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O PIX Social

  • Foto do escritor: Rey Aragon
    Rey Aragon
  • 18 de jul.
  • 19 min de leitura

Atualizado: 20 de jul.


Tecnopolítica, Soberania Digital e Justiça Econômica na Era das Infraestruturas Descentralizadas


Nem banco, nem blockchain: um povo que inventa seu próprio valor. O que o Pix Social nos ensina sobre criptografia popular, soberania digital e o direito de criar futuro com as próprias mãos.


Entre o Pix oficial e o Pix popular



Em novembro de 2020, o Banco Central do Brasil lançou o Pix como uma das mais ambiciosas inovações da história recente das finanças públicas nacionais. Prometido como uma ferramenta para democratizar os pagamentos, eliminar intermediários e aumentar a velocidade das transações, o Pix rapidamente conquistou uma adesão massiva, se tornando parte do cotidiano de milhões de brasileiros. Entretanto, sob sua interface eficiente e amigável, esconde-se uma arquitetura altamente centralizada, tecnicamente opaca e politicamente sensível — que insere o Brasil em uma nova era de governança algorítmica da vida econômica.


É nesse cenário que emerge o Pix Social, não como simples variação ou projeto paralelo, mas como uma resposta tecnopolítica. O que está em disputa não é apenas o nome ou o meio de pagamento, mas a própria noção de moeda como infraestrutura de poder, de soberania e de redistribuição. Enquanto o Pix estatal consolida uma lógica de pagamento instantâneo com interoperabilidade total — porém sob controle exclusivo do Banco Central — o Pix Social propõe um horizonte distinto: moedas digitais comunitárias, territoriais, cooperativas e descentralizadas, que possam operar segundo os princípios da autogestão, da justiça redistributiva e da soberania informacional.


A proposta se inscreve em uma linhagem longa, porém ainda marginal, de práticas de finanças populares no Brasil: os bancos comunitários, as moedas sociais locais, os fundos rotativos, os arranjos solidários. O que o Pix Social traz de novo não é apenas sua materialidade digital, mas a combinação entre saberes populares e tecnologias emergentes, entre software livre, criptografia, blockchain cívico e tecnopolítica de base.


Mais do que uma ideia, o Pix Social é um projeto que confronta diretamente as assimetrias do sistema financeiro tradicional. Ele propõe um deslocamento radical: da lógica da centralização para a da rede; da regulação top-down para a governança coletiva; do lucro para o cuidado comunitário. Em tempos de plataformização da economia, vigilância digital e financeirização da vida, trata-se de uma tentativa insurgente de recuperar o controle sobre o fluxo da riqueza, o valor da troca e a política do comum.


Este artigo analisa a proposta do Pix Social a partir de múltiplas camadas: sua genealogia nas moedas comunitárias, suas bases tecnológicas e políticas, seus riscos e potenciais, e sua inserção na disputa maior pela soberania digital e econômica no século XXI. O que está em jogo, afinal, é mais do que uma alternativa ao sistema bancário tradicional: é o direito de imaginar e construir outras infraestruturas para viver, existir e circular valor.


A infraestrutura como política: o Pix e o poder digital do Estado


Toda infraestrutura é política. A afirmação, que atravessa autores como Bruno Latour, Susan Leigh Star e Benjamin Bratton, ganha contornos particularmente nítidos quando aplicada às plataformas de pagamento digital. O Pix, embora apresentado como um instrumento técnico neutro, é, na verdade, uma infraestrutura computacional de Estado, moldada por decisões políticas, ideológicas e econômicas — que impactam diretamente o cotidiano da população brasileira.


Ao inaugurar o Pix, o Banco Central não apenas criou um novo meio de transferência financeira, mas instituiu um mecanismo de ordenamento algorítmico da economia. Cada transação realizada é registrada, monitorada e arquivada em tempo real dentro de um ecossistema que articula dados pessoais, bancos, instituições públicas e, não raro, grandes corporações de tecnologia e vigilância. O Pix tornou-se, assim, um sistema de rastreamento do valor em movimento, operando como uma espécie de “malha fina permanente” da cidadania bancária.


