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O fim da infância brasileira

  • Foto do escritor: Sara Goes
    Sara Goes
  • 21 de out.
  • 4 min de leitura

Entre o cerco e a expansão, o Oriente Médio revela a face mais brutal da geopolítica contemporânea: a dominação travestida de segurança e a ocupação disfarçada de estabilidade.


Gaza agoniza sob bloqueio e fome enquanto Israel consolida uma anexação silenciosa pela força, pelo gás e pela diplomacia. O mapa do Oriente Médio se redesenha em favor de um império de segurança regional sustentado pela complacência das potências ocidentais.

O Fim da Infância Brasileira: o petróleo, o Norte e a maioridade da nação



Como nas naves de O Fim da Infância, de Arthur C. Clarke, a promessa de petróleo na Margem Equatorial paira sobre o Brasil e evidência o racismo que ainda trata o Norte como incapaz de decidir o próprio destino


Escrito em 1953, O Fim da Infância narra um dos períodos mais inquietantes da ficção científica: um dia, enormes naves surgem nos céus das principais cidades do mundo e permanecem ali, imóveis, silenciosas, inatingíveis, durante décadas. Nenhum ataque, nenhuma comunicação direta, apenas a presença constante de um poder absoluto pairando sobre a humanidade. As naves não impõem a dominação pela força, mas pela expectativa. Sua simples existência altera o curso da civilização. A humanidade muda de comportamento antes mesmo de compreender quem as controla.


Essa metáfora aplica-se com precisão à atual promessa de petróleo na Margem Equatorial brasileira. A Petrobras prevê o início da produção nesta região até 2033, caso as etapas de exploração e licenciamento avancem nos prazos esperados. Ainda não há uma gota confirmada, mas a ideia de que o subsolo guarda volumes relevantes já mobiliza governos, empresas, partidos e sonhos. O poder aqui não é o petróleo em si, mas o que ele representa: a possibilidade de um novo destino nacional.


E é nesse ponto que o mito do desenvolvimento encontra o preconceito estrutural. O Norte brasileiro, assim como a humanidade infantilizada de Clarke, já é tratado como incapaz de decidir o próprio futuro. Discute-se a responsabilidade do Amapá diante de uma riqueza hipotética com o mesmo tom paternalista que a elite usa para justificar sua tutela histórica sobre o país profundo. O racismo se manifesta quando se questiona se eles saberão administrar o petróleo, como se o saber econômico fosse privilégio das regiões brancas e industrializadas.


Mesmo dentro do campo progressista, o discurso da orientação reaparece. Fala-se em preparar o Amapá para o desenvolvimento, em garantir que a riqueza não seja desperdiçada, como se a experiência coletiva da região fosse menor, como se o Norte precisasse de um tutor civilizatório. Essa retórica remete a séculos de exclusão. O Amapá é visto como uma infância da nação e o petróleo como a herança que deve ser vigiada.


Mas enquanto o país debate se o Amapá está pronto, a própria hipótese da descoberta já altera a vida local. O imaginário da virada de jogo tem gerado pequenos movimentos migratórios, despertado ambições e redes criminosas. Facções que dominam rotas logísticas da região Norte antecipam os fluxos econômicos antes mesmo de existirem. Povos indígenas e quilombolas veem seus territórios ameaçados pela especulação e comunidades costeiras se preparam para um futuro que ainda é pura ficção.


A simples ideia de que o subsolo da Margem Equatorial pode conter petróleo despertará, antes mesmo de qualquer descoberta, a pressão dos que sempre defenderam o Estado mínimo. Esses grupos tratarão o investimento público como desperdício e a ausência de lucro imediato como prova de ineficiência, ignorando que a exploração petrolífera leva anos para gerar retorno comercial. É a mesma lógica que, no passado, pavimentou o caminho para privatizações e ataques à soberania nacional. O padrão se repete desde o pré-sal.


No plano geopolítico, a Margem Equatorial se torna o novo ponto de inflexão das veias abertas da América Latina. O potencial energético do Brasil no Atlântico Norte reconfigura a correlação de forças em um continente marcado por ataques coordenados aos governos soberanistas. Os “hermanos” voltam a ser alvo de sanções, pressões diplomáticas e campanhas de desinformação que visam enfraquecer o eixo progressista latino-americano. Nesse contexto, o petróleo brasileiro assume papel estratégico, tanto para o fortalecimento dos BRICS quanto para a independência regional frente à OTAN e aos Estados Unidos.


O controle sobre a Margem Equatorial é, portanto, mais do que uma questão econômica. É um capítulo da guerra híbrida que redefine a soberania energética no século XXI. Um Brasil autônomo, com reservas equivalentes às da Guiana e do Suriname, altera a geopolítica hemisférica e desafia a lógica das veias abertas que, por séculos, destinaram aos países do Sul o papel de exportadores baratos e submissos.


A potência da promessa, como nas naves de Clarke, é o que realmente domina. Mesmo sem petróleo confirmado, o Brasil já vive sob o magnetismo da expectativa. O que está em disputa é mais do que energia, é o direito do Norte de existir como potência política e simbólica, não como periferia tutelada.


Se O Fim da Infância marca o momento em que a humanidade abandona a ingenuidade diante do desconhecido, o Amapá vive agora o seu próprio rito de passagem. Mas não apenas ele. O Brasil também. A descoberta potencial de petróleo na Margem Equatorial não é só o fim da infância do Norte diante do país, é o fim da infância do país diante do mundo. Superar o paternalismo interno é condição para afirmar a soberania externa. O país só crescerá de fato quando reconhecer que não há projeto nacional possível enquanto parte de si mesma for tratada como menor de idade.


O amadurecimento geopolítico do Brasil depende do reconhecimento de sua totalidade territorial, cultural e simbólica. A infância brasileira termina quando o país entender que não há independência diante das potências estrangeiras sem emancipação do seu próprio Norte.

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