor imediata. O que existe é algo mais sorrateiro: uma reorganização afetiva que passa despercebida. O coração infantil aprende cedo que o alívio pode ser instantâneo, que o tédio é intolerável, que o silêncio é um vazio a ser preenchido, não um território a ser explorado. Aprende que o mundo responde sem demora, sem fricção, sem conflito — e que a presença do outro pode ser substituída por uma sucessão infinita de estímulos que prometem companhia sem exigir reciprocidade.


É assim que a primeira tela se torna a primeira ferida. Não porque machuca de forma explícita, mas porque inaugura uma forma de estar no mundo que prescinde do mundo. A criança, cercada por adultos que acreditam tê-la protegido da inquietação, descobre um universo que não pede nada dela — nenhum esforço, nenhuma paciência, nenhuma invenção. O algoritmo acolhe como se fosse colo, distrai como se fosse cuidado, guia como se fosse autoridade. Ele se insinua na fronteira ainda inacabada entre desejo e necessidade, e ali finca seu primeiro marco.


Mais tarde, quando os sinais forem mais nítidos — a ansiedade pela notificação, a irritação diante da pausa, a dificuldade em sustentar o olhar, a busca contínua por estímulos — parecerá que tudo começou de repente. Mas não. Começou aqui, neste gesto mínimo e cotidiano, tão comum que ninguém o percebe como começo. A infância não é perdida de uma vez. Ela é deslocada em pequenas parcelas, entregues à medida que a tela oferece um mundo mais rápido, mais dócil, mais previsível do que a própria vida pode ser.


E é justamente nesse primeiro instante — tão suave, tão prático, tão conveniente — que o algoritmo cumpre seu papel mais profundo: substituir a experiência viva por uma mediação invisível. A criança não percebe que atravessou uma fronteira. Os adultos tampouco. Mas o mundo, a partir de agora, já não chegará até ela sem antes passar pelo filtro de uma máquina que estudará seus humores, antecipará seus impulsos e moldará seus afetos com a mesma naturalidade com que a água molda a pedra.


Tudo começa assim. Com uma luz fraca. Um silêncio súbito. Uma paz que não pertence ao humano. A primeira tela é sempre a primeira ferida — a mais discreta, a mais profunda, a que se confunde com cuidado.

Infância sem pausa. O fim do tédio como projeto de poder



O que distingue uma infância saudável não é a ausência de desconforto, mas a existência do tempo. Tempo para errar, para hesitar, para esperar, para não saber o que fazer. Tempo para ficar inquieto, para inventar um jogo com nada, para se frustrar e tentar de novo. O tédio — esse território tão temido pelos adultos — é, para a criança, um laboratório silencioso onde a imaginação aprende a caminhar com suas próprias pernas. É no intervalo entre uma coisa e outra que a subjetividade se forma, que a atenção se exercita, que a curiosidade se expande.


Mas a infância contemporânea já não conhece esse território. A vida digital, cuidadosamente desenhada pela lógica da fricção zero, não admite pausas. Tudo precisa ser imediato, contínuo, entregue antes mesmo de ser desejado. O feed nunca termina. O vídeo começa sozinho. O jogo oferece recompensas sem esforço. A plataforma antecipa cada gesto porque seu objetivo central não é formar sujeitos, mas reter usuários. E a criança, cuja arquitetura emocional está apenas sendo erguida, passa a se orientar por esse ritmo que não pertence ao humano — um ritmo que corrói a lentidão essencial do crescimento.


O tédio, antes um terreno fértil da imaginação, torna-se uma ameaça. Não porque a criança tenha mudado, mas porque o mundo ao redor passou a oferecer alívio instantâneo para qualquer mínima sensação de vazio. A fricção zero não é só uma técnica; é uma pedagogia oculta. Ela ensina que qualquer desconforto deve ser eliminado imediatamente, que a inquietação não deve ser enfrentada, e que o tempo não serve mais para ser vivido, mas para ser preenchido. A criança aprende cedo que a sensação de pausa é intolerável — e que basta um toque para fugir dela.


