Galinha Pintadinha e Efeito Dunning-Kruger
- Sara Goes
- há 11 minutos
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A ignorância tornou-se método político e expressão estética no bolsonarismo. A incompetência confiante é o motor de um projeto de poder

“Você deixaria o seu filho assistir a um desenho que defende a transição de gênero, critica o capitalismo e ainda exalta a União Soviética?”, pergunta Júlia Zanatta, com voz alarmada, no vídeo publicado em 19 de outubro. Em seguida, prossegue: “Depois de ficarem famosos, resolveram transformar o canal da Galinha Pintadinha em uma fábrica de militantes do PSOL.” Entre referências a Stalin, Gramsci e Netflix, a deputada constrói um enredo sobre uma suposta conspiração comunista voltada a corromper crianças “na mais tenra idade”, tudo isso em pouco menos de três minutos de gravação.
A denúncia, contudo, tem um alvo insólito: um desenho infantil brasileiro lançado em 2006, criado para entreter crianças de até seis anos com músicas de domínio público e cantigas populares como “A Baratinha” e “O Sapo Cururu”. A Galinha Pintadinha é um dos maiores fenômenos da cultura digital brasileira, com bilhões de visualizações no YouTube e produtos licenciados que movimentam o mercado infantil. O que começou como um projeto doméstico de animação colorida virou parte da memória afetiva de uma geração.
Ainda assim, foi o suficiente para se tornar objeto de uma cruzada moral. O caso da Galinha Pintadinha sintetiza a paranoia contemporânea com perfeição. Tornou-se mais rumoroso que a polêmica inventada por Mayra Pinheiro, que enxergou um “pênis” na escultura da Fiocruz. Assim como as perseguições a Peppa Pig, essas narrativas reaparecem em momentos de ansiedade coletiva, como a pandemia, quando pais confinados com seus filhos se tornaram mais suscetíveis a teorias conspiratórias recicladas da internet dos anos 1990. O moralismo digital é o vetor cognitivo da desinformação.
A Galinha Pintadinha é o gatilho narrativo e símbolo involuntário de uma política que mistura ignorância, histeria moral e autopromoção digital. O que se vê em ação é a plena aplicação do Efeito Dunning-Kruger, o fenômeno cognitivo em que a incompetência gera uma confiança desproporcional. Pessoas com baixo conhecimento em um domínio específico tendem a superestimar drasticamente sua própria habilidade. Elas não apenas erram, mas são incapazes de reconhecer os próprios erros. No bolsonarismo, essa falha metacognitiva deixou de ser um defeito individual para se tornar um método político e um estilo de comunicação.
Esse padrão transborda da internet para o poder institucional. Em Cuiabá, o colapso financeiro da prefeitura se transformou em exemplo de como a arrogância ignorante pode conduzir a política ao desastre. O prefeito Abílio Brunini, eleito sob o discurso da antipolítica, recusa ajuda do presidente Lula como se governar fosse uma disputa pessoal, não uma responsabilidade pública. Sua teimosia converte a administração em arena ideológica e condena a cidade à paralisia.
Brunini é o retrato do Efeito Dunning-Kruger aplicado ao poder. Confiante em sua própria incapacidade, ele exibe o erro como autenticidade e o improviso como virtude moral. Transformou a atuação tosca em marca. Sua transmissão ao vivo após os atos de 8 de janeiro, minimizando a destruição do Congresso, foi demonstração de autoconfiança delirante, uma leitura superficial e factualmente incorreta erguida como se fosse coragem política. O prefeito que se recusa a cooperar com o governo federal é o mesmo que confunde desordem com autonomia e desinformação com resistência.

Carmelo Neto, por sua vez, é o produto mais acabado dessa estética. Sua ascensão meteórica no Ceará não se baseou em propostas, mas na encenação permanente de fidelidade ao bolsonarismo, a ponto de incorporar o sobrenome do líder ao seu próprio. O paradoxo é que o Ceará, estado que representa, foi o mais afetado pelo tarifaço de Donald Trump, uma medida articulada pela própria família Bolsonaro e que atingiu em cheio a economia nordestina. Ao endossar esse alinhamento, Carmelo se coloca publicamente contra o povo que o elegeu. Oriundo das redes sociais, onde começou aos 14 anos, ele ainda é, politicamente, o mesmo adolescente que confunde engajamento com liderança. Sua política performática, como os projetos para proibir linguagem neutra ou atendimento a bebês reborn na saúde pública, revela a dimensão simbólica da ignorância organizada.
A incursão diplomática de Eduardo Bolsonaro nos Estados Unidos é outro estudo de caso exemplar. Atuando como um diplomata autoproclamado, ele demonstrou confiança inabalável em sua capacidade de articular sanções internacionais. O resultado foi um erro de cálculo catastrófico. Acreditando poder pressionar o sistema americano, subestimou a natureza de seus aliados e o impacto em sua própria base. O tarifaço resultante foi um desastre estratégico que prejudicou o agronegócio e, ironicamente, fortaleceu o governo Lula.
