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O Entusiasmo do Colonizado: A Nuvem que Não Chove no Sertão

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    Redação
  • 11 de jul.
  • 5 min de leitura

Mauro Oliveira, Professor IFCE


Antes dos celulares, essas rapaduras eletrônicas que nos fazem refém de nós próprios, e das nuvens que não chovem bytes, o mundo digital era um altar centralizado, onde se rendia culto aos “zeuses” pesados do silício: os mainframes. 


Esses Golias computacionais – com seus armários refrigerados e sons de exaustores – ofereciam memória compartilhada e processamento central para os fiéis usuários, conectados por terminais burros que mais pareciam confessionários eletrônicos. 


A IBM, o Vaticano digital da época, era mais poderosa que uma ruma de Chico Gates, Edu Musk, Zé de Zukenberque e o beradeiro da Amazon (Jeff Algumacoisa) juntos numa Komby. 


O modelo de negócio era simples: a IBM alugava os jumentões mainframes a preço de banana (de ouro) enquanto os vendedores com cara de pau juravam com convicção de padre em romaria (negando que o filho parecia mas não era dele) que aqueles monstrengos unidos jamais seriam vencidos! By the way, os bancos públicos foram os últimos a exorcizar os Golias e mimar os Davizinhos ... por que será, hein? 


Até que surge o downsizing... bem ali lá acolá, uma década depois daquele gol que o Carlos Alberto empurra a bola fora da TV, aí aparece o Pelé e BUFO (Brasil 4x1 Italia). Com a chegada das redes locais, os pequenos Davis computacionais começaram a se espalhar pelas empresas, ostentando autonomia, interfaces gráficas deliciosas e o charme juvenil do sistema operacional do Bill da Microsoft. 



Cada estação de trabalho com seu próprio processador e memória local. Nascia nas empresas e universidades, de forma torta e genial, o conceito de sistemas distribuídos. Era como se os anões eletrônicos da princesa Marluce Aires (divulgadora-mor da TIC cearense por mais de 20 anos) passassem a trocar missivas digitais em linguagem binária. 


Esse bate papo se ampliou com a chegada das redes X.25 que, referenciadas pelo modelo OSI da ISO, tentaram DESorganizar o caos. Mas quem venceu mesmo essa luta do rochedo contra o mar de bits foi o protocolo TCP/IP, aquele espertinho dos laboratórios do DARPA, que aplicou um 7x1 no X.25 e nunca mais olhou pra trás ... Quem é de BENFICA (será?)! 


Enquanto isso, a Inteligência Artificial – festejada com a Máquina de Turing em 1936 – vivia seu próprio “inverno nuclear”, mais pálida que o Fortaleza na Copa do Nordeste. Os sistemas especialistas ainda tentavam dizer a que vieram quando em 1997, a IBM apronta mais uma das suas: a Deep Blue, uma IA de força bruta aliada a regras pré-programadas (uma espécie de sistema especialista esteroide), derrota o campeoníssimo e festejado Kasparov. 


Era o sinal de que a IA vestira calça comprida de tergal, que “amassa mas não amarrota, nem perde o vinco” e caçava um fonabô, aquele kichute da Vulcabrás bem ali na sapataria Esquisita, perto da Aba Filme, defronte da Banca do Bodinho, ao lado do Abrigo Central, o primeiro shopping center de Fortaleza. 


Mas eis que chega o inatingível ano 2000. Eita que o bug do milênio (Y2K) – que prometia o apocalipse digital – vira motivo de vaia grande de dar inveja ao Bode Ioiô, o vereador da Praça do Ferreira. E aí ... nada acontece. Nem um reloginho atrasou. Era tempo bom em que o Estado mandava na segurança pública mais do que as facções e não havia ainda essa tal de BET e Tigrezinhos digitais que seduzem, sequestram e famintam famílias inteiras em 3 cliques... e nós da Aldeia Aldeota não fazemos nada, como no “Jardim de Maiakovsky” (que não é do Vladimirovitch). 