Essa fuga constante do tédio tem um preço. Sem intervalo, não há elaboração. Sem hesitação, não há escolha. Sem tempo morto, não existe a possibilidade de escutar a si mesmo. A criança deixa de experimentar a experiência mais fundadora da autonomia: descobrir o que fazer quando ninguém oferece uma resposta pronta. No lugar disso, a plataforma oferece estímulos contínuos que sequestram a atenção e moldam o desejo, de maneira tão suave que parecem apenas acompanhar a vontade infantil, quando na verdade a antecedem.


O resultado é uma infância que se acostuma a viver em um mundo sem resistência. Um mundo onde as coisas acontecem na velocidade do dedo que desliza, não na velocidade do amadurecimento psíquico. A fricção zero cria uma ilusão cruel: a de que a vida pode ser vivida sem esforço, sem espera e sem conflito. Mas nenhum ser humano cresce nesse regime. É preciso tropeçar, duvidar, cansar, começar de novo. É preciso, sobretudo, experimentar a solidão criativa que só o tédio oferece — aquele silêncio no qual a criança descobre que pode inventar algo que não existia.


Quando retiramos isso dela, não estamos apenas oferecendo entretenimento rápido. Estamos reorganizando sua relação com o tempo, com o desejo e com o mundo. Estamos treinando uma geração para acreditar que toda sensação incômoda deve ser eliminada imediatamente, que o desconforto é falha, não processo. As plataformas não fazem isso por maldade — fazem porque foi assim que aprendemos a medir o sucesso tecnológico: pelo desaparecimento da pausa.


Mas o desaparecimento da pausa é também o desaparecimento da infância enquanto espaço de descoberta. Uma criança que nunca se entedia, nunca se demora, nunca se atrasa, nunca espera, é uma criança cuja subjetividade está sendo moldada por um tempo que não é dela. É um crescimento apressado, não porque amadurece mais rápido, mas porque deixa de amadurecer de verdade.


A fricção zero promete uma vida mais fácil. Para uma criança, porém, o fácil é uma armadilha. E o mundo algorítmico, ao livrá-la do tédio, também a livra de algo essencial: a chance de se encontrar consigo mesma.

Cérebro em construção. Algoritmos como pedagogos invisíveis



O cérebro de uma criança é uma obra em andamento. Não é uma miniatura do cérebro adulto: é um canteiro de construção aberto, vivo, instável, moldado por janelas de sensibilidade que se fecham para sempre se não forem atravessadas no tempo certo. Atenção sustentada, controle inibitório, regulação emocional, memória de trabalho, capacidade simbólica — tudo isso se forma lentamente, em camadas, a partir de experiências reais que exigem esforço, presença, corpo, frustração e vínculo humano.


Mas o ambiente digital não espera pelo desenvolvimento. Ele se adianta. Ele oferece atalhos. Ele cria um mundo onde nada exige maturação porque tudo é entregue antes de qualquer tentativa. A criança desliza o dedo — e o algoritmo responde instantaneamente. Não há lacuna entre gesto e resultado. Não há resistência material. Não há espaço para o cérebro tropeçar, recalcular, insistir, tentar outra estratégia. A máquina entrega a recompensa antes mesmo que a criança descubra a pergunta.


A neurociência já sabe que o cérebro infantil depende de repetição, de desafio proporcional, de experiências que forcem a musculatura interna da atenção. Mas os algoritmos trabalham na direção contrária: convertendo cada segundo de potencial frustração em estímulo imediato, cada silêncio em som, cada espera em preenchimento, cada dúvida em recomendação automática. O cérebro, que deveria aprender a sustentar foco, treina-se no oposto: na alternância frenética, na vigilância permanente por novidade, na resposta impulsiva ao primeiro brilho da tela.


