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Como as Big Techs lucram com a violência contra as mulheres

  • Foto do escritor: Sara Goes
    Sara Goes
  • há 1 dia
  • 10 min de leitura

A repetição de feminicídios revela que a violência contra mulheres não é exceção, mas parte de uma engrenagem que conecta brutalidade, plataformas digitais e lucro algorítmico


As tragédias que se repetem


Fabíola Paiva se define na internet como “avó de três e mãe de Larissa e Bianca”. Bianca foi assassinada em 2021, vítima de feminicídio. A morte da filha mais velha não foi um episódio encerrado no luto. Passou a organizar a vida da caçula, Larissa, mais uma jovem pobre das favelas de Fortaleza, mãe de três crianças, criada sob a sombra das agressões que atravessam a vida de meninas e mulheres. Foi dessa experiência concreta que nasceu a decisão de Larissa de ingressar na Polícia Militar. Em junho de 2022, tornou-se soldado da Patrulha Maria da Penha, dedicando sua atuação profissional à proteção de vítimas de violência doméstica.

Durante o curso de formação, Larissa conheceu Joaquim Filho e iniciou uma relação marcada por agressões físicas e psicológicas. Permaneceu presa a esse vínculo como tantas de nós nos sentimos e talvez também sustentada pela convicção de que, por integrar a corporação, teria condições de lidar com a situação e manter algum grau de controle sobre a violência que enfrentava. Fabíola acompanhou tudo e tentou alertar a filha para que a tragédia não se repetisse na família.

No dia 3 de dezembro, Fabíola perdeu mais uma filha: Larissa foi assassinada a tiros pelo companheiro de vida e de farda. Deixou três filhos, netos de Fabíola. Fabíola Paiva é mãe de Larissa e Bianca, duas vidas arrancadas pelo ódio às mulheres.

A repetição da tragédia na mesma família não é exceção estatística. Ela se insere em um cenário em que o Brasil ultrapassou a marca de mil feminicídios anuais. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre janeiro e setembro de 2025 mais de 2.700 mulheres sobreviveram a tentativas de feminicídio, evidenciando que o feminicídio consumado é apenas a etapa final de um contínuo de violências cotidianas contra mulheres. A repetição de números elevados tende a anestesiar a percepção da violência. Ao final de 2025, no entanto, esse efeito foi rompido: a partir de 29 de novembro, uma sequência de casos de crueldade extrema devolveu à violência sua dimensão concreta.

O episódio que abre esse período é a tentativa de feminicídio contra Tainara Souza. A jovem mãe de 31 anos foi atropelada e arrastada por cerca de um quilômetro na Marginal Tietê, em cenas registradas por câmeras e amplamente disseminadas nas redes digitais. A agressão praticada pelo ex-namorado resultou na amputação traumática das duas pernas. A investigação apontou que o veículo foi acelerado deliberadamente enquanto a vítima permanecia presa ao chassi, afastando qualquer hipótese de acidente.

No mesmo dia e na mesma cidade em que Tainara Souza foi atropelada e arrastada, Maria Katiane Gomes da Silva sofria agressões dentro de um condomínio nobre. No dia seguinte, Katiane foi sepultada no Ceará, sob as lágrimas da família e do homem que a arremessou do décimo andar. Katiane tinha 25 anos e era mãe de uma menina.

Os casos que atravessaram o final de 2025 não revelam apenas a persistência da violência contra mulheres no Brasil, mas o esgotamento de uma fronteira histórica entre o que se passa na intimidade da vida privada e o que circula no espaço público. O feminicídio deixou de ser um evento silencioso, restrito às estatísticas ou às páginas policiais, para se tornar um fenômeno visível, filmado, comentado, disputado e reinterpretado em tempo real. Essa visibilidade, no entanto, não equivale à proteção. Ao contrário, passa a integrar a própria engrenagem da violência.

 

Violência em escala digital


Crimes como os de Tainara Souza e Maria Katiane Gomes da Silva não se encerraram na ação do agressor. Foram reencenados digitalmente, fragmentados em vídeos, legendas e comentários, nos quais o sofrimento das vítimas passou a disputar sentido com narrativas de culpabilização, escárnio e relativização da brutalidade. Nesse ambiente, antigas teses retornam travestidas de opinião, humor ou debate, agora amplificadas por algoritmos que premiam o choque, a indignação e o conflito.

