Colonialismo científico
- Rey Aragon
- 16 de jul.
- 19 min de leitura

O Colonialismo Científico e a Fetichização do Conhecimento no Capitalismo de Plataforma
A ciência virou mercadoria. O pensamento crítico foi domesticado. E as ideias do Sul global seguem sequestradas por uma indústria editorial bilionária que lucra com a produção intelectual de quem menos pode publicar. Neste artigo, uma análise visceral sobre o colonialismo científico contemporâneo, o domínio das big techs e a sabotagem teórica que travou o desenvolvimento do pensamento estratégico no Sul. Um mergulho profundo na fetichização do conhecimento, na alienação acadêmica e nas vanguardas que desafiam o império da validação. Do Brasil ao mundo, a revolta dos que pensam começou.
O escândalo invisível.

Era madrugada. No quarto apertado de um pesquisador bolsista no interior do Brasil, as luzes de uma tela azulada refletiam no rosto exausto de quem, há dez horas seguidas, revisava um artigo científico para uma revista que jamais lhe pagaria um centavo. O texto precisava estar pronto antes do prazo — não por vaidade, mas por sobrevivência. Era preciso publicar para existir. Era preciso engajar para ser lembrado. Era preciso vencer o jogo sem saber as regras, sem possuir o tabuleiro. E, mesmo após aceito, o artigo deixaria de ser seu: pertenceria à editora, ao Qualis, ao DOI, ao índice de impacto. O pesquisador, esse seria deletado da equação como se fosse uma variável descartável da engrenagem.
Esta é a cena cotidiana da elite científica do Sul global. Invisível. Exausta. Sofisticadamente explorada.
O escândalo não está nos porões de uma universidade corrupta, nem nos exageros de um sistema falido — mas sim na estrutura elegante, bilíngue e globalizada de uma indústria editorial que transforma conhecimento em commodity, pesquisadores em freelancers não-remunerados e saberes em ativos de especulação cognitiva. Tudo isso com o selo da ciência, da meritocracia, da inovação. Nada mais parecido com o colonialismo do que esse sistema que devora inteligências locais e as regurgita como produtos do Norte.
O que era para ser a mais alta expressão do bem comum — o conhecimento — virou um luxo cercado por algoritmos, métricas e paywalls. Nos países periféricos, cientistas lutam para ter acesso aos próprios textos que escreveram. E quando conseguem publicar, o fazem em inglês, para atender uma comunidade que raramente se interessa pelos problemas de suas terras, suas gentes, seus contextos. O pesquisador vira uma marca. O paper vira uma moeda. E a ciência vira uma vitrine onde o Sul exibe suas ideias para serem compradas por olhos que jamais as verão com autonomia.
Vivemos a era da fetichização do conhecimento como mercadoria. E como toda mercadoria no capitalismo, ele carrega em si o rastro do sangue, do tempo e da alienação de quem o produziu.
Não há chicotes, nem grilhões, nem feitorias visíveis. Mas há um regime sofisticado de vigilância epistêmica: métricas, indexadores, revisores anônimos, barreiras linguísticas, rankings, fatores H, editoras multinacionais, plataformas de autopromoção científica. Tudo isso criando uma arquitetura global onde o pensamento periférico só é validado se falar a língua do centro, seguir sua agenda e performar dentro de sua lógica mercantil.
E no centro do palco está o cientista do Sul — publicando de graça, revisando de graça, traduzindo de graça, jogando um jogo onde não há vitória possível sem submissão simbólica.
O escândalo é esse: o colonialismo científico não só sobreviveu ao século XX — ele se refinou, se digitalizou e se travestiu de excelência acadêmica.
Do colonialismo das caravelas ao colonialismo dos papers.

O colonialismo nunca se contentou em dominar territórios. Ele precisava dominar as ideias. Não bastava extrair ouro, açúcar, pau-brasil — era preciso também extrair narrativas, epistemologias, modos de ver e dizer o mundo. O que as caravelas abriram com pólvora, as universidades metropolitanas fecharam com indexadores. O que os colonizadores impuseram com cruz e espada, o sistema editorial global perpetua com métricas, revistas e rankings.