Inspirado em modelos como o sistema de pagamentos instantâneos da Índia (UPI), o Pix consolida a tendência global de centralização digital dos fluxos econômicos sob a lógica da eficiência, da transparência e da suposta universalização do acesso. Contudo, essa mesma centralização permite que o Estado aprofunde modos de controle invisíveis, em que a vida financeira das pessoas torna-se passível de monitoramento algorítmico contínuo — com impactos que vão da tributação à segurança pública, passando pelo crédito e pelas políticas sociais.


Como lembra MARION FOURCADE (2019), os regimes digitais de valoração criam novas hierarquias e formas de dominação. O Pix, nesse contexto, não é apenas uma “ferramenta de inclusão financeira”, mas também uma infraestrutura de governo, que organiza, classifica e disciplina a circulação do valor de forma desigual. Seus critérios de acesso, seu modelo de dados, suas permissões e bloqueios, tudo isso constitui uma arquitetura de poder que escapa à deliberação democrática.


É também necessário compreender o Pix dentro da disputa geopolítica da moeda e da informação. O domínio do Estado brasileiro sobre esse sistema tem sido interpretado por analistas como uma tentativa de autonomia frente a players como Visa, Mastercard, Google Pay e Apple Pay. Porém, como revelou o recente incômodo de autoridades dos Estados Unidos com o sucesso do Pix, inclusive junto ao G20, a própria ideia de um sistema de pagamentos estatal eficiente e massificado pode ser vista como uma afronta à hegemonia financeira global — especialmente num momento em que a digitalização monetária é considerada um ativo estratégico.


Por isso, o Pix é ao mesmo tempo uma inovação progressista e um projeto de poder. Ele opera em camadas simultâneas: enquanto liberta da burocracia bancária, captura todos os rastros da economia cotidiana; enquanto amplia o acesso, reforça o cerco algorítmico; enquanto gera orgulho técnico, suscita disputas jurídicas e geopolíticas sobre autonomia, soberania e regulação.


Nesse sentido, é precisamente sobre essa ambivalência que o Pix Social propõe intervir. Não se trata de negar a tecnologia ou seu potencial, mas de propor outras formas de organizar a infraestrutura digital da economia, com base na descentralização, na justiça territorial e na governança popular. Se o Pix estatal representa o poder vertical da plataforma, o Pix Social busca desenhar um poder em rede — territorializado, participativo, transparente e comunitário.


Experiências de moedas comunitárias e bancos populares: o Sul que inventa soluções


Antes mesmo da existência do Pix, antes mesmo da explosão do dinheiro digital nos moldes que hoje conhecemos, comunidades populares já desenvolviam suas próprias respostas às exclusões financeiras impostas pelo modelo bancário tradicional. No coração das periferias urbanas e das zonas rurais esquecidas pelo capital, floresceram bancos comunitários e moedas sociais, iniciativas que, longe de serem apenas “alternativas”, constituem infraestruturas vivas de resistência, autonomia e redistribuição popular.


A história brasileira dessas moedas remonta ao início dos anos 2000, com destaque para o emblemático caso do Banco Palmas, criado em 1998 no Conjunto Palmeira, periferia de Fortaleza. Seu surgimento foi um gesto radical de insubordinação territorial: cansados de ver seu dinheiro sair do bairro sem retorno, moradores decidiram criar uma moeda própria, a Palma, que só circulava localmente. O resultado foi imediato — o comércio floresceu, a circulação interna de renda aumentou, e a confiança entre vizinhos se fortaleceu.


Esse modelo inspirou a criação de dezenas de outras iniciativas semelhantes pelo país: Banco Bem (ES), Banco Tupinambá (PA), Banco Paraíso (SP), entre muitos outros. Cada um com sua moeda local — o Bem, o Tupi, o Zumbi, o Maré — lastreada na confiança comunitária e muitas vezes associada a projetos de renda solidária, hortas urbanas, cooperativas, economia feminista e tecnologias sociais. Em comum, todos redesenharam o circuito do valor, retirando-o da lógica extrativista do capital e enraizando-o na prática da solidariedade territorial.


