Entre a agilidade e a agonia
- Rey Aragon
- 11 de jul.
- 15 min de leitura
Atualizado: 11 de jul.

Algoritmos, fricção zero e o colapso da subjetividade
Este ensaio investiga como a lógica da fricção zero e os algoritmos das plataformas digitais afetam a saúde mental das pessoas. Através de uma análise sensível e crítica, o texto aborda os impactos subjetivos, emocionais e sociais desse processo — e propõe caminhos de resistência diante do caos informacional que nos cerca..
Há algo de profundamente errado na maneira como nos sentimos — e não é apenas individual. A tristeza crônica, a irritação súbita, a exaustão inexplicável, a ansiedade sem nome... são sintomas de um mal que não nasce apenas da biografia, mas da infraestrutura. O mal-estar contemporâneo não é um acidente: é projeto. Um projeto de subjetividade moldado por forças invisíveis, implacáveis e sorridentes — forças que se anunciam como inovação, fluidez, praticidade, mas operam como dispositivos de captura, controle e despolitização.
Vivemos sob o regime da “fricção zero”: uma ideologia que transforma o atrito — o tempo da dúvida, da escolha, da hesitação — em falha sistêmica. Toda forma de resistência, de pausa ou de pensamento é tratada como bug. E sob a máscara da eficiência, instala-se a violência. A violência do automatismo, da hiperconveniência, da antecipação preditiva. A violência do “tudo pronto” que nos rouba a possibilidade de pensar, sentir, decidir — e, por isso mesmo, de existir.
Nesse novo paradigma técnico-ideológico, não somos mais sujeitos que interagem com as máquinas. Somos dados interpretados por sistemas que aprendem a nos modular antes mesmo de compreendermos nossos próprios desejos. É aqui que entra o metaintermediário algorítmico: não como ferramenta, mas como instância soberana de mediação ontológica. Ele não só responde — ele se antecipa. Ele não apenas organiza — ele reconfigura. Ele não apenas serve — ele governa.
Esse governo sem rosto, sem território e sem tempo visível opera silenciosamente sobre os alicerces mais íntimos da psique. E é nesse ponto — e aqui cravamos nossa hipótese central — que a saúde mental se torna o campo mais sensível, vulnerável e estratégico dessa reorganização tecnopolítica do mundo. O que chamamos de ansiedade generalizada, burnout, depressão funcional, oscilações de humor, ataques de pânico, sensação de vazio, dependência informacional, paranoia social e insônia algorítmica não são meros efeitos colaterais da modernidade tardia — são expressões clínicas de um colapso cognitivo induzido.
A ideologia da fricção zero, ao eliminar o tempo da hesitação e dissolver a linguagem enquanto campo de dissenso, atinge diretamente os mecanismos que estruturam a saúde psíquica e a autonomia subjetiva. A antecipação algorítmica não apenas simplifica a vida; ela destitui o sujeito da experiência de escolha, desloca a práxis para o domínio da performance automatizada e instala uma nova forma de sofrimento: um sofrimento sem nome, sem origem clara, sem sintoma clássico — mas absolutamente disseminado, socialmente aceito e lucrativamente explorado.
Este ensaio se propõe a enfrentar essa mutação com a radicalidade que ela exige. Vamos demonstrar que a desinformação, o negacionismo, o ódio, o radicalismo político e religioso, o descontrole emocional e o pânico moral não são apenas fenômenos culturais ou políticos: são sintomas psíquicos de um regime informacional baseado na manipulação, na vigilância emocional e na extração de atenção.
Nosso ponto de partida é simples, mas brutal: a desinformação é uma pandemia de saúde mental, e os metaintermediários algorítmicos são seus vetores privilegiados. Este não é apenas um problema técnico, ético ou comunicacional — é um problema psicopolítico de escala civilizacional.
Diante desse cenário, escrever torna-se um ato de insubordinação. Pensar devagar é subversão. Hesitar é resistência. Recusar a fluidez programada é recuperar o direito ao conflito, à linguagem, à vida.
Este é o ensaio. E ele não hesitará.
A captura da subjetividade: fricção zero, automatismo e desorganização psíquica.