Se no século XVI o indígena era visto como ignorante porque não rezava em latim, hoje o pesquisador do Sul é visto como irrelevante porque não publica em inglês. Se antes os saberes originários foram queimados como heresia, hoje os saberes locais são ignorados como “não indexados”. Mudaram os instrumentos. A lógica é a mesma.
Essa é a engrenagem do que chamamos de colonialismo científico: um sistema de produção, validação e difusão de conhecimento que concentra poder nos países centrais, impõe padrões universais baseados em sua cultura e economia, e subalterniza todo saber que nasce fora do eixo euro-americano. É uma continuidade da dominação colonial clássica, agora transmutada em política editorial, imperialismo linguístico e controle informacional.
E o Brasil, como sempre, ocupa o lugar emblemático nessa arquitetura: rico em intelectuais, pobre em soberania epistemológica. Nosso território foi laboratório da medicina tropical, da antropologia exotizante, da psicologia comportamental importada e, mais recentemente, da ciência de dados aplicada à manipulação política. Sempre objeto, quase nunca sujeito. Sempre citado, quase nunca ouvido.
A geopolítica do conhecimento tem sua cartografia própria. E nela, as universidades de Harvard, Oxford, Stanford, Cambridge, MIT e similares ocupam o papel das antigas metrópoles. São elas que definem o que é ciência de ponta, o que é “relevante”, o que deve ser financiado, o que deve ser lido. Suas editoras controlam a maior parte das revistas de alto impacto. Seus algoritmos de ranqueamento regem a visibilidade de tudo que circula na academia. Suas línguas, seus métodos, suas ontologias colonizam subjetividades ao redor do mundo — inclusive as dos mais críticos.
O colonialismo do saber é ainda mais perverso porque não se impõe pela força, mas pela sedução: ele faz com que os pesquisadores da periferia desejem ser aceitos pelas metrópoles acadêmicas, se moldem a seus critérios, escrevam como eles, citem os seus autores, ignorem os próprios territórios. É um processo de autos subalternização incentivada, onde o prestígio vem pela via da negação de si.
Essa lógica está tão naturalizada que se tornou até mesmo critério de avaliação institucional. Programas de pós-graduação no Brasil são ranqueados conforme a quantidade de artigos publicados em periódicos internacionais, geralmente em inglês, frequentemente controlados por editoras do Norte. A CAPES, o CNPq e as agências de fomento acabaram por reproduzir, muitas vezes sem querer, os mesmos filtros coloniais que um dia serviram à catequese e à assimilação cultural.
Estamos diante de um novo tipo de pilhagem: a pilhagem epistêmica. Nossos dados, nossas histórias, nossas questões, nossas doenças, nossas soluções — tudo é capturado, processado e devolvido em papers assinados por pesquisadores de centros estrangeiros, com verbas internacionais, publicados em revistas que sequer estão disponíveis nas bibliotecas públicas das universidades brasileiras. O saque continua. Só mudou de capa.
A produção científica do Sul global é muitas vezes tratada como matéria-prima bruta, a ser processada pelas instituições centrais. Somos os fornecedores de dados, de corpos, de experimentos. A autoria? Fica com quem detém o poder editorial.
Se antes nossa terra era considerada vazia para justificar a colonização, hoje nosso pensamento é considerado “não referenciado”, “pouco citado”, “não confiável” — para justificar a negação de nossa autoridade intelectual.
A epistemologia colonial tem mil faces, mas um único objetivo: garantir que o centro continue a ser o centro. E para isso, é preciso manter o Sul no papel de satélite cognitivo.
A boa notícia é que cada vez mais vozes se levantam contra esse ciclo. A má notícia é que ainda estamos no início da ruptura.
O fetiche do conhecimento e a indústria dos invisíveis.

Há uma nova religião silenciosa no mundo acadêmico: a dos indicadores. H-Index, Impact Factor, Altmetrics, número de citações, número de visualizações, número de seguidores nas plataformas acadêmicas. O templo? O sistema editorial científico internacional. Os deuses? As grandes editoras. Os fiéis? Milhões de pesquisadores ao redor do mundo que oferecem suas descobertas, seu tempo, seu esforço, seu pensamento — tudo de graça — em troca da promessa de visibilidade, prestígio e permanência no jogo.