No campo institucional, o maior salto foi dado em Maricá (RJ), com a moeda social Mumbuca, criada em 2013 como parte de um programa municipal de renda básica. Diferente dos bancos comunitários autônomos, a Mumbuca nasceu com apoio e gestão direta da prefeitura, permitindo o escalonamento da proposta. Com a pandemia, mais de 40 mil famílias passaram a receber transferências diretas em Mumbuca, que só pode ser utilizada em estabelecimentos da cidade. O resultado foi duplo: mitigação da crise social e fortalecimento da economia local — uma política anticíclica digital e soberana, que hoje é referência internacional.


Essas experiências são fundamentais para compreender o projeto do Pix Social, que não surge do nada: ele brota de um campo popular já consolidado, que há décadas ensaia formas descentralizadas de circulação de valor. A grande inovação do Pix Social não está em sua finalidade — que é a mesma dos bancos comunitários —, mas na tentativa de conectar essas práticas ao universo das tecnologias livres, da criptografia cidadã e das infraestruturas digitais federadas.


É também um retorno a uma forma de pensar a economia que precede o capitalismo: uma economia do comum, do cuidado, da reciprocidade. Uma economia que opera não pela lógica da escassez, mas pela da abundância relacional. E que, agora, ao articular-se com a tecnopolítica e a infraestrutura digital descentralizada, pode escalar suas possibilidades de impacto, sem perder o vínculo com o chão de onde emerge.


Se o capital constrói suas redes para extrair, essas experiências constroem redes para redistribuir. E se a lógica da financeirização busca dissolver os territórios em abstrações algorítmicas, as moedas sociais e bancos comunitários reafirmam que o território é, antes de tudo, um corpo político-econômico que pulsa, decide, e se autogoverna.


O Pix Social, portanto, não inventa uma nova moeda. Ele reivindica o direito de continuar inventando o Brasil — esse outro Brasil, invisível aos olhos do Banco Central, mas visível nos circuitos quentes da solidariedade, da criatividade popular e da insurgência tecnopolítica do Sul.


O que é o Pix Social? Arquitetura de uma moeda popular digital


O Pix Social não é um aplicativo, uma fintech ou uma variação institucional do Pix estatal. Ele se apresenta como uma proposta político-tecnológica radical que emerge da base, dos territórios e dos coletivos comprometidos com a soberania digital, a justiça econômica e a autonomia dos povos. Seu nome, por mais provocador que pareça, é uma ocupação simbólica: um gesto de apropriação crítica da linguagem financeira dominante para colocar em cena outra lógica de valor, outra infraestrutura de moeda — enraizada no comum e projetada com o povo e para o povo.


A proposta, apresentada originalmente na plataforma Plantaformas.org e divulgada pelo perfil @pix.social.br no Instagram, define o Pix Social como um sistema de transferência de renda digital autogerido, descentralizado, cooperativo e territorial, guiado por princípios claramente assentados na tecnopolítica popular. Não se trata de competir diretamente com o Pix estatal, tampouco de reproduzir sua lógica. A proposta visa criar uma camada paralela e soberana de circulação de valor, conectada a moedas sociais já existentes, a comunidades organizadas e a tecnologias livres e emancipatórias.


Entre os princípios fundamentais da proposta estão a autonomia e a autogestão comunitária, de modo que a emissão, a distribuição e a auditoria da moeda sejam feitas por estruturas locais, e não por um ente centralizado do Estado ou por bancos privados. A governança, nesse modelo, é territorial, participativa e transparente. A soberania digital e a justiça econômica aparecem como fundamentos indispensáveis, expressos no compromisso com software livre, infraestrutura descentralizada e criptografia popular — tecnologias que garantem que os dados permaneçam sob controle das comunidades e que o valor circule onde ele é produzido.


O Pix Social também se estrutura como uma plataforma de interoperabilidade entre moedas locais, permitindo que territórios, comunidades, quilombos, favelas e periferias criem suas próprias moedas digitais — com identidade própria, mas articuladas por uma infraestrutura federada comum. Essa interoperabilidade, inspirada em modelos como o protocolo ActivityPub e as redes federadas como o Mastodon, propõe uma arquitetura onde cada território funciona como um nó soberano, interconectado, mas não subordinado a uma autoridade central.