Eis que surge o Watson... Elementar, meu caro, né! Esta nova promessa da IBM com IA “cognitiva” derrota dois gringos da peste no Jeopardy, um sofisticado programa da TV americana que imitava o “O Céu é o Limite” do Jota Silvestre, aquele do sorriso plastificado da TV Record ao som de “Não de Vá” de Jane & Herondy, manca! A IBM ressurge assim como uma Fênix Caixeiral, digo digital, surfando nos ventos do big data. 


É aí que o mundo computacional volta a se recentralizar. Isso mesmo: “o oposto do que eu disse antes, uma metamorfose (eletrônica) ambulante”. Com a tecnologia de nuvem e datacenters, vivemos a revanche do mainframe. Só que agora, em escala global, com servidores enfileirados em galpões refrigerados por rios perenes (o Jaguaribe nem pensar ... rsrs) e alimentados por energia de cidades inteiras. O que era distribuído volta a ser, “de certa forma”, central. Só que com outro sotaque, mais americano, mais chinês, menos nosso. Pense numa marmota digital dando uma reviravolta conceitual. 


Assim, anestesiado pelos “bibelôs” e sem muito conhecimento de causa, o colonizado… aplaude, só aplaude, vê o outro, não se vê! Aplaude os anúncios de instalação de datacenters como se fossem novas usinas de esperança. Sem saber que, muitas vezes, a riqueza da computação – seus dados, seus modelos, seus lucros – continuará migrando para longe. O entusiasmo é tanto que ninguém pergunta: e a soberania digital? E o acesso à infraestrutura? E os empregos de verdade? O que vem mesmo para cá além do ruído dos ventiladores e da “conta da água e da luz”? Ah, os impostos porque tecnologia mesmo tá na caixa preta. 


O entusiasmo do colonizado ao receber um datacenter é o mesmo do sertanejo ao receber uma ferrovia que só passa, não para. É a alegria ingênua diante de uma tecnologia que se impõe sem se misturar. Um contentamento que já vimos antes – no ciclo do açúcar, da borracha, do ouro, do vento… Só muda o datacenter. A desigualdade social continua! 



Esse datacenter da Caucaia, por exemplo, com capacidade de 300 MW, deverá operar com 70% de sua potência, ou seja, 210 MW em média. Isso equivale a: 

• 5.040 MWh por dia (210 x 24h), ou 5.040.000 kWh por dia; 

• Considerando que uma residência média brasileira consome 2,5 kWh/dia, o datacenter irá consumir diariamente a energia equivalente a 2 milhões de casas. 


Tudo bem, tudo bem, tudo bem ... pra quem mora distante. Mas para quem vive ali, entre os bairros de Jurema e a Barra do Cauípe, essa escala de consumo precisa ser debatida para ser compreendida e negociada. 


É imperativo que a comunidade seja esclarecida. Que haja transparência nos estudos de impacto (ambiental em especial, riscos de falta de água e luz etc), um diálogo real sobre as contrapartidas, e que não se repita o que ocorreu com os “donos dos ventiladores” em Canoa Quebrada, onde os moradores do Estevão seguem esperando promessas deixadas “para depois do Carnaval”. 

É superlativo esclarecer que após a construção, os empregos caem vertiginosamente: Um vigia (que talvez seja substituído por câmeras), dois pintores (pra apagar a grafitagem), meia dúzia de três ou quatro técnicos (revezando o cafezinho com os visitantes dos colonizadores). 



O entusiasmo do colonizado ao receber um datacenter é o mesmo de sempre: aceitar com gratidão o que vem de fora, sem exigir as devidas reciprocidades, sem entender os efeitos colaterais. A verdade é que recebemos a infraestrutura, mas não dominamos a tecnologia. A eletricidade se vai, o dado se vai, o imposto escapa, o emprego evapora. 


Beleza, vamos receber mais essa dúvida, digo, “dádiva” ... mas talvez seja hora de aprender a negociar com a seriedade de quem sabe o valor do que cede. 


Talvez o Ceará precise menos de galpões refrigerados e mais de jovens capacitados (projeto C-Jovem, idealizado pelo IRACEMA Digital) a criar os algoritmos que comandam esses galpões. 


Porque nuvem que se preza não deveria obscurecer o futuro de quem está sob ela. 


Mauro Oliveira, Eletrotécnico da ETFCE. PhD em Informática (Sorbonne University), foi Secretário de Telecomunicações do Ministério das Comunicações.


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