Estamos vivendo a era da fetichização do conhecimento como mercadoria. Um saber que não vale por sua potência de transformação, mas por sua capacidade de performar em métricas. Um artigo que não é medido por seu impacto social, mas por quantas vezes foi citado por outros artigos que também tentam sobreviver ao mesmo jogo. Um ciclo fechado, autossuficiente e, acima de tudo, alienado da realidade concreta.
É aqui que o fetiche se revela: o conhecimento, transformado em coisa, esconde o trabalho, o contexto, a história e a luta que o produziu. Esconde o pesquisador que passou noites em claro, a estudante que levantou dados num território vulnerável, o professor precarizado que escreveu entre aulas mal pagas. Esconde, sobretudo, que essa produção é oferecida de graça a empresas que lucram bilhões com ela.
A Elsevier, por exemplo, teve uma margem de lucro superior à da Apple em 2023. A Springer Nature, a Taylor & Francis e a Wiley formam com ela um verdadeiro oligopólio editorial que controla a maior parte da produção científica de alto impacto no mundo. Essas editoras não financiam as pesquisas. Não contratam os revisores. Não remuneram os autores. Elas vendem um conteúdo que não produziram — e fazem isso com um poder de cartel que estrangularia qualquer outro setor da economia. E ainda assim, gozam do respeito irrestrito de agências de fomento, universidades e governos.
É a maior extração de mais-valia do século XXI: o pesquisador entrega seu saber gratuitamente, abre mão dos direitos autorais, revisa os trabalhos dos colegas também de forma gratuita, e depois precisa pagar para acessar aquilo que ele mesmo escreveu — ou, pior, para tornar acessível o que ele mesmo produziu.
Essa lógica supera a mais-valia tradicional. Aqui não há salário. O cientista do Sul global não é nem proletário — é um servidor voluntário da indústria do conhecimento, que opera movido pela promessa de reconhecimento simbólico: uma citação, um convite para um congresso, uma posição numa universidade pública ameaçada por cortes orçamentários.
E o que é mais perverso: ele sabe disso. Ele vê a engrenagem. Mas não pode parar de girá-la. Porque o sistema o prende por dentro — como reputação, como currículo Lattes, como pressão por produtividade, como medo de ser esquecido.
A essa lógica, chamamos de playlabor científico: o jogo do engajamento acadêmico, onde se misturam trabalho, performance, autopromoção e desejo de reconhecimento. Um jogo com regras claras, onde vencer significa publicar mais, ser citado mais, ser visto mais. Um jogo onde o pesquisador se transforma em marca, e o saber em moeda. Um jogo violento, silencioso e solitário, onde todos fingem não estar jogando — enquanto disputam cada milímetro de visibilidade.
É nesse ambiente que emergem as plataformas como ResearchGate, Academia.edu, Google Scholar e tantas outras. Não são apenas ferramentas de divulgação — são mecanismos de vigilância, competição e reforço da lógica mercantil. Elas premiam quem compartilha mais, quem é mais visualizado, quem atrai mais tráfego. Elas transformam o tempo de pesquisa em tempo de exposição. O cientista, aqui, é também produtor de conteúdo. Influencer acadêmico. Engajado e engajável.
E quem comanda tudo isso? Os mesmos conglomerados de tecnologia que hoje controlam os dados, os algoritmos e a infraestrutura digital do planeta. As Big Techs já entenderam que o conhecimento é o novo ouro. E estão explorando as minas com ferramentas que parecem neutras, mas são profundamente colonizadoras.
O resultado é uma nova classe de trabalhadores invisíveis — os cientistas do Sul global — que alimentam a máquina sem receber por isso, e ainda assim são cobrados por resultados, métricas e desempenho. São autores que não têm propriedade sobre seus textos. São intelectuais tratados como mão de obra bruta. São pensadores condenados a performar para sobreviver.
A indústria científica global não quer ciência. Quer papers. Não quer transformação. Quer indexação. Não quer crítica. Quer conformidade estilística.
E quando o pensamento se transforma em produto, a crítica se transforma em risco. E pensar fora das regras se torna um ato de insubordinação.