Outro pilar fundamental é a transparência radical por meio de auditoria social e ferramentas de código aberto. Todas as transações devem ser rastreáveis por conselhos populares, sem depender de estruturas estatais de vigilância. Essa transparência não se confunde com o controle centralizado: ela é voltada ao fortalecimento da confiança comunitária e à responsabilização popular, não à vigilância estatal ou à extração de dados por corporações.


O Pix Social também se ancora na lógica do cuidado e da abundância, rejeitando os pressupostos da escassez que estruturam o sistema bancário tradicional. Ao invés de premiar o acúmulo e o crédito, o projeto busca estimular redes de solidariedade, circulação interna de valor e apoio mútuo. Ele propõe uma economia que não seja dominada pela lógica da competição, mas que floresça sob os princípios da reciprocidade e da justiça territorial.


Nesse sentido, o Pix Social não é apenas um instrumento técnico. Ele se configura como um projeto de reterritorialização digital, um gesto insurgente de soberania informacional que afirma: nossos dados, nossa moeda, nossas regras. Ao reivindicar o controle sobre sua própria infraestrutura, o Pix Social propõe romper com a dependência de servidores estrangeiros, plataformas privadas e estruturas centralizadas, construindo uma alternativa autônoma e segura a partir dos territórios.


O uso do nome “Pix” dentro dessa proposta também carrega uma intencionalidade política. Mais do que provocar, trata-se de disputar o imaginário e a linguagem. O termo, já consagrado no cotidiano popular como sinônimo de pagamento rápido, é aqui ressignificado como partilha, interdependência, experiência solidária. A proposta não deseja copiar o sistema bancário oficial, mas hackeá-lo simbolicamente, abrindo espaço para uma transição entre o que já é conhecido pela população e o que ainda está por vir como possibilidade emancipatória.


Essa apropriação criativa, contudo, não vem sem desafios. Há questões jurídicas sobre o uso da marca, riscos regulatórios e tensões com o Banco Central. Mas justamente por expor essas contradições, o Pix Social ilumina as fronteiras entre a tecnocracia financeira e as insurgências populares digitais. Ele escancara o que está em disputa: não apenas um sistema de pagamento, mas o direito de imaginar e construir novas formas de viver, trocar e existir.


O Pix Social não é um produto acabado. Ele é uma proposta viva, um território em construção, um código aberto de possibilidades. Sua implementação exigirá múltiplos arranjos, alianças e experiências práticas. Mas sua existência já provoca uma inflexão: ela nos convida a pensar a moeda como um campo de disputa política e tecnológica, e não como uma abstração técnica neutra. E é nesse campo que se dará uma das batalhas mais decisivas do nosso tempo.


Tecnopolítica, Blockchain e Soberania Informacional: uma disputa por infraestrutura


A disputa pela infraestrutura digital é, no século XXI, a forma mais sofisticada de disputa por poder. Muito além dos algoritmos, das interfaces e dos modismos tecnológicos, o que está em jogo são os fundamentos invisíveis que organizam nossas formas de vida: quem controla o fluxo da informação, quem detém os meios de autenticação, validação, armazenamento, processamento e transmissão dos dados. Em outras palavras, quem define as regras que regem o mundo invisível das máquinas — e, por extensão, o mundo visível das relações humanas, sociais e econômicas.


É nesse campo que o Pix Social se inscreve: não como um produto digital, mas como um gesto tecnopolítico que desafia as arquiteturas hegemônicas de poder digital. Ele propõe uma reordenação radical da infraestrutura monetária, não apenas com base em princípios redistributivos e comunitários, mas com uma crítica aguda à centralização computacional e à vigilância algorítmica. Ao defender tecnologias descentralizadas, moedas digitais locais, código aberto, criptografia cidadã e governança popular, o projeto se posiciona na vanguarda de uma batalha global que envolve soberania informacional, autodeterminação territorial e autonomia econômica.