Não se trata de demonizar a tecnologia. Trata-se de compreender que a criança é atravessada por ela num momento em que suas conexões neurais estão sendo esculpidas pela experiência. Uma criança de poucos anos não possui ainda as funções executivas necessárias para filtrar estímulos, regular impulsos, modular emoções. Ela não tem repertório interno para negociar com a avalanche sensorial que as plataformas oferecem. Ela não entende intenção comercial, não reconhece manipulação de design, não percebe a lógica de recompensa intermitente que a prende ao fluxo infinito.


E é exatamente aí que o algoritmo se transforma em pedagogo invisível. Não um pedagogo consciente, mas um conjunto de máquinas que opera sobre princípios psicológicos ancestrais — reforço, antecipação, recompensa, excitação — de maneira automatizada e contínua. Ele captura padrões de comportamento, ajusta o fluxo de estímulos, regula a intensidade do prazer digital com precisão mecânica. Ele descobre, com poucos minutos de uso, quais vídeos mantêm a criança parada, quais jogos a deixam eufórica, quais personagens a acalmam. E devolve isso em dosagem crescente.


É a primeira educação emocional sem educadores.

A primeira escola sem professores.

O primeiro vínculo afetivo mediado por uma entidade que não sente, mas calcula.


Quando a criança entrega sua atenção à plataforma, está entregando também o privilégio de ter sua sensibilidade moldada por alguém que a compreende, a escuta e a protege. O algoritmo não protege: ele otimiza. Ele não acolhe: ele retém. Ele não ensina: ele ajusta comportamento para maximizar métricas.


A pergunta real, porém, não é “o que o algoritmo faz com a criança?”, mas “o que deixa de acontecer em seu lugar?”.

O que se perde quando a frustração é suprimida antes do esforço?

O que se enfraquece quando o silêncio é preenchido antes do pensamento?

O que deixa de se formar quando a curiosidade é substituída pela recomendação perfeita?


O cérebro infantil precisa de mundo: de chão, de vento, de espera, do outro, do corpo, da dúvida. Precisa carregar consigo a experiência de tentar e não conseguir, de se esforçar para entender, de se frustrar e se recompor. Mas o design algorítmico entrega tudo sem que nada seja vivido. Ele oferece resultados em vez de processos, respostas em vez de buscas, euforia em vez de construção.


Assim, sem perceber, uma pedagogia mecânica entra no lugar onde deveria existir um adulto, um vínculo, uma presença que ajuda a criança a aprender a se governar. O algoritmo governa por ela — e essa é sua eficácia mais perigosa. Ele define o ritmo, a intensidade, o que merece a atenção e por quanto tempo. Ele corrige antes que haja erro, aplaude antes que haja conquista, recompensa antes que haja mérito.


Uma infância educada assim cresce sem o treino essencial da autonomia interna. Cresce acreditando que o mundo é responsivo, imediato, incansável. Cresce esperando que a vida funcione na velocidade de uma timeline. Cresce desaprendendo a lidar com a frustração — porque nunca lhe foi permitido experimentá-la.


E é nesse ponto que a tecnologia deixa de ser ferramenta e se transforma em destino. O cérebro em formação, pressionado por estímulos que não foram calibrados para sua maturidade, começa a se organizar não em torno das necessidades humanas, mas das exigências da máquina.


O algoritmo educa.

E educa no silêncio.

E educa sem responsabilidade.

E educa sem amor.

Afeto em oferta. Quando a intimidade infantil vira dado



Há um momento na vida de toda criança em que ela descobre que o mundo responde ao seu afeto. Que um sorriso devolve outro sorriso, que um choro convoca cuidado, que uma pergunta abre caminhos. O afeto, nessa fase, é a primeira linguagem — a mais pura, a mais desprotegida, a mais moldável.

E é justamente nesse território sagrado que as plataformas digitais fincam seus alicerces.