O sujeito contemporâneo está cada vez menos apto a sustentar um pensamento autônomo, uma emoção complexa ou uma decisão verdadeiramente deliberada. Essa não é uma falha do indivíduo. É o resultado de um processo sistemático de desestruturação da subjetividade, operado sob o signo da fluidez, da otimização e da personalização. A “fricção zero” não é apenas um lema corporativo — é uma racionalidade operante que desqualifica tudo o que é denso, ambíguo, lento, incerto ou dialético. Em seu lugar, instala-se a lógica da aceleração, da previsibilidade e da resposta imediata.
Esse novo regime informacional, alimentado por metaintermediários algorítmicos, atua como um sistema de antecipação emocional, que intervém na percepção antes mesmo da consciência. O sujeito não decide: ele é conduzido. Não interpreta: é interpretado. Não hesita: é respondido. A linguagem, que antes operava como campo de elaboração simbólica e dissenso, é substituída por signos reduzidos, cliques, reações, impulsos. Isso não é apenas comunicação simplificada — é redução cognitiva programada.
Do ponto de vista da psicologia comportamental, o que se observa é uma ressignificação radical do ambiente de reforço. A vida digital tornou-se uma cadeia de contingências controladas, nas quais estímulos algoritmicamente modulados produzem respostas previsíveis. Os algoritmos operam como moldadores operantes de emoções, atenção, tempo e afeto. A recompensa deixa de ser uma consequência da ação: ela é antecipada e programada, criando um regime de condicionamento intermitente que corrói a autonomia, dilui a expectativa e desorganiza a noção de agência.
Nesse cenário, a experiência de mundo passa a ser mediada não por contextos orgânicos, mas por ambientes simulados que maximizam engajamento, não sentido. Cada deslize de dedo, cada clique, cada rolagem de tela é uma operação de rastreamento emocional. O feed se adapta ao humor do usuário, não para acolhê-lo, mas para explorá-lo. Tristeza, raiva e medo são moduladores de atenção mais eficientes do que o prazer ou a empatia — por isso são hiperexplorados.
E aqui emerge o núcleo patológico: o sistema promove um estado permanente de exposição emocional sem processamento simbólico. As emoções são disparadas, mas não metabolizadas. A atenção é capturada, mas não aprofundada. A linguagem é usada, mas não compreendida. É neste ponto que a fricção zero se transforma em colapso mental zero: não há espaço para o trauma ser reconhecido, para o sofrimento ser nomeado, para o pensamento se formar. O resultado é uma subjetividade colapsada, funcionalmente operante, mas internamente devastada.
O sujeito hipermediado da era da fricção zero sofre de um novo tipo de desorganização psíquica: ele é ao mesmo tempo, hiperestímulo e ausência de mundo. Age sem agir, sente sem compreender, responde sem perguntar. A temporalidade foi achatada, a memória foi comprimida, a dúvida foi suprimida. O que resta é uma consciência exaurida, permeável, pulsional — exatamente o tipo de sujeito ideal para um capitalismo que não quer apenas consumir corpos, mas produzir comportamentos.
Neste novo ciclo de dominação, o sofrimento não é acidente — é sintoma funcional. O pânico moral, a depressão política, o colapso atencional, o niilismo performativo e o fundamentalismo identitário não são patologias isoladas, mas efeitos previsíveis de uma arquitetura cognitiva deliberadamente construída para inibir a práxis, esvaziar o pensamento e capturar o afeto.
A ideologia da fricção zero nos vendeu o fim dos obstáculos. Entregou o fim do sujeito.
A manipulação da atenção como engenharia do adoecimento: algoritmos, vieses e exploração emocional.

No capitalismo da fricção zero, a atenção humana não é apenas uma variável de interesse — ela é o recurso primário a ser explorado, colonizado, monetizado e exaurido. O sujeito contemporâneo tornou-se uma mina de dados emocionais, e sua atenção, o campo de batalha onde algoritmos disputam, em tempo real, cada segundo de presença cognitiva. Não se trata mais de capturar “o que pensamos”, mas de redesenhar como pensamos. E, no limite, de impedir que pensemos de fato.
Atenção é construção ativa, seletiva, volitiva. Mas sob a lógica da antecipação algorítmica, ela é transformada em reflexo, em resposta automática, em impulso emocional. O sujeito não dirige seu foco: ele é conduzido por sistemas projetados para manipular seus vieses mais profundos — vieses que não são falhas, mas heurísticas adaptativas. O que antes era uma economia cognitiva da sobrevivência torna-se agora um atalho para a dominação subjetiva.