Essa disputa está profundamente conectada ao avanço dos sistemas de pagamento digital centralizados, que se tornaram — como alerta Benjamin Bratton — verdadeiras megarredes soberanas não estatais, capazes de mapear, classificar e modelar comportamentos em tempo real. O sistema Pix, nesse sentido, representa a versão estatal de uma infraestrutura de controle, em contraste com as plataformas privadas como Apple Pay, Google Pay ou Mercado Pago, que operam com lógicas semelhantes, mas com propósitos corporativos e comerciais.


O que o Pix Social traz de disruptivo é a proposição de uma nova lógica infraestrutural: territorializada, federada, comunitária e transparente. Ao propor o uso de tecnologias de blockchain cívico e bancos de dados distribuídos, a proposta abre espaço para uma reorganização da confiança — que deixa de ser verticalizada (baseada no Estado ou no banco privado) e passa a ser horizontal, enraizada na governança popular e nas relações comunitárias.


Mas aqui é preciso fazer uma distinção essencial. O projeto do Pix Social não adere de forma acrítica à cultura blockchain dominante, que muitas vezes reproduz os mesmos vícios do neoliberalismo sob uma roupagem pseudo-libertária. O que está em pauta não é a promessa tecnofetichista de uma “moeda do povo” gerida por códigos imutáveis e redes de mineração energívoras, mas sim o uso estratégico e situado de tecnologias descentralizadas a serviço da soberania popular. Isso significa adotar blockchains com baixo consumo energético, baseados em confiança social e validadores comunitários, priorizando a auditabilidade, a simplicidade e a replicabilidade local — não a especulação financeira ou a lógica de escassez artificial.


Essa abordagem dialoga diretamente com o conceito de soberania informacional, que compreende o direito dos povos de controlar seus próprios fluxos de dados, sua memória digital, suas infraestruturas críticas e seus modos de governança algorítmica. Como já alertou Evgeny Morozov, não há soberania política possível num mundo em que os dados, os servidores e os protocolos fundamentais da vida digital estão nas mãos de poucas corporações privadas — ou de Estados com projetos imperiais.


O Pix Social, ao construir uma infraestrutura descentralizada com base territorial, propõe um caminho alternativo à captura da vida digital por essas lógicas extrativistas. Ele faz isso ao mesmo tempo em que reconhece o valor estratégico da infraestrutura: sua materialidade técnica, seus protocolos, sua arquitetura. Afinal, como bem nos ensinou Susan Leigh Star, as infraestruturas tendem a desaparecer aos olhos — justamente porque naturalizamos seu funcionamento. O Pix Social escancara essa invisibilidade e a transforma em campo de batalha política.


Trata-se, portanto, de um projeto que conecta o chão da favela com os debates mais avançados sobre descentralização, democracia digital e infraestrutura crítica. Que une o território à rede, o cuidado à criptografia, o comum à computação. E que compreende que não basta criar plataformas alternativas: é preciso disputar o próprio conceito de plataforma, recodificá-lo, devolver-lhe densidade política e materialidade social.


Mais do que uma proposta financeira, o Pix Social é uma insurgência infraestrutural — uma tentativa de retomar os cabos, os códigos e os circuitos que moldam o cotidiano das maiorias. Uma proposta que recusa a neutralidade tecnológica e afirma: toda infraestrutura é ideológica, todo protocolo é um pacto político, toda arquitetura computacional é uma forma de governo.


E nessa disputa, os territórios populares não querem mais ser apenas usuários. Eles exigem ser autores de suas infraestruturas, arquitetos de seus próprios mundos possíveis.


Riscos, regulação e estratégia: o nome Pix, o Banco Central e a batalha legal


Toda insurgência que toca as estruturas do poder — ainda que por vias pacíficas, simbólicas ou tecnológicas — encontra um muro. No caso do Pix Social, esse muro se manifesta nas fronteiras da regulação financeira, na disputa pelo controle da linguagem institucional e no cerco jurídico em torno do nome “Pix”, propriedade intelectual do Banco Central do Brasil. Mais do que uma questão de nomenclatura, esse embate revela o quanto o vocabulário da vida cotidiana — mesmo o mais banal, como um nome de aplicativo — é cercado por barreiras institucionais que delimitam o que pode ou não ser imaginado fora do script estatal.