A violência contra a mulher deixa, assim, de se limitar ao corpo ferido e passa a se prolongar no espaço digital, onde o agressor encontra defesa simbólica, linguagem de justificação e, não raramente, pertencimento coletivo. As Big Techs não operam apenas como meios neutros pelos quais a violência circula depois de consumada. Elas integram a própria infraestrutura contemporânea que organiza, amplifica e rentabiliza o ódio.

As redes sociais funcionam segundo um modelo econômico que transforma engajamento em lucro. E o engajamento, comprovadamente, é maximizado por conteúdos que despertam emoções de alta intensidade, como medo, indignação e ressentimento. A violência contra mulheres, especialmente quando assume contornos extremos, converte-se em ativo algorítmico. Vídeos, imagens e narrativas de brutalidade não apenas circulam, mas são impulsionados por sistemas de recomendação que privilegiam aquilo que retém atenção por mais tempo, independentemente do dano social produzido.

Esse desenho técnico cria um ambiente em que o discurso misógino deixa de ser exceção e passa a operar como padrão funcional. Conteúdos que culpabilizam vítimas, relativizam feminicídios ou transformam a violência em espetáculo geram taxas superiores de compartilhamento, comentários e permanência nas plataformas. O algoritmo não distingue repúdio de adesão. A indignação também conta como engajamento e, portanto, como valor econômico.

No Brasil, esse modelo encontra um terreno particularmente sensível: a combinação entre altos índices de violência de gênero, desigualdade social e massificação do consumo digital cria um ecossistema no qual narrativas de ódio encontram escala e legitimação. Comunidades misóginas organizadas, frequentemente associadas à machosfera e ao discurso red pill, prosperam nesse ambiente, impulsionadas por mecanismos de recomendação que conduzem usuários de conteúdos aparentemente inofensivos a discursos progressivamente radicalizados.

 

O negócio da misoginia


A disseminação do discurso misógino no Brasil não ocorre por adesão espontânea a conteúdos explicitamente sexistas. Ela opera por meio de um funil algorítmico progressivo, desenhado pelas plataformas digitais para maximizar retenção e engajamento. Trata-se de uma dinâmica amplamente descrita por pesquisas acadêmicas e investigações independentes sobre sistemas de recomendação, que demonstram como conteúdos de aparência neutra funcionam como porta de entrada para narrativas estruturadas de ressentimento e hostilidade contra mulheres.

Estudos conduzidos por instituições como o InternetLab, o Center for Countering Digital Hate, o Algorithmic Justice League e grupos de pesquisa vinculados a universidades como MIT e Universidade de Oxford apontam um padrão recorrente. Os algoritmos das grandes plataformas capturam sinais mínimos de interesse e os amplificam, conduzindo usuários a ambientes discursivos cada vez mais homogêneos, hierarquizantes e misóginos.

O ponto de entrada desse processo costuma ser neutro. Buscas por temas como musculação, desempenho físico, finanças pessoais, produtividade ou autoconfiança masculina ativam mecanismos de recomendação baseados em associação comportamental. A partir dessas correlações, plataformas como YouTube, Instagram e TikTok passam a sugerir conteúdos que associam sucesso pessoal a hierarquias de gênero, introduzindo noções como valor sexual de mercado, hipergamia feminina e a ideia de uma crise estrutural da masculinidade. À medida que o usuário interage, o sistema reduz a diversidade de fontes e intensifica a exposição a conteúdos progressivamente mais radicais.

Esse mecanismo é descrito na literatura especializada como efeito rabbit hole, ou toca do coelho. Pesquisas conduzidas por universidades e organizações da sociedade civil indicam que adolescentes do sexo masculino podem ser expostos a conteúdos misóginos e extremistas em menos de 30 minutos de navegação, e em alguns casos em poucos minutos, a partir de sinais mínimos como tempo de visualização ou simples permanência na tela.