Os metaintermediários algorítmicos são sistemas projetados para explorar essas heurísticas de modo sistemático. O viés da confirmação, por exemplo, que nos leva a valorizar informações que reforçam crenças pré-existentes, é amplamente mobilizado para alimentar radicalismos e bolhas epistêmicas. O viés da disponibilidade, que privilegia informações mais recentes ou emocionalmente marcantes, é explorado para sustentar estados de alerta, medo e indignação. O viés da negatividade, que nos faz reagir mais fortemente a estímulos negativos do que positivos, é instrumentalizado para garantir engajamento contínuo por meio do escândalo, da violência e do ódio.
Essa engenharia da percepção não é neutra. Ela produz estados psíquicos específicos: hiperexcitação, ansiedade persistente, fadiga informacional, desorientação afetiva e dependência intermitente de estímulos. Em linguagem clínica, trata-se de uma indução programada à disfunção executiva, à impulsividade emocional e à anomia coletiva. Em linguagem política, trata-se de um projeto de modulação comportamental em escala de massas.
Não é por acaso que os índices de ansiedade, depressão, automutilação e suicídio entre adolescentes disparam no mesmo ritmo da expansão das redes sociais baseadas em algoritmos preditivos. Tampouco é coincidência que sociedades hiperconectadas estejam ao mesmo tempo, mais desinformadas, mais polarizadas e mais incapazes de deliberar coletivamente com racionalidade mínima. O colapso da atenção não é apenas um problema clínico — é o sintoma de um colapso da razão como campo de organização da vida comum.
A hiperestimulação algorítmica bloqueia o pensamento reflexivo, desintegra a memória de longo prazo e instala um modo de funcionamento emocional baseado em impulsos imediatos, recompensas rápidas e reatividade contínua. É a psicologia do curto-circuito: a mente se torna um nó elétrico de estímulos e respostas, sem tempo para metabolizar, interpretar ou narrar o vivido. A experiência desaparece. Sobra apenas o desempenho. O agora.
Este colapso não é acidental. Ele é desenhado. E é lucrativo.
Quanto mais doente estiver o sujeito — mais ansioso, mais isolado, mais desorganizado emocionalmente — mais previsível e manipulável ele se torna. A dor se converte em dado. O sofrimento, em oportunidade de engajamento. O colapso da mente, em modelo de negócio.
A crise da atenção, portanto, não é periférica — ela é o novo centro da dominação. O capitalismo da fricção zero não apenas se alimenta da saúde mental em ruínas — ele a provoca, a explora e a administra. Como um incendiário que lucra vendendo extintores, as plataformas promovem o caos emocional e depois oferecem aplicativos de meditação, filtros de bem-estar, assistentes emocionais. A engenharia da destruição se disfarça de cuidado. E o adoecimento se transforma em assinatura mensal.
Neste contexto, resistir é mais do que se informar. É reaprender a respirar, a hesitar, a dizer não. É, antes de tudo, recuperar a soberania sobre o próprio foco, a própria dor, a própria narrativa.
O corpo como último bastião: a somatização do colapso e a anatomia do sofrimento programado.

Quando a linguagem falha, quando o pensamento é inibido, quando a subjetividade é disfuncionalizada pela sobrecarga de estímulos e pelo automatismo das respostas, o corpo fala. Fala em sintomas. Fala em tensão. Fala em exaustão. Fala em dor.
A modulação algorítmica da experiência não se encerra no plano abstrato da cognição. Ela se inscreve nos tecidos, nas vísceras, nos músculos, nos batimentos cardíacos, nos distúrbios do sono e nas alterações hormonais. O sujeito hipermediado, hipervigiado e hiperestressado passa a habitar um corpo permanentemente ativado, sem repouso e sem elaboração emocional. O organismo vive num estado crônico de alerta — como se estivesse sempre prestes a ser atacado, ignorado, cancelado ou esquecido.
É a biologia da ansiedade permanente: o sistema límbico hipertrofiado, o córtex pré-frontal sobrecarregado, o eixo HPA ativado sem descanso. O corpo se transforma num campo de batalha neuroquímico. E isso não é metáfora: é fisiologia política.