O nome “Pix”, que na proposta do Pix Social é propositalmente mantido como gesto de apropriação simbólica, tornou-se uma marca consolidada, amplamente reconhecida e, por isso mesmo, juridicamente protegida. Desde seu lançamento, o Banco Central tem se posicionado de forma vigilante quanto ao uso indevido da marca, incluindo ações de notificação extrajudicial a empresas privadas que tentaram se associar à imagem do Pix em produtos e serviços. Embora o Pix Social não seja uma iniciativa comercial nem pretenda se confundir com o sistema oficial, o uso do nome desafia inevitavelmente os limites jurídicos da propriedade intelectual estatal — e, mais ainda, o monopólio do Estado sobre os significados do dinheiro digital.


Mas é justamente nesse ponto que a proposta se radicaliza: ao utilizar o termo “Pix”, a iniciativa não apenas denuncia a centralização da linguagem monetária, como insinua que a infraestrutura digital de pagamentos não pode ser propriedade exclusiva de nenhuma instituição — sobretudo quando é financiada com recursos públicos e utilizada por mais de 150 milhões de pessoas. Em outras palavras, o povo que sustenta o sistema exige o direito de reapropriá-lo, reconfigurá-lo e ressignificá-lo.


Contudo, os riscos não se limitam à questão do nome. O Pix Social também desafia — ou no mínimo tensiona — os marcos regulatórios do sistema financeiro nacional, ao propor a criação de moedas digitais territoriais, baseadas em tecnologias descentralizadas e geridas por comunidades autônomas. Isso o coloca em uma zona cinzenta diante das normas do Banco Central, da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) e do COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras). A depender da escala e da forma de operação, essas moedas podem ser interpretadas como “ativos digitais”, “meios de pagamento não autorizados” ou mesmo “moedas paralelas” — termos frequentemente utilizados para enquadrar tentativas populares de organização econômica fora do sistema bancário oficial.


Vale lembrar que iniciativas semelhantes já sofreram algum tipo de restrição. O Banco Palmas, por exemplo, passou por processos judiciais no início dos anos 2000, sendo acusado de emitir moeda ilegal. A moeda Mumbuca, embora hoje institucionalizada em Maricá, também enfrentou resistência nos órgãos reguladores em sua fase inicial. A diferença, agora, é que o contexto digital amplia o grau de vigilância — ao mesmo tempo em que aumenta a potência de escala das propostas insurgentes. Um sistema descentralizado pode ser replicado por dezenas ou centenas de comunidades, escapando do controle vertical e exigindo novos marcos jurídicos — baseados na soberania dos territórios e na legalidade da autogestão popular.


Outro aspecto estratégico que merece atenção é o grau de independência tecnológica do Pix Social. Sua sustentação dependerá de servidores próprios, sistemas de autenticação criptográfica, protocolos auditáveis e formação de quadros técnicos comunitários capazes de manter a infraestrutura funcionando sem recorrer às plataformas privadas centralizadas (como Google Cloud, AWS ou Microsoft Azure). Se não houver soberania técnica, a soberania econômica será frágil e facilmente capturada — como tantas experiências anteriores que ruíram por dependência de plataformas fechadas.


Por isso, mais do que defender a legalidade do projeto, é preciso disputar sua legitimidade — e abrir um campo público de debate sobre o direito à moeda como direito coletivo, e sobre o uso da tecnologia como forma de expressão política e econômica dos territórios populares. A legislação vigente não pode ser um instrumento de contenção da imaginação coletiva. Ao contrário: ela precisa ser tensionada, atualizada e descolonizada, de modo a reconhecer a legitimidade de projetos que, como o Pix Social, nascem da necessidade concreta das comunidades e propõem alternativas éticas, justas e sustentáveis à financeirização opressiva da vida.


A batalha legal, portanto, não é apenas jurídica. Ela é linguística, simbólica, técnica, econômica e política. E seu desfecho dependerá não apenas da letra fria da lei, mas da força viva das redes que sustentarem o projeto. A história mostra que onde o direito recua, a legitimidade popular pode avançar — e abrir caminho para que o impensável se torne real.