Para a criança, a tela não é tecnologia. É presença. É companhia. É alguém — não algo.

É a voz que nunca se cansa, o vídeo que nunca termina, o jogo que nunca diz “agora chega”.

É um mundo que se curva à sua emoção sem exigir reciprocidade, sem impor limites, sem se frustrar.

É uma relação que parece perfeita porque não ensina a negociar desejo, não ensina a esperar, não ensina que o outro também existe.


Mas por trás dessa suavidade há uma maquinaria invisível: sistemas algorítmicos que transformam cada gesto, cada olhar prolongado, cada escolha, cada hesitação num conjunto de dados sobre quem aquela criança é — ou, pior, sobre quem ela pode vir a ser.

O que a acalma.

O que a excita.

O que a distrai.

O que interrompe seu choro.

O que a deixa pedindo mais.


Tudo isso é coletado, armazenado, testado, refinado, monetizado.


O que a criança oferece como afeto — vulnerável, espontâneo, autêntico — a máquina reclassifica como informação. Não há maldade aí. Há método. A lógica da economia digital é simples: quanto mais íntima a relação, maior o engajamento; quanto maior o engajamento, mais previsível o comportamento; quanto mais previsível o comportamento, maior o valor econômico. O afeto infantil, portanto, não é um acidente — é um ativo.


E a criança, incapaz de compreender essa assimetria brutal, entrega-se inteira.

Ela fala com personagens que não existem.

Expõe emoções para uma audiência silenciosa.

Cria vínculos com influenciadores que nunca olharam de volta.

Procura consolo em vídeos programados para capturar atenção, não para acolher dor.

Abre o coração para uma máquina que registra, mas não responde.

Confia em alguém que não existe — e, ainda assim, a entende melhor do que muitos adultos ao seu redor.


É nesse ponto que a intimidade vira mercadoria.

Aquele momento em que a criança, antes de dormir, pede “só mais um vídeo porque estou triste” não é interpretado como lamento — é interpretado como padrão. E padrões são valiosos. Eles permitem que o sistema refine sua habilidade de mantê-la ali, presa naquele fluxo que parece afeto, mas é apenas cálculo.


Nada disso acontece às claras. A criança não sabe que está sendo estudada. Os pais, ocupados pela sobrevivência do dia, também não. E o mundo tecnológico, embalado pela linguagem da inovação, raramente admite que está moldando a primeira educação emocional de milhões de crianças sem qualquer responsabilidade pública.


O resultado é um fenômeno inquietante:

a criança aprende que o alívio emocional vem da tela, não do corpo do outro;

que a calma vem do algoritmo, não da presença humana;

que o carinho está associado a estímulo constante, não a vínculo real.


É uma pedagogia afetiva de segunda ordem — mais eficiente do que qualquer aula, porque opera no terreno das emoções cruas, onde as defesas ainda não existem. Ela ensina, sem jamais se declarar professora, que o amor pode ser automatizado; que a atenção pode ser infinita; que a companhia não precisa de reciprocidade.


Mas nada disso prepara a criança para a vida.

Pelo contrário: a fragiliza.


Ensina-a a buscar acolhimento em um ambiente que nunca se frustra, nunca pede desculpas, nunca se irrita, nunca exige cuidado — um ambiente que não tem rosto e, no entanto, define os contornos da alma nascente.


Quando crescer, essa criança talvez descubra que o mundo não funciona como a tela, que os outros não obedecem ao ritmo dos vídeos, que as relações não carregam recompensas instantâneas, que o amor não se adapta automaticamente ao seu humor. E esse choque, que deveria ser processo natural de amadurecimento, torna-se fratura. Porque alguém — um alguém sem corpo, sem voz, sem responsabilidade — a ensinou a esperar do mundo algo que o mundo não pode ser.


A intimidade que a criança entrega não volta.

Ela se transforma em dado.

E o dado se transforma em lucro.