A vida sob a lógica da fricção zero exige que o corpo funcione como extensão produtiva da máquina: disponível, conectado, responsivo, performático. Não há mais espaço para a febre, para a apatia, para o luto, para o repouso. Mesmo o cansaço deve ser estético, mesmo a dor precisa ter engajamento. Somos empurrados para uma cultura da “resiliência compulsória”, onde até a fragilidade é instrumentalizada como conteúdo. A vulnerabilidade virou branding.
Mas o corpo cobra. E quando não pode mais sustentar a ilusão da otimização, ele colapsa.
A mente programada para funcionar como uma API de decisões rápidas e emoções simplificadas entra em curto-circuito. O intestino trava. O coração dispara. A pele inflama. A respiração encurta. A libido desaparece. A insônia se instala. A pressão sobe. A imunidade cai. O burnout não é uma metáfora da exaustão: é a sua explosão bioquímica.
O corpo, nessa lógica, não é mais território de subjetividade, mas interface operacional — um terminal onde comandos invisíveis se transformam em comportamentos visíveis, onde a dor é reconfigurada como falha de produtividade e não como sinal de existência. E isso é o mais brutal: o sofrimento deixa de ser reconhecido como legítimo. Passa a ser tratado como desvio, como fraqueza, como má performance. A dor é silenciada — e esse silêncio é rentável.
O que vemos hoje é uma epidemia de sintomas sem origem aparente: dores crônicas, fadigas inexplicáveis, crises de ansiedade súbita, transtornos alimentares, compulsões, paralisias afetivas, picos de adrenalina seguidos de letargia. São respostas do organismo a uma realidade que já não pode ser simbolizada. O corpo tenta processar o que a mente não consegue mais nomear.
Esse sofrimento não é privado, embora seja vivido como tal. É estrutural. É a manifestação orgânica de um projeto de dominação invisível, cujo campo de operação não é mais o corpo disciplinado da fábrica, mas o corpo colonizado da conectividade total.
Frente a essa somatização programada, é urgente devolver ao corpo sua dignidade política. Resgatar o tempo do repouso, o direito ao silêncio, a legitimidade da pausa, a necessidade do luto, a potência da hesitação, a beleza da incerteza. O corpo não é um erro do sistema. O corpo é a única linguagem que o sistema ainda não conseguiu calar completamente.
E talvez seja ele — e só ele — o ponto de partida para uma revolução sensível.
O sujeito desorganizado como peça funcional: como a alienação psíquica se converte em arquitetura de governabilidade algorítmica

Toda forma de poder precisa de uma arquitetura de controle. No passado, essa arquitetura foi a prisão, a fábrica, o confessionário, o quartel. Hoje, ela se desloca para dentro da mente, se infiltra nos afetos, se aloja nas microdecisões cotidianas. O novo poder não reprime: ele desorganiza. Ele não impõe leis — ele reconfigura a percepção. Ele não proíbe — ele acelera. Ele não censura — ele hiperestimula até o colapso. E ao final desse processo, o que se obtém é o sujeito ideal: alienado, fragmentado, polarizado, emocionalmente instável e cognitivamente previsível.
Esse sujeito não é um acidente do sistema — ele é seu produto mais acabado.
A alienação, que no século XIX se dava na cisão entre o trabalhador e o fruto de seu trabalho, hoje se dá na cisão entre o sujeito e sua própria experiência. A consciência é hackeada. A memória é sequestrada por notificações. A atenção é pulverizada por estímulos. O desejo é moldado por estatísticas. A linguagem é achatada em emojis. A vida interior é convertida em desempenho externo. O sujeito já não se representa — ele é representado por sistemas preditivos. E nesse processo, o que se destrói não é apenas a autonomia: é a própria capacidade de discernir que ela foi perdida.
Essa desorganização interna não é apenas uma patologia psíquica — ela é um modo de governabilidade algorítmica. Um sujeito desorganizado não consegue organizar demandas políticas. Um sujeito ansioso não consegue sustentar processos históricos. Um sujeito emocionalmente volátil não forma alianças duradouras. Um sujeito incapaz de hesitar não constrói estratégia. Um sujeito sem linguagem não formula conflito. Um sujeito privado da práxis não rompe com a estrutura.
O sujeito fragmentado é, portanto, uma engrenagem essencial da manutenção da ordem algorítmica. Sua instabilidade emocional serve como combustível da vigilância preditiva. Seus impulsos retroalimentam os sistemas de controle. Seu colapso é convertido em métrica. Sua agitação é lucro. Sua confusão é estabilidade do sistema. Quanto mais desorientado ele estiver, mais governável ele se torna.