Governança popular e infraestrutura cidadã: caminhos para uma nova moeda


Se há algo que distingue o Pix Social das tentativas corporativas ou tecnocráticas de reinventar a moeda é o fato de que, desde sua concepção, ele não propõe apenas uma solução técnica para a exclusão financeira, mas uma reconfiguração do poder sobre o valor e sobre o modo como ele circula. Sua ambição não é operar apenas como uma ferramenta alternativa de pagamento, mas como uma experiência viva de reinvenção institucional — que nasce da prática coletiva, se organiza a partir do território e busca inaugurar formas inéditas de governança digital enraizada no comum.


A criação de uma moeda popular, digital e autogerida exige, antes de tudo, uma base sólida de confiança. E confiança, nesse contexto, não é uma abstração subjetiva: é uma infraestrutura relacional, construída por meio de vínculos sociais, mecanismos de transparência, rituais de decisão coletiva e formas reconhecíveis de justiça. Por isso, o Pix Social não pode depender de "usuários finais", como os aplicativos bancários convencionais. Ele precisa de comunidades deliberativas. Precisa de conselhos territoriais, assembleias abertas, comitês de auditoria cidadã, espaços pedagógicos, círculos de escuta e redes de apoio técnico-comunitário. A moeda não é neutra — ela é um reflexo do tipo de mundo que queremos construir.


Nesse sentido, a governança popular proposta pelo Pix Social exige romper com a verticalidade do sistema financeiro atual, substituindo-a por modelos distribuídos, federativos e territoriais. Cada comunidade que adere à proposta pode ser entendida como um "nó" soberano em uma rede descentralizada: com autonomia para emitir, regular, distribuir e fiscalizar sua moeda local, mas conectada a uma federação de outros territórios que compartilham princípios comuns. Trata-se, portanto, de uma arquitetura em rede, inspirada no ecossistema do software livre e da tecnopolítica insurgente, em que a interdependência substitui a hierarquia, e a reciprocidade substitui a competição.


Esse modelo federado exige, no entanto, um conjunto mínimo de infraestruturas compartilhadas, que garantam interoperabilidade, segurança e continuidade. Entre elas, estão servidores comunitários (preferencialmente distribuídos), um protocolo de autenticação descentralizado, carteiras digitais abertas, um repositório público de código-fonte e um sistema transparente de registro de transações — tudo isso guiado por princípios éticos e técnicos que priorizem a soberania dos dados, a privacidade da população e a rastreabilidade coletiva das operações.


Além disso, a sustentabilidade do Pix Social não pode depender de capital de risco, investidores privados ou parcerias com corporações extrativistas. Sua sustentabilidade precisa estar ancorada no próprio ecossistema que o torna possível: em cooperativas de crédito popular, fundos rotativos solidários, parcerias com universidades públicas, associações de bairro, coletivos culturais, quilombos, aldeias, sindicatos e redes de economia solidária. Cada território participante deve ser um centro de inovação social e política, mas também um laboratório de educação financeira crítica, de formação tecnopolítica e de co-criação de modelos econômicos situados.


A implementação, portanto, exige um roadmap cuidadoso e coletivo. Um possível caminho seria iniciar por pilotos locais em territórios já organizados e com experiência em moedas sociais, como Maricá, Fortaleza, Belém ou periferias de São Paulo. Esses territórios funcionariam como campos de teste e demonstração, permitindo que a ferramenta amadureça em contato com as tensões e potências do mundo real. A partir daí, poderia-se escalar por meio de uma rede federativa, conectando territórios em rede, compartilhando boas práticas, ajustando os protocolos e garantindo que a expansão não comprometa os princípios fundadores.


Mais do que criar uma nova moeda, trata-se de fundar um novo modo de fazer política a partir da infraestrutura. Uma política do comum, da partilha e da escuta — que valorize o saber local tanto quanto o código, que reconheça a importância da alfabetização digital tanto quanto a alfabetização financeira, e que compreenda que nenhuma revolução será completa se não incluir também uma reinvenção radical dos nossos instrumentos de troca.