O império do inglês e as plataformas como metrópoles.

No novo mapa-múndi da ciência, não basta ter algo a dizer. É preciso dizer em inglês, com as palavras certas, no formato certo, para o público certo. Não aquele que precisa da pesquisa, mas aquele que pode validá-la.
O inglês, que já foi a língua da diplomacia, tornou-se a língua da autoridade epistêmica. Mais do que idioma, virou protocolo. Quem não fala a língua do império, não entra no templo. Mesmo que esteja curando doenças tropicais, propondo novas ontologias, ou desenvolvendo tecnologias sociais enraizadas em seu território. Se não fala inglês, não é “científico”. E se fala inglês mal, é “exótico”.
Esse é o primeiro filtro invisível do novo colonialismo: a língua como barreira de classe, território e saber. Não se trata apenas de comunicação — trata-se de poder. Porque quem define o que é publicável, o que é relevante, o que é “bom inglês”, são os editores do Norte global, quase todos brancos, quase todos formados por universidades coloniais, quase todos alheios às realidades sobre as quais autorizam ou silenciam.
O segundo filtro é algorítmico: as plataformas acadêmicas, que hoje medem a performance de um pesquisador como se fosse uma empresa. ResearchGate, Academia.edu, Google Scholar, Scopus, Web of Science — todos operam como os novos portos do saber, onde é preciso pagar pedágio em engajamento para ter direito à travessia. Mais downloads, mais visualizações, mais interações, mais palavras-chave, mais produtividade. Menos profundidade. Menos tempo. Menos crítica.
Essas plataformas não apenas hospedam o conteúdo — elas moldam a forma como o conteúdo é produzido. Elas induzem comportamentos, impõem tendências, retroalimentam algoritmos. Os temas que viralizam se tornam mais citados. Os que são mais citados recebem mais financiamento. Os que recebem mais financiamento se tornam mais publicáveis. O ciclo fecha. A dominação se automatiza.
E quem está por trás dessa arquitetura? As Big Techs, é claro. Empresas que já controlam o fluxo da informação, a infraestrutura da nuvem, o mercado de dados e, agora, o capital cognitivo. Google, Microsoft, Elsevier (sim, Elsevier é Big Tech), Springer, Amazon Web Services — todas conectadas em uma teia onde a ciência virou só mais um ramo da economia da vigilância.
Essas plataformas funcionam como as novas métropoles epistêmicas. Os centros onde o saber é processado, ranqueado, distribuído. E onde os saberes do Sul só têm valor se forem traduzidos, higienizados e entregues nos moldes exigidos. Não é mais apenas a escravidão do corpo — é a escravidão da linguagem, do formato, da reputação.
O pesquisador periférico hoje precisa escrever como um anglo-saxão, pensar como um estruturalista europeu e citar como um progressista neoliberal. Precisa calibrar seu vocabulário, enxugar suas insurgências, esconder seus territórios. Precisa ser universal — desde que esse universal seja a versão iluminada do Norte.
Mesmo os periódicos "alternativos" muitas vezes reproduzem essa lógica. Porque também querem indexação. Também querem prestígio. Também querem ser lidos — ainda que para isso precisem renunciar a sua linguagem original, sua episteme própria, sua alma de território.
E o mais cruel: os pesquisadores sabem disso. E jogam esse jogo porque precisam sobreviver. Porque o sistema de avaliação das universidades exige isso. Porque os editais cobram isso. Porque os pares valorizam isso. É uma lógica perversa de autocolonização meritocrática, onde o cientista se molda para agradar, e depois se convence de que foi por escolha.
O império do inglês não é apenas uma questão de idioma — é uma geopolítica da fala autorizada. E as plataformas não são apenas ferramentas — são dispositivos de domesticação epistêmica.
É preciso ter clareza: o saber virou ativo, e as plataformas são as novas bolsas de valores da ciência. Cada artigo é um investimento. Cada citação, uma valorização. Cada pesquisador, uma startup de si mesmo.
E nessa bolsa, o Sul continua sendo matéria-prima. Ainda que agora travestido de autor indexado.
Brasil: laboratório e trincheira.

O Brasil não foi apenas vítima do colonialismo científico. Foi — e ainda é — um dos seus principais laboratórios.