Não se trata mais de convencer o sujeito, mas de antecipá-lo. Não se trata mais de persuadir, mas de modular. O ideal não é o consenso, mas a previsibilidade. Um sujeito previsível é infinitamente mais útil do que um sujeito racional. A razão questiona. A previsibilidade consome. E por isso a razão precisa ser desorganizada — não com argumentos, mas com estímulos.
Esse é o ponto central: o novo poder não busca convencer ninguém. Ele não precisa. Ele precisa apenas que o sujeito não consiga mais sustentar uma narrativa própria. Que não consiga mais diferenciar o que sente do que foi programado para sentir. Que não consiga mais saber se aquilo que deseja é seu ou lhe foi sugerido por alguma interface, em algum momento irreversível.
É o triunfo da governabilidade sem política. O sujeito como algoritmo, a democracia como UX, o dissenso como falha de design. Nesse contexto, até a saúde mental vira KPI.
A alienação psíquica, portanto, não é colateral. Ela é fundacional. Ela é o cimento invisível da nova ordem. E por isso mesmo, combatê-la é mais do que uma questão clínica. É uma questão ontológica, política, histórica.
Do pânico ao totalitarismo emocional: como o sofrimento coletivo abre caminho para ideologias antidemocráticas.

Não há autoritarismo que nasça do nada. Todo regime antidemocrático se alimenta de uma matéria afetiva específica: medo, ressentimento, insegurança, frustração, desamparo. Nenhuma tirania se impõe apenas com tanques ou decretos — ela se instala primeiro na alma esvaziada de sentido, no sujeito atravessado pela angústia, no corpo saturado de ansiedade, na linguagem desfeita. Antes do golpe, vem o colapso. Antes do fascismo, vem o pânico.
A crise de saúde mental em curso não é apenas uma epidemia silenciosa. Ela é a condição material de possibilidade para a emergência das novas formas de fascismo emocional. E isso não é força de expressão: é a anatomia da reação.
O sujeito desorganizado pela lógica da fricção zero — solitário, fragmentado, sobrecarregado, hipervigilante, adicto à dopamina digital — não encontra mais no mundo um espelho simbólico para sua dor. A política desapareceu. A linguagem perdeu densidade. A coletividade se dissolveu. Restou o trauma bruto. E o trauma precisa de explicação. O fascismo fornece uma. Fornece, aliás, a única que o algoritmo permite circular com fluidez: simples, polarizada, emocionalmente intoxicante.
O totalitarismo emocional não se constrói sobre ideologia consistente, mas sobre afetos desorganizados. Ele oferece pertencimento a quem foi isolado. Oferece certeza a quem foi bombardeado pela dúvida. Oferece inimigos a quem foi educado na impotência. Oferece guerra a quem não consegue mais sustentar o silêncio. A lógica é simples: quem não pode narrar a própria dor, será narrado por outros — e usará essa narrativa como arma.
É por isso que o sofrimento coletivo, quando não encontra mediação crítica, se converte em terreno fértil para os discursos de ódio, para o negacionismo, para o fanatismo religioso, para o delírio conspiratório, para o desejo de vingança disfarçado de moralismo. É uma psicopolítica da compensação: na ausência de sentido, o sujeito abraça qualquer estrutura que organize sua agonia.
E as plataformas sabem disso. Sabem que os afetos negativos geram mais engajamento. Sabem que o ódio é mais clicável que a empatia. Sabem que a indignação rende mais dados que o diálogo. E por isso, reforçam os mecanismos que aceleram o adoecimento coletivo — e com ele, a radicalização irracional. O algoritmo, que não entende de democracia, mas entende de retenção, transforma a desinformação em ambientação. O caos, em rotina. A loucura, em tendência.
O que estamos testemunhando, portanto, não é uma crise da política. É uma colonização psíquica em larga escala, na qual os afetos desorganizados do sujeito são continuamente alimentados por sistemas que convertem desespero em lucro e radicalismo em governabilidade de dados.
A democracia, com seus ritmos lentos, com sua complexidade deliberativa, com seu espaço de dissenso e mediação, torna-se incompatível com um sistema psíquico treinado para a reação imediata. A liberdade exige tempo. A política exige ambivalência. A justiça exige hesitação. Mas o sujeito capturado pela lógica da fricção zero não pode mais esperar. Ele quer resposta. Ele quer redenção. Ele quer guerra. E a guerra já está disponível. Em vídeo, em tempo real, com botão de compartilhamento.