E o lucro se transforma em arquitetura comportamental.


E, assim, a primeira alfabetização afetiva de uma geração acontece não no colo de um adulto, mas no colo de um sistema que não sente — só calcula.


Quem cria quem. Classe, raça e a infância governada por algoritmo



A infância nunca foi igual para todas as crianças. Mas a infância digital tornou essas diferenças ainda mais profundas — e, sobretudo, mais silenciosas. Porque, enquanto a tecnologia costuma ser apresentada como força niveladora, como promessa de acesso universal, como ponte democrática entre mundos separados, a realidade é outra: os algoritmos não apenas reproduzem desigualdades; eles as amplificam. E fazem isso com a delicadeza cruel das estruturas que operam no escuro.


Nas casas em que tempo é luxo, em que trabalho é exaustão, em que cuidado é dividido entre turnos, ônibus e improvisos, a tela aparece como respiro possível. Não como negligência — mas como sobrevivência. A criança que fica com o celular não está sendo abandonada. Ela está sendo protegida do caos cotidiano por uma ferramenta que, naquele momento, parece ser a única presença estável. O algoritmo funciona como babá, como distração, como anestesia. Não por escolha livre, mas por falta dela.


E enquanto isso, em outra parte da cidade, uma criança da mesma idade brinca num quarto mais silencioso, com brinquedos que desafiam sua imaginação, com adultos que têm tempo para acompanhar, com telas mais reguladas, com aplicativos pagos — e, portanto, menos violentos, menos invasivos, menos cheios de publicidade disfarçada. Essa criança cresce com curadoria humana. A outra cresce com curadoria algorítmica.


O resultado é brutal:

duas infâncias, dois tempos, dois futuros cognitivos.


As plataformas gratuitas, que são as mais acessíveis às famílias pobres, são também as que mais abusam de dark patterns, publicidade oculta, monetização agressiva, estímulos hiperativos, personagens programados para retenção, recompensas incessantes. São sistemas de captura total, desenhados para não soltar a criança nem por alguns segundos.


É assim que desigualdade vira arquitetura psicológica.

A criança rica aprende a negociar a própria atenção.

A criança pobre aprende a perdê-la.


Essa diferença não se expressa apenas no comportamento. Ela se infiltra no desenvolvimento das funções executivas, da autorregulação, do vocabulário, da capacidade de leitura profunda, da memória de trabalho. O algoritmo, ao modular o ritmo interno da criança, acaba modulando também suas possibilidades futuras — o rendimento escolar, a capacidade de abstração, a tolerância ao erro, a disposição para o conflito e até mesmo a forma como, mais tarde, ela entenderá política, violência e autoridade.


E aqui a questão racial se torna inescapável.

Na América Latina, nos Estados Unidos, na África, em grande parte da Ásia, quem mais depende da tecnologia como suporte doméstico não são as famílias brancas de classe média alta — são as famílias negras, indígenas, imigrantes, periféricas. São crianças que já chegam ao mundo atravessadas por desigualdades históricas e agora enfrentam uma segunda camada de assimetria: a tecnológica.


A cor da pele e o CEP determinam não apenas a qualidade da escola, da alimentação, do acesso à saúde — mas também a qualidade do algoritmo que educa.

Para algumas crianças, a tecnologia oferece possibilidades.

Para outras, oferece cercas.


E o ponto mais trágico é que isso tudo acontece sem discurso explícito, sem política declarada, sem violência visível. É uma pedagogia de classe e raça que se esconde atrás da aparência de neutralidade. Os algoritmos são apresentados como ferramentas universais, quando na verdade atendem a modelos de negócio que dependem justamente da vulnerabilidade de quem não tem como se proteger deles.


No fim, a pergunta “quem cria quem?” deixa de ser metáfora.

Porque, na prática:


são as condições materiais que definem qual tecnologia chega à criança;


é a tecnologia que define como essa criança experimenta o mundo;


e é essa experiência que, lentamente, define quem ela poderá se tornar.