Durante as últimas duas décadas, nossas universidades públicas viveram um paradoxo brutal: enquanto formavam gerações de mestres e doutores como nunca antes na história, viam suas estruturas financeiras, epistemológicas e simbólicas serem moldadas a um padrão que não dialogava com as urgências do povo, mas com os imperativos de um mercado editorial e cognitivo global que jamais se interessou pelas favelas, pelas florestas ou pelos terreiros.
O processo se intensificou a partir da reconfiguração geopolítica do país: saímos da ALCA, buscamos protagonismo no Sul global, ampliamos o investimento público em ciência, e ousamos pensar com nossas próprias cabeças. O castigo veio rápido. E violento.
O golpe de 2016 não foi apenas jurídico-parlamentar. Foi epistêmico. Foi um ataque sistemático à soberania do pensamento brasileiro. Asfixiaram as universidades, cortaram bolsas, extinguiram ministérios, fecharam institutos, humilharam pesquisadores em rede nacional. Transformaram o cientista em suspeito. A ciência, em privilégio. O saber, em ameaça.
O que estava em jogo não era só orçamento. Era hegemonia cognitiva. O que estava em disputa não era só a produção de conhecimento — mas o direito de nomear o real a partir de outro lugar que não o Norte global.
E o Brasil, por sua potência, por sua dimensão continental, por sua tradição intelectual insurgente, precisava ser exemplarmente disciplinado. A operação foi bem-sucedida. Por um tempo.
Mas ainda assim, não conseguiram nos apagar.
Mesmo nos anos mais duros, a universidade pública brasileira continuou sendo o principal espaço de produção científica do país. E mais: continuou sendo a trincheira crítica, o lugar onde resistiram o pensamento marxista, a pesquisa militante, os estudos decoloniais, a epistemologia feminista, a ciência engajada com os territórios, as sabedorias indígenas e periféricas.
Esse é o paradoxo brasileiro: fomos laboratório da colonização cognitiva, mas também somos hoje um dos maiores celeiros de resistência epistemológica do Sul global.
E isso incomoda.
Incomoda que mesmo sem financiamento, continuamos produzindo. Incomoda que mesmo com a plataforma nos empurrando para o inglês, ainda escrevemos em português e lemos Paulo Freire, Abdias do Nascimento, Sueli Carneiro, Milton Santos, Heleieth Saffioti, Aníbal Quijano, Carolina de Jesus. Incomoda que mesmo com a lógica da competição, seguimos fazendo extensão, formando base, acolhendo quebrada, reconstruindo o pensamento a partir do chão.
Incomoda que mesmo esmagados pela lógica editorial, ainda inventamos, resistimos, compartilhamos. Incomoda que o Brasil pense.
E por isso querem nos silenciar.
O mercado editorial científico sabe que aqui existe uma potência que não cabe nas categorias do Norte. Um modo de pensar o mundo que desafia a colonialidade. Uma ciência que não serve ao capital, mas à vida.
Sabem que se nos deixarem pensar, pensaremos o impensável: que outro modo de produzir conhecimento é possível — e necessário.
Por isso, cada corte no CNPq não é apenas ajuste fiscal — é um ataque à soberania cognitiva. Cada extinção de instituto não é apenas burocracia — é limpeza epistêmica. Cada taxação injusta sobre livros, cada boicote à língua portuguesa, cada deslegitimação das ciências humanas é uma tentativa de amputar nosso futuro.
Mas também por isso, a universidade pública brasileira é hoje uma trincheira estratégica da luta global por outro modo de saber e de viver.
Ela é contraditória? Sim. Está cheia de colonialismos internos? Sim. Reproduz estruturas racistas e patriarcais? Sim. Mas também é o lugar onde a insurgência ainda respira, ainda pensa, ainda escreve, ainda publica — mesmo que a duras penas.
É dessa trincheira que nascerão os caminhos para uma ciência soberana, popular, radicalmente comprometida com a transformação da vida.
O que querem de nós é silêncio. O que daremos é pensamento.
O empurrão pós-moderno: a sabotagem teórica.