O Pix Social é, nesse sentido, uma semente de futuro plantada no terreno das ruínas do sistema financeiro. Ele nos convida a imaginar a moeda como um bem comum — algo que se constrói, se compartilha, se cuida e se transforma coletivamente. Não se trata de negar a tecnologia, mas de reinscrevê-la em um campo de sentido onde ela possa servir à vida e não ao lucro. Onde ela seja uma ferramenta de emancipação, e não de dominação. Onde ela seja, enfim, expressão da soberania popular em sua forma mais concreta: a decisão coletiva sobre o que vale, para quem, e por quê.


O futuro como território disputado: entre a criptografia popular e o capitalismo de plataforma

O que está em jogo com o Pix Social não é apenas a criação de uma nova moeda. É a luta por um futuro habitável em um mundo cada vez mais governado por plataformas, algoritmos e infraestruturas opacas. Num tempo em que a linguagem da tecnologia foi sequestrada pelo capital — onde “inovação” virou sinônimo de extração de dados, “solução” virou sinônimo de privatização e “escala” virou sinônimo de dominação —, propor uma moeda digital comunitária é, por si só, um ato de rebelião. Uma recusa em aceitar que o futuro já esteja decidido. Uma afirmação de que o presente ainda pulsa, ainda pode ser desviado, recodificado, reescrito.


Vivemos em um campo de batalha onde o valor — econômico, simbólico, social — é mediado por redes que não controlamos. Plataformas como Google, Amazon, Apple, Meta e bancos digitais hegemônicos exercem um poder que não passa pelas urnas, mas que molda com brutalidade o cotidiano de bilhões de pessoas. Elas definem como nos comunicamos, como consumimos, como desejamos e até como votamos. Na sua lógica, tudo é mensurável, calculável e monetizável. Até a solidariedade.


Contra esse mundo administrado por silício e acionistas, o Pix Social se insurge como um projeto de reapropriação da moeda como linguagem e como território. Ele nos lembra que toda moeda é, antes de tudo, uma convenção social — um pacto de confiança, uma tecnologia de reciprocidade, uma ferramenta simbólica que expressa não só o que vale, mas o que é digno de valer. E que esse pacto pode, sim, ser reconstruído de baixo para cima, com outras ferramentas, outros códigos e outros corpos.


É aqui que a criptografia popular entra em cena. Não como fetiche técnico, mas como estratégia de defesa e autonomia. Em vez de ser um privilégio das corporações e das agências de segurança, a criptografia precisa ser colocada a serviço das comunidades: como proteção contra a vigilância, como blindagem contra a captura de dados e como garantia de soberania informacional. Num mundo em que a transparência virou pretexto para o controle total, a opacidade estratégica das comunidades é também uma forma de luta — um direito ao silêncio, ao segredo, ao espaço não mapeado.


Nesse contexto, o futuro aparece menos como linha do tempo e mais como território em disputa. Não se trata de esperar passivamente por uma revolução tecnológica redentora, nem de resistir nostálgicos ao passado. Trata-se de plantar agora, no presente, as condições de possibilidade de uma outra temporalidade. Uma temporalidade feita de redes de cuidado, economias do comum, infraestruturas solidárias, moedas afetivas, pedagogias libertárias e tecnologia insubmissa. Trata-se de disputar o desenho das redes, os protocolos de validação, a arquitetura dos aplicativos, o destino das nuvens.


O Pix Social, nesse cenário, é mais do que uma proposta de política pública. É uma poética de reexistência digital. Ele nos convida a imaginar comunidades que não apenas circulam riqueza, mas produzem valor em outras linguagens — valor que não se mede em lucro, mas em pertencimento, nutrição, memória, autonomia. Ele é, ao mesmo tempo, ferramenta, símbolo e promessa. Ferramenta de redistribuição, símbolo de desobediência, promessa de outro mundo possível.


E talvez seja isso o mais bonito: que uma moeda, esse objeto tão frequentemente reduzido a cifras e juros, possa se tornar ponte entre mundos, encruzilhada entre saberes, gesto de rebeldia, corpo vivo da política. Que o digital não seja mais território das corporações e dos militares, mas solo fértil para a imaginação radical dos povos.


Sim, o futuro está em disputa. E o Pix Social é uma das chaves dessa disputa — uma chave que não abre cofres, mas abre portas.

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