No Brasil, esse processo foi mapeado empiricamente por pesquisas conduzidas pelo NetLab da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em parceria com organizações de monitoramento do ambiente digital. Utilizando coleta automatizada de dados via API do YouTube, análise de grandes volumes de vídeos e modelos de linguagem para classificação de toxicidade, um dos estudos analisou mais de 140 mil vídeos relacionados ao léxico da machosfera. Após a limpeza e validação do corpus, foram examinados mais de 76 mil vídeos provenientes de milhares de canais, com aplicação de modelos treinados manualmente para estimar a probabilidade de misoginia. Os resultados indicam que não se trata de um fenômeno marginal, mas de um ecossistema estruturado, com alta densidade de produção, audiência massiva e grande capacidade de engajamento.

Os números reforçam essa constatação. Levantamentos identificaram ao menos 137 canais brasileiros dedicados exclusiva ou majoritariamente à disseminação de conteúdos misóginos, que acumulam bilhões de visualizações e dezenas de milhões de comentários. A maioria apresentou crescimento acelerado a partir de 2021, sinalizando a convergência entre radicalização de gênero, polarização política e consolidação de novos modelos de monetização digital.

Esse ponto é central porque o funil algorítmico não existe apenas para difundir ideias, mas para transformá-las em produto. A misoginia é monetizada por diferentes vias, como publicidade programática inserida automaticamente pelas plataformas, venda de cursos e mentorias sobre masculinidade alfa, financiamento coletivo, doações diretas e links de afiliados para apostas, suplementos ou produtos financeiros de alto risco. O medo, o ressentimento e a hostilidade funcionam como etapa inicial de um funil de vendas no qual a solução oferecida é sempre individual, hierárquica e excludente.

Esse ecossistema não se limita a casos pontuais nem a ciclos curtos de viralização. Levantamentos recentes indicam uma produção contínua e estrategicamente intensificada ao longo do tempo. Dados sistematizados pela Plataforma Radar Antigênero, que analisa mais de 5 mil vídeos publicados desde 2018, mostram que a disseminação de conteúdos misóginos e antigênero apresenta picos claros de produção em momentos de alta disputa política, como eleições e votações relevantes no Congresso Nacional. A correlação entre radicalização de gênero e agenda institucional revela que o ódio não apenas gera engajamento, mas é mobilizado como recurso político e econômico em contextos decisivos, reforçando seu caráter instrumental dentro das plataformas digitais.

No contexto brasileiro, essa dinâmica assume formatos específicos. Podcasts e canais de cortes curtos tornaram-se veículos privilegiados de disseminação, explorando humilhações públicas de mulheres, confrontos encenados e títulos deliberadamente provocativos. Em zonas cinzentas, conteúdos misóginos são apresentados como debate ou opinião alternativa, o que amplia sua legitimidade social e dificulta a moderação. Paralelamente, comunidades desenvolvem vocabulários cifrados para contornar filtros automatizados, mantendo a circulação do ódio abaixo do limiar formal de violação das regras.

Quando a violência transborda do plano simbólico para o mundo concreto, entra em ação um segundo movimento, igualmente estruturado. Casos de agressão cometidos por figuras públicas associadas a esse universo ideológico costumam ser acompanhados por um esforço discursivo quase coreografado de dissociação. O episódio envolvendo o influenciador Thiago Schutz tornou visível esse mecanismo. Após a agressão à companheira e sua prisão, multiplicaram-se manifestações masculinas que condenavam o ato com ênfase reiterada, ao mesmo tempo em que se esforçavam para separar a violência praticada do discurso red pill.

A agressão foi tratada como desvio individual, alheio à ideologia que organiza a visão de mundo desses grupos. O mesmo conjunto de narrativas que desumaniza mulheres, naturaliza relações de poder e apresenta o conflito de gênero como guerra simbólica passou a ser descrito como incapaz de produzir efeitos materiais. Essa ruptura performática cumpre uma função política clara. Ao dissociar a violência concreta do ambiente discursivo que a antecede e a legitima, preserva-se a ideia de que o problema reside sempre nos indivíduos, nunca nos sistemas.

 

Quem lucra responde


Esse deslocamento sistemático da culpa para o plano individual cumpre uma função decisiva na preservação do modelo de negócios das plataformas. Ao tratar a violência misógina como resultado de desvios pessoais, e não como produto previsível de arquiteturas algorítmicas e incentivos econômicos, neutraliza-se qualquer debate substantivo sobre responsabilidade estrutural. A ausência de mecanismos eficazes de responsabilização permite que empresas que lucram com a radicalização sigam operando sob a retórica da neutralidade tecnológica, mesmo quando evidências empíricas demonstram que seus sistemas não apenas amplificam o ódio, mas o organizam, o segmentam e o monetizam. É nesse ponto que a discussão deixa de ser moral ou comportamental e se impõe como questão regulatória, jurídica e política.