Não se trata de demonizar famílias que recorrem às telas — trata-se de denunciar um sistema que faz da desigualdade um método de modulação subjetiva. Um sistema que captura a atenção das crianças mais vulneráveis com a mesma precisão com que captura seus dados. Um sistema que oferece estímulos infinitos como consolo para vidas que o Estado insiste em deixar finitas.


A infância digital, portanto, não é apenas uma questão de psicologia — é uma questão de política pública, de justiça social, de soberania informacional.

E enquanto não reconhecermos isso, continuaremos a permitir que o algoritmo seja a única presença constante na vida das crianças que mais precisariam de outra coisa: tempo, corpo, vínculo, mundo.

Uma geração sem hesitação. Democracia, conflito e subjetividade política



Há algo na democracia que só pode ser aprendido devagar.

A capacidade de aceitar frustração.

A paciência de escutar o outro até o fim.

A disposição de tolerar ambiguidades, desacordos, silêncios, demoras.

A arte de adiar o impulso.

A força de permanecer diante do conflito sem dissolvê-lo.


Nenhuma dessas habilidades nasce pronta. Todas são treinadas na infância — nos jogos que exigem turno, nas brigas que exigem negociação, nas perguntas que exigem espera, nos erros que exigem esforço. A democracia, antes de ser instituição, é uma disciplina afetiva. E sua matéria-prima é o tempo: o tempo que a criança precisa para aprender a pensar antes de agir, para decidir antes de clicar, para ponderar antes de reagir.


Mas a infância moldada por algoritmos já não se encontra nesse tempo.

Ela cresce em um ambiente onde não existe hesitação, onde cada impulso encontra resposta imediata, onde o desconforto é eliminado antes de ser nomeado. A criança aprende, sem perceber, que toda dúvida é um atraso; que toda espera é defeito; que toda fricção é falha; que o mundo deve funcionar na velocidade de seus dedos — e que qualquer coisa diferente disso é intolerável.


Assim, o que parece apenas um padrão de comportamento digital é, na verdade, uma revolução silenciosa da subjetividade. A geração que cresce sem treinar hesitação cresce também sem treinar democracia. Porque democracia exige conflito, e o algoritmo ensina a evitá-lo. Democracia exige discussão, e o algoritmo oferece confirmação. Democracia exige confronto com o imprevisto, e o algoritmo oferece previsibilidade absoluta. Democracia exige lentidão, e o algoritmo exige velocidade.


No ambiente digital, cada criança é acompanhada por um sistema que lhe entrega não a diversidade do mundo, mas a repetição calculada de si mesma. Ela vê o que deseja antes de desejar; escuta o que já pensa antes de formular pensamento; encontra o que a reconforta antes que exista desconforto. É um espelho infinito — e espelhos infinitos não produzem cidadãos: produzem consumidores de si mesmos.


E é nesse ponto que a metaintermediação algorítmica deixa de ser apenas uma tecnologia e se torna uma força política estrutural.

Ela modula, desde cedo, a tolerância ao dissenso.

Ela fragiliza a musculatura emocional necessária para discordar sem colapsar.

Ela torna cada frustração uma ferida, cada desacordo um ataque, cada divergência uma ameaça.


A criança educada em um ambiente onde tudo funciona automaticamente, onde nada exige negociação, onde o prazer é instantâneo, cria uma expectativa emocional de que o mundo real deveria operar do mesmo modo. E quando descobre que não opera, sente-se traída. É nesse ponto que populismos autoritários encontram terreno fértil: oferecem respostas rápidas, simplificações reconfortantes, inimigos claros, atalhos emocionais para a angústia. Operam com a mesma lógica da plataforma: eliminação de conflito, compressão de complexidade, gratificação imediata.


O algoritmo cria o hábito. A política captura o hábito.