Nos disseram que não havia mais estrutura. Que não havia mais sujeito. Que não havia mais verdade. Nos ensinaram a desconfiar de totalidades, de narrativas unificadas, de projetos históricos. Disseram que tudo era discurso, linguagem, performance. Que o real era uma construção. Que a realidade era relativa.
Enquanto isso, do outro lado do mundo, laboratórios de psicologia comportamental, centros de pesquisa militar e think tanks bilionários desenvolviam métodos científicos altamente estruturados para modular comportamento, mapear desejos, prever ações e controlar sociedades inteiras.
O Sul global foi afogado numa avalanche de teorias pós-modernas que diziam: “Não tente mudar o mundo, ele não existe.”
Enquanto isso, o Norte aplicava modelos estruturalistas rígidos para reorganizar o mundo segundo sua lógica algorítmica, financeira e informacional.
A ironia é insuportável.
Foi nos anos 1980 e 1990 — auge da euforia neoliberal e do fim da história — que essa inflexão se consolidou. As teorias críticas do Sul começaram a ser substituídas por discursos importados que pareciam radicais, mas, na prática, neutralizavam a ação política. Enquanto Foucault e Derrida eram entronizados nos currículos de pós-graduação do Brasil, os EUA financiavam massivamente pesquisas em neurociência, big data, linguística computacional, psicometria, Machine Learning e guerra cognitiva.
Não é coincidência.
A indústria do pensamento do Norte sabia o que fazia: era preciso manter o Sul teorizando o fragmento, enquanto o centro desenhava sistemas. Era preciso que os povos colonizados se tornassem hiperconscientes da linguagem — e completamente desarmados diante da engenharia.
A avalanche pós-estruturalista teve seu valor crítico em muitos momentos, é verdade. Mas o modo como ela foi transplantada para o Sul não foi emancipador. Foi funcional à manutenção da dependência. Ela nos ensinou a desconfiar de qualquer projeto coletivo — exatamente quando mais precisávamos de projeto.
Transformaram a crítica em exercício estético. O pensamento radical em nicho editorial. A militância em tese de mestrado.
E não por acaso, os mesmos grupos editoriais que dominam o circuito científico também lucraram com a internacionalização dessas teorias. É um ciclo perfeito: produzem as categorias, ditam os modismos, vendem os livros, dominam as revistas, controlam os currículos, e ainda ganham prestígio por "internacionalizar o debate".
Enquanto isso, na realidade concreta dos territórios do Sul, as políticas públicas foram sendo desmontadas, as universidades esvaziadas, os movimentos sociais criminalizados, a juventude negra assassinada. Mas nas bancas de qualificação, discutia-se o “fim do sujeito”, a “morte da política”, a “desconstrução do real”.
Era a nova forma de censura: não mais silenciar, mas hiperteorizar até a paralisia.
E essa sabotagem teórica não foi só uma moda. Foi um projeto político de neutralização do pensamento crítico radical. Um ataque à imaginação estratégica. Uma forma de esvaziar os conteúdos da luta e substituí-los por formas elegantes de ceticismo inofensivo.
Enquanto nos ensinavam a desconstruir tudo, eles estavam construindo o futuro: redes neurais, sistemas de vigilância, manipulação algorítmica de comportamento, plataformas de metaintermediação. E para isso, usaram estruturalismo pesado, lógica formal, estatística, cibernética, neurociência aplicada.
Quem acreditou que a estrutura tinha morrido, perdeu o bonde da história.
Porque a estrutura voltou — mas não como projeto de esquerda. Voltou como máquina de captura comportamental, como interface de vigilância, como plataforma de modulação afetiva, como dispositivo de poder técnico.
E hoje ela está em toda parte: nos sistemas de recomendação, nos algoritmos de ranqueamento, nos modelos preditivos, nas plataformas acadêmicas que organizam nosso trabalho e nossas emoções em torno de métricas, pontos, níveis de engajamento e produtividade.
A teoria que nos prometeram como libertadora virou cárcere. E enquanto a elite acadêmica do Norte global seguia investindo bilhões em ciência dura, nos contentávamos em desconstruir a gramática da nossa própria insurreição.
É hora de virar esse jogo.