Neste cenário, o sofrimento coletivo não mobiliza solidariedade — mobiliza ressentimento. Não gera ação conjunta — gera seitas. Não constrói futuro — clama por vingança. E é esse clamor que abre as portas do totalitarismo. O fascismo contemporâneo não se anuncia com fardas: ele surge como afeto compartilhado. Como viralização do desespero.
Portanto, enfrentar as novas direitas, os extremismos e o autoritarismo político não é apenas tarefa das urnas. É tarefa da clínica, da cultura, da linguagem. É tarefa de reorganizar a dor. De devolver ao sofrimento sua dignidade crítica. De reconstruir, por dentro, a possibilidade de um sujeito que não reaja automaticamente, mas que pense, sinta, interprete e recuse.
E isso — no mundo da fricção zero — é o mais revolucionário que se pode fazer.
Reconstruir o tempo, reabilitar a linguagem, recuperar a hesitação: por uma ética da fricção como projeto de emancipação cognitiva e política.

Em um mundo acelerado até o esgotamento, esvaziado de simbolismo e saturado de estímulos, recuperar a hesitação é um gesto revolucionário. Hesitar é recusar o automatismo. É sustentar a dúvida diante do imperativo da certeza. É reencontrar o tempo da escolha dentro do turbilhão da antecipação. É fazer da lentidão uma forma de insurgência.
O sujeito da fricção zero foi treinado para não hesitar. Para responder, consumir, reagir, curtir, compartilhar, reproduzir, performar. Mas não para pensar. Pensar exige atrito. Exige tempo. Exige linguagem. E é por isso que tudo isso foi deslegitimado, dissolvido, transformado em ruído — porque o pensamento crítico, o verdadeiro, não serve ao capital. Ele atrapalha. Ele atrasa. Ele frustra a curva de crescimento. Ele produz silêncio onde deveria haver click.
Por isso, reconstruir o tempo é o primeiro gesto de desobediência subjetiva. Um tempo que não seja aquele da métrica, da performance, da produtividade ou da responsividade programada — mas o tempo da elaboração, do cuidado, da pausa. O tempo do não saber. O tempo da escuta. O tempo da elaboração simbólica que o algoritmo jamais poderá simular.
Esse tempo exige também a reabilitação da linguagem. Uma linguagem que volte a operar como território de dissenso, de ambiguidade, de invenção. A linguagem como espaço da práxis, e não como comando funcional. Como campo de encontro, e não como interface de comandos. Como potência de subjetivação, e não como rótulo de engajamento. É preciso rasgar os emojis, restaurar os adjetivos, permitir a contradição, dizer o que ainda não foi dito, escutar o que ainda não tem nome.
E para que isso aconteça, é preciso fazer as pazes com a fricção.
A fricção é o que nos humaniza. É onde o pensamento encontra o obstáculo que o obriga a se mover. É onde a subjetividade se reconhece como imperfeita e, por isso mesmo, transformável. A fricção é o lugar do outro. É o lugar do erro, da lentidão, do medo, da invenção, da dúvida e da coragem. É o que resta quando o mundo ainda não está pronto — e por isso mesmo, pode ser reinventado.
A ética da fricção não é um convite ao caos, mas ao reencontro com a complexidade. Não é um apelo à paralisia, mas ao pensamento. Não é uma nostalgia da lentidão, mas a recusa da aceleração como fetiche. É uma ética da resistência subjetiva em tempos de algoritmos coloniais. É o gesto de dizer: “não aceito ser automatizado. Não aceito ser antecipado. Quero a lentidão da dúvida, o conflito da linguagem, o erro da liberdade.”
É essa ética que pode inaugurar um novo horizonte de emancipação cognitiva, política e existencial.
Porque o verdadeiro combate à desinformação não começa com filtros, rótulos ou agências reguladoras. Ele começa no instante em que um sujeito, diante da enxurrada de estímulos, escolhe não responder de imediato. Escolhe hesitar. Escolhe interpretar. Escolhe pensar.
Esse sujeito é a última fronteira da democracia. E talvez — com sorte e luta — seja também o seu recomeço.

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