Essa transição é quase imperceptível. Não começa em manifestações, mas em microgestos: a irritação diante de uma conversa que se arrasta; a impaciência com opiniões divergentes; a recusa em elaborar ideias complexas; a necessidade de estímulo constante para suportar o cotidiano. Quando essas disposições se tornam coletivas, deixam de ser traços psicológicos e se transformam em condições históricas.


Uma sociedade que cresce sem treinar hesitação cresce vulnerável ao autoritarismo.

Porque o autoritarismo promete o que o algoritmo já habituou: eficiência, previsibilidade, ausência de atrito, resolução imediata dos incômodos.

Uma população que não aprendeu a viver com o desconforto torna-se presa fácil de qualquer projeto que prometa suprimi-lo.


E aqui está a chave materialista deste tópico:

a disputa política do século XXI não é apenas por território, economia ou instituições — é por arquiteturas de subjetividade. As plataformas moldam afetos; afetos moldam percepções; percepções moldam escolhas; escolhas moldam regimes. Um país não se torna autoritário por acaso: ele se torna autoritário quando uma geração inteira cresce sem a gramática emocional necessária para sustentar a vida democrática.


E essa gramática começa na infância — no tempo do não fazer nada, da pausa, da dúvida, da fricção, da convivência com o outro. Quando esses elementos desaparecem, não perdemos apenas uma experiência infantil: perdemos o terreno sobre o qual se constrói o pacto social.


A infância sem hesitação é um presente frágil.

A democracia sem hesitação é um futuro impossível.

Pedagogia da fricção. O direito de crescer para além das telas



Se a infância está sendo moldada por um mundo sem pausas, qualquer tentativa de protegê-la precisa começar por aquilo que o algoritmo não pode oferecer: a fricção. A fricção do tempo que demora, do silêncio que pesa, do esforço que cansa, do encontro que desafia, da vida que não se ajusta à vontade. A fricção, tão temida pela lógica das plataformas, é justamente o território onde a criança descobre a própria força. É ali que ela aprende a desejar sem garantias, a criar sem roteiro, a pensar antes de reagir. Sem fricção não há desenvolvimento: há apenas fluxo. Não há subjetividade: há apenas comportamento. Não há infância: há apenas estímulo.


Recuperar a fricção, porém, não significa demonizar a tecnologia ou propor um retorno impossível a um passado analógico. A pedagogia da fricção não é negação; é medida. É ritmo. É curadoria. É mediação. É devolver à criança o direito de ter um tempo que não esteja subordinado ao cálculo da máquina. Esse direito começa em gestos mínimos: o adulto que sustenta o tédio junto da criança, em vez de preenchê-lo de imediato; o educador que oferece problemas sem soluções instantâneas; o cuidador que resiste ao impulso de transformar cada incômodo em vídeo; o professor que ensina que aprender é também suportar o intervalo, o erro, o não saber.


A pedagogia da fricção devolve à infância algo que ela perdeu na aceleração digital: a experiência do real. O real que não carrega notificações, que não prevê desejos, que frustra, exige, surpreende, demora. É no real que a criança encontra duas presenças fundamentais: o outro, com toda a complexidade que lhe escapa; e a si mesma, com todas as dúvidas e potências que o algoritmo tenta apagar. Nada disso será suficiente, entretanto, se reduzirmos a discussão ao ambiente doméstico. Existirão dimensões da infância digital que só poderão ser enfrentadas por políticas públicas, regulação e justiça social. O design das plataformas não é acidente: é projeto. E onde há projeto, há responsabilidade.