Não se trata de jogar fora a crítica ao poder discursivo. Ela é necessária. Mas é preciso retomar o direito de construir teoria estratégica, materialista, totalizante, insurgente. O direito de pensar o mundo em sua totalidade contraditória. O direito de elaborar um projeto coletivo de ruptura com a colonialidade.
Enquanto estivermos apenas debruçados sobre a superfície do discurso, seremos operários da distração teórica.
Chegou a hora de voltar à raiz — e erguer um pensamento do Sul global que não tema o conflito, que abrace a estrutura, que confronte a dominação e que rompa com a lógica da auto-submissão intelectual.
Pensar, aqui, não pode mais ser um luxo. Precisa ser arma.
A reação global: vanguardas contra o império editorial.

Nem todo o Sul está ajoelhado. Nem todo o Norte está alinhado. E nem toda ciência está capturada.
Apesar da hegemonia das grandes editoras, das plataformas algorítmicas, do imperialismo linguístico e das estruturas de gamificação acadêmica, a resistência existe — e cresce. Nos subterrâneos do sistema, nas bordas das universidades, nas redes de cooperação desobediente, há um movimento planetário em curso: a luta pela soberania epistêmica.
A primeira linha de frente é o movimento de acesso aberto (open access) — que surgiu como resposta ao sequestro da ciência por editoras bilionárias. Iniciativas como a SciELO, RedALyC, AmeliCA e o DOAJ (Directory of Open Access Journals) não apenas romperam com os paywalls, mas passaram a oferecer infraestrutura pública de circulação do conhecimento, especialmente no Sul global.
A SciELO Brasil, criada em 1997 com apoio da FAPESP, é hoje uma das maiores bibliotecas científicas de acesso aberto do mundo, com milhares de artigos publicados em português, espanhol e inglês. Não apenas democratizou o acesso, mas rompeu com a centralidade das línguas coloniais, valorizando a ciência escrita desde os territórios. É trincheira e exemplo.
A RedALyC (Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe, Espanha e Portugal), criada no México, é outro farol. Seu objetivo declarado: romper com a dependência da América Latina em relação aos sistemas de indexação do Norte. Criaram inclusive a AmeliCA, um ecossistema completo de ciência aberta, baseado em colaboração, solidariedade e não comercialização.
Mas não é só na América Latina. Na África, surgem plataformas como o African Journals Online (AJOL), que abriga centenas de periódicos locais, muitos deles em línguas nativas. Na Ásia, a Índia lidera movimentos de ciência aberta financiada publicamente, com sistemas de publicação próprios e alternativas às revistas comerciais.
E há ainda iniciativas como o Plan S, na Europa, que exige que pesquisas financiadas com recursos públicos sejam publicadas apenas em acesso aberto — uma tentativa de desacelerar o oligopólio da Elsevier, Springer e Wiley. É um embate ainda moderado, mas que revela a insatisfação crescente até mesmo dentro do Norte.
No campo digital, hackers do saber como Alexandra Elbakyan, criadora do Sci-Hub, abriram as portas dos cofres da ciência. Com milhões de artigos liberados para acesso gratuito, o Sci-Hub virou símbolo de um novo tipo de desobediência epistêmica: aquela que entende que o saber, sequestrado, precisa ser libertado — ainda que pela quebra direta da legalidade capitalista.
Nos BRICS, sobretudo na China, o movimento é ainda mais estratégico. O país tem investido bilhões de dólares em ciência e tecnologia, não para agradar ao império editorial, mas para superá-lo. Criou seu próprio sistema de indexação, periódicos de alta performance, plataformas estatais de publicação e avaliação. E o mais importante: investiu em ciência aplicada, com finalidades nacionais, com base em planos de longo prazo.
A China entendeu cedo que não se conquista soberania tecnológica sem soberania epistêmica. Enquanto isso, o Brasil, que já foi referência na política de ciência e tecnologia durante os anos 2003-2014, sofreu um brutal retrocesso a partir do golpe de 2016. Mas agora, com o novo ciclo democrático, há uma janela de reconstrução. E ela precisa ser estratégica.
Para isso, não basta financiar ciência. É preciso financiar soberania.