Durante a 13ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, realizada em Brasília em meio à comoção provocada pela onda de feminicídios de dezembro de 2025, o debate institucional passou a nomear de forma explícita a responsabilidade das plataformas digitais. Ao tratar do tema, o presidente Lula rompeu com a noção de neutralidade tecnológica e atribuiu às empresas do setor responsabilidade direta pela circulação sistemática de discursos de ódio.

O presidente afirmou que as redes digitais precisam ser responsabilizadas pela publicação recorrente de conteúdos que incentivam a violência contra mulheres. Rejeitou a equiparação entre regulação e censura ao afirmar que liberdade de expressão não pode ser confundida com cumplicidade na prática de crimes de ódio. Destacou ainda ser inaceitável que plataformas continuem a se eximir de responsabilidade sobre conteúdos criminosos que circulam em seus sistemas.

Ao afirmar que proteger a vida, a integridade física e a dignidade de meninas e mulheres não é censura, mas responsabilidade coletiva, o presidente reposicionou o debate no campo dos direitos humanos. Sua fala nomeia um problema estrutural. As plataformas lucram com a circulação prolongada de conteúdos violentos e misóginos, ao mesmo tempo em que fragilizam ou retardam mecanismos de moderação. A violência deixa de aparecer como falha acidental e passa a ser compreendida como externalidade funcional de um modelo que premia engajamento sem considerar seus efeitos sociais.

Quando o debate deixa o campo moral e ingressa no campo político e regulatório, a violência contra mulheres passa a ser compreendida não apenas como crime individual, mas como resultado previsível de uma arquitetura digital que transforma ódio, ressentimento e brutalidade em valor econômico. Sem responsabilização das plataformas, a misoginia segue operando como engrenagem central de um sistema que monetiza o conflito e normaliza a destruição de vidas femininas.

Essa lógica é funcional ao lobby das Big Techs no Congresso Nacional. As plataformas se apresentam publicamente como contrárias à violência, reafirmam compromissos abstratos com direitos humanos e segurança, mas resistem de forma sistemática a qualquer proposta que trate de dever de cuidado, transparência algorítmica ou responsabilização por riscos conhecidos. A moralização do discurso funciona como deslocamento estratégico. Condena-se o ato extremo enquanto se esvazia a discussão sobre as engrenagens que tornam esses atos previsíveis.

No debate legislativo, essa postura se traduz na defesa insistente da neutralidade tecnológica. As plataformas alegam não endossar conteúdos violentos e afirmam agir apenas diante de violações explícitas, mas rejeitam enfrentar a relação estrutural entre seus modelos de negócio e a radicalização misógina. Ao transformar cada agressão em exceção e cada agressor em caso isolado, fragiliza-se a compreensão de que existe continuidade entre a violência simbólica cultivada no ambiente digital e a violência física que atinge mulheres no cotidiano.

Diante desse quadro, o debate regulatório deixa de ser uma disputa abstrata sobre liberdade de expressão e passa a envolver governança de risco sistêmico. Propostas como o Projeto de Lei 2630 buscavam justamente deslocar o foco da remoção pontual de conteúdos para a responsabilização sobre processos, incentivos e arquitetura das plataformas. A reação das Big Techs a esse debate evidenciou seu peso político e sua capacidade de interferência direta no Legislativo.

Quando se observa o funil red pill como arquitetura técnica, econômica e política, a conclusão é inequívoca. A radicalização misógina não é um desvio ocasional do sistema, mas um efeito previsível de plataformas desenhadas para maximizar engajamento a qualquer custo. Regular esse ambiente não significa controlar opiniões individuais, mas estabelecer limites para modelos de negócio que transformam ressentimento em produto, ódio em retenção e violência simbólica em valor econômico. Sem essa inflexão, o ciclo que conecta discurso digital, lobby político e violência contra mulheres tende a se aprofundar.

 

 
 
 

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