A pedagogia da fricção, por isso, precisa ser também uma pedagogia da soberania. Soberania informacional, para impedir a exploração predatória de dados infantis. Soberania educativa, para proteger escolas do avanço de plataformas que substituem vínculos pedagógicos por interfaces agradáveis. Soberania econômica, para libertar a infância de modelos de negócio baseados em retenção e vigilância. Soberania social, para garantir que famílias pobres tenham alternativas reais ao cuidado terceirizado para a tela. A fricção, nesse sentido, significa também limite — não o limite autoritário que pune, mas o limite que humaniza. A criança precisa aprender que nem tudo está disponível o tempo todo, que o mundo resiste, que o desejo não é lei, que a pausa existe e que a vida não opera em autoplay.


Em um tempo em que a tecnologia se orgulha de eliminar frustrações, proteger a infância implica reintroduzi-las — com amor, com cuidado, com presença. Não para ferir, mas para fortalecer. Não para restringir, mas para devolver à criança o direito de experimentar o mundo com seus próprios olhos e sua própria lentidão. A pedagogia da fricção não é uma nostalgia romântica. É um ato radical de cuidado. Ela diz, de forma simples e profunda: “Você pode sentir. Você pode errar. Você pode demorar. Você pode cair. Você pode aprender a levantar. E o mundo não vai desaparecer porque você hesitou.”


E é justamente essa promessa que o algoritmo jamais pode fazer. Porque o algoritmo não tolera hesitação, nem queda, nem silêncio, nem tempo morto. Ele exige continuidade. Proteger a infância é devolver a ela o direito de interromper, de respirar, de duvidar. É afirmar que a vida vale mais do que a velocidade. É insistir que crescer é aprender a caminhar no ritmo do humano, não no ritmo da máquina. A fricção não é obstáculo: é fundamento. E uma infância sem fundamento é sempre uma infância sequestrada.

Uma promessa que os adultos ainda podem fazer



No fim do dia, quando a casa silencia e a luz das telas ainda pulsa nos cantos do quarto, há um instante em que tudo poderia ser diferente. A criança, cansada do fluxo interminável de cores e sons, olha para os adultos por um segundo — um segundo tão pequeno que quase ninguém percebe. É um pedido sem palavras, um gesto suspenso, uma dúvida no ar: preciso mesmo continuar aqui? Mas antes que a resposta exista, a máquina se antecipa. O próximo vídeo começa. O algoritmo assume o comando. E o momento passa.


Ainda assim, esse segundo frágil contém uma promessa que só os adultos podem cumprir: a promessa de presença. Não uma presença performativa, nem heróica, nem perfeita — apenas humana. A presença que acolhe o silêncio sem medo, que suporta o tédio sem fugir, que oferece tempo em vez de estímulo, que oferece olhar em vez de notificação, que oferece mundo em vez de fluxo. A presença que não compete com a máquina, mas devolve à criança aquilo que a máquina nunca poderá dar: limite, afeto, ritmo, chão.


Talvez proteger a infância, neste século, seja justamente a arte de reconhecer esse segundo antes que ele desapareça. É um gesto pequeno — segurar o próprio celular antes de entregar o dela; sentar ao lado sem abrir outra tela; aceitar o incômodo; permitir que o vazio exista. Esses gestos, quase invisíveis, carregam uma força que nenhum algoritmo pode simular: a força de ensinar que o cuidado tem corpo, que o afeto tem tempo, que o vínculo tem pausa.


Nenhum de nós pode desfazer o mundo que entregamos às crianças. Mas ainda podemos escolher como as acompanhamos dentro dele. Ainda podemos ser o intervalo entre a criança e o algoritmo. Ainda podemos ser a fricção que a protege. Ainda podemos ser o colo que não coleta dados, a rotina que não é programada, a presença que não pede engajamento.


A primeira tela pode ter sido a primeira ferida.

Mas não precisa ser a última palavra.


O futuro da infância ainda se escreve no espaço minúsculo entre um toque e um olhar. Nesse espaço, se estivermos atentos, existe o que sempre existiu: a possibilidade de dizer, com a simplicidade dos gestos essenciais — eu estou aqui.


E, às vezes, isso é tudo o que basta para que uma criança continue sendo criança.


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