Criar plataformas nacionais de publicação. Reforçar os periódicos públicos. Desvincular a avaliação da produtividade das lógicas editoriais do Norte. Promover políticas de incentivo à escrita em português. Criar bancos de dados nacionais. Valorizar as epistemologias indígenas, negras, periféricas, quilombolas, feministas. Ensinar ciência com base no território.
É hora de compreender que ciência não é só laboratório. É também projeto civilizatório.
Essa virada exige coragem. Porque o sistema vai reagir. Vai acusar de anticiência, de provincianismo, de “ideologia”. Mas essa acusação é o sintoma da perda de controle. A hegemonia do Norte global já não é total. E isso os assusta.
Estamos diante de uma disputa mundial pela forma de pensar o mundo. E ela não será vencida apenas com papers — será vencida com imaginação histórica, estrutura pública e coragem política.
A ciência que queremos não pode ser uma reprodução técnica da colonialidade. Ela precisa ser a trincheira da emancipação. E para isso, precisamos romper com a lógica editorial como forma de legitimação — e construir outras formas de validarmos a nossa produção, os nossos saberes, as nossas verdades.
As vanguardas já começaram. Agora é nossa vez.
Conclusão: a revolta dos que pensam.
Toda dominação começa pela cabeça. Antes de ocupar terras, é preciso ocupar sentidos. Antes de capturar corpos, é preciso capturar símbolos. Antes de colonizar o solo, é preciso colonizar o saber.
Foi assim que construíram impérios.
Foi assim que forjaram a ideia de superioridade do Norte.
Foi assim que fizeram da ciência um trono — e de nós, súditos da validação alheia.
Mas os tempos mudam.
Hoje, em cada universidade pública do Sul global, há um fogo subterrâneo. Ele arde nas entrelinhas de uma dissertação que resiste ao inglês obrigatório. Ele pulsa no artigo recusado por não se encaixar nas "métricas internacionais". Ele vibra nas rodas de leitura onde o povo pensa, onde a ciência escuta, onde o saber se reapropria de sua função original: servir à vida.
A revolta dos que pensam não é feita de tiros.
É feita de perguntas.
Ela explode quando um estudante indígena questiona a lógica da propriedade privada. Quando uma mulher negra denuncia a ausência de sua história no currículo. Quando um pesquisador da favela recusa ser apenas “objeto de estudo”. Quando uma professora escreve em português e desafia a estética fria da ciência colonial.
Essa revolta não precisa de permissão.
Ela acontece nas margens do sistema, nas frestas da universidade, nas redes subterrâneas de saber compartilhado, nos quilombos epistêmicos, nos arquivos digitais insurgentes, nos laboratórios autônomos, nos coletivos de ciência popular, nas ocupações de escola, nas lives, nas rádios livres, nas rodas de conversa, nos córregos, nas aldeias, nas ruas.
Porque pensar, no Sul global, é um ato de guerra.
E é essa guerra que está em curso: a guerra entre uma ciência que serve ao lucro e uma ciência que serve à emancipação. Entre uma produção de conhecimento que transforma tudo em mercadoria — e outra, que transforma o conhecimento em alavanca de libertação.
O colonialismo científico está vivo. Mas também está ferido. E mais: está cercado.
Cercado por uma geração que não aceita mais escrever para agradar índice. Que não quer mais ser escrava de editoras milionárias. Que se recusa a produzir ciência que não transforme o mundo. Uma geração que exige soberania — inclusive epistêmica.
O futuro do pensamento não está nas universidades de Harvard ou Oxford. Está nas quebradas do Capão Redondo, nas salas lotadas da UFRJ, nos encontros de saberes da UFBA, nos assentamentos do MST, nas aldeias do Xingu, nos quilombos da Chapada, nos grupos de estudo das redes populares de educação.
Está em quem pensa para curar.
Em quem pensa para alimentar.
Em quem pensa para libertar.
O colonialismo pode até ter sequestrado nossas prateleiras.
Mas nunca dominará nosso chão.
Porque aqui, a ciência ainda dança com o povo.
Aqui, o pensamento é corpo. É território. É projeto.
E o tempo do silêncio acabou.
Chegou a hora da palavra insubmissa.
Chegou a hora da revolta dos que pensam.