A atuação de Eduardo ganha uma camada ainda mais delicada com a revelação de que ele vem sendo orientado por Paulo Figueiredo, neto do último ditador militar brasileiro e comentarista conhecido por seu extremismo ideológico. Para alguns analistas, essa influência não apenas reforça a radicalização do deputado, como agrava sua desconexão com a realidade diplomática. O episódio mais simbólico ocorreu diante da Casa Branca. Eduardo e Figueiredo, em meio ao frio gélido de Washington, gravaram um vídeo diante de um portão trancado, tentando transmitir autoridade em um cenário que evocava isolamento e fracasso. A cena, involuntariamente cômica, condensou o malabarismo mítico que ele precisou fazer para justificar a súbita aproximação entre Donald Trump e o presidente Lula, uma tentativa de conciliar dois polos opostos em nome de uma coerência que já não existe nem dentro do próprio bolsonarismo.
O ápice dessa confusão veio quando o próprio Jair Bolsonaro, forçado a intervir publicamente, admitiu que o filho, apesar dos 40 anos, não é tão maduro para a política. Foi a rara correção autoritativa que expôs a superioridade ilusória.
O ponto mais importante no caso de Carla Zambelli é a invasão hacker do sistema judicial. O episódio foi marcante porque a ação, que a parlamentar acreditava conduzir com astúcia, expôs a fragilidade da segurança digital e desencadeou uma crise institucional. Ao seu lado estava Walter Delgatti, outro personagem tragado pelo mesmo delírio de onipotência. Isolado politicamente e abandonado pelos que o usaram, Delgatti parece ter se tornado vítima do próprio excesso de autoconfiança, um reflexo direto do Efeito Dunning-Kruger que o levou a confundir habilidade técnica limitada com poder de manipular as instituições do Estado. Zambelli e Delgatti se encontraram, assim, no mesmo labirinto cognitivo: ela, movida pela ilusão de esperteza política; ele, pela ilusão de domínio tecnológico. O resultado foi um colapso compartilhado, onde a ignorância travestida de coragem produziu consequências reais para o país.
O caso de Eduardo Tagliaferro é talvez o mais triste e, paradoxalmente, o mais revelador. Diferente dos outros, ele não é um ideólogo nem um político profissional, mas um perito técnico com formação avançada em engenharia, direito e inteligência artificial. Nomeado por Alexandre de Moraes para chefiar um órgão de combate à desinformação no TSE, acreditou que sua competência técnica bastava para navegar no território movediço da política e da guerra informacional. Superestimou sua própria habilidade de operar entre magistrados, agentes de segurança e redes digitais, um ambiente onde a inteligência institucional vale mais que qualquer diploma.
O resultado foi um colapso pessoal e simbólico. O vazamento de mensagens sensíveis e o suposto uso de sua posição para municiar inquéritos no STF não representaram uma falha técnica, mas uma falha de julgamento. Sua posterior prisão por violência doméstica revelou a continuidade do mesmo padrão: a autoconfiança cega transformada em descontrole. O mais impressionante, porém, foi o delírio que se seguiu à queda. Tagliaferro passou a ver em si mesmo uma figura perseguida por Alexandre de Moraes, a quem atribuiu não apenas as desgraças de sua vida profissional, mas até seus pesadelos. Misturou o colapso pessoal com a fantasia de ser vítima de uma conspiração internacional, convencido de ocupar um papel central em uma guerra invisível que só ele parecia enxergar.
Sua tragédia é também uma caricatura do Efeito Dunning-Kruger: o técnico que se acredita estrategista, o especialista que confunde perícia com poder. Ao tentar transformar conhecimento instrumental em capital político, acabou sendo devorado pelo próprio delírio de competência. E é nesse ponto que o bolsonarismo se revela em sua forma mais cruel: um ecossistema que infla seus seguidores até o limite da autodestruição, promovendo-os de improviso à condição de profetas e depois os abandona à própria ruína.
O percurso de Tagliaferro encerra o ciclo iniciado na Galinha Pintadinha. Abílio Brunini transforma a ignorância em identidade, Carmelo Neto a converte em performance e Eduardo Bolsonaro a eleva a farsa diplomática, Tagliaferro é a etapa final, o momento em que a autoconfiança deixa de ser tática e se torna alucinação.
É aqui, contudo, que a análise deve retornar à origem. Júlia Zanatta, a denunciante da Galinha Pintadinha, não se encaixa perfeitamente nesse perfil. Ela não é ingênua nem vítima de viés cognitivo. Com formação em Direito e Jornalismo e mais de uma década de experiência em comunicação política, é uma operadora estratégica. Sua atuação é deliberada e vaidosa. Ela adota uma estratégia de barra de haltere: de um lado, propostas pragmáticas para seu estado, como o alívio fiscal para municípios em calamidade; de outro, gestos performáticos radicais, como a proposta de extinguir o Imposto de Renda ou a foto com uma metralhadora que lhe rendeu o apelido de Barbie fascista. Não é desinformada, é uma litigante contumaz que usa o assédio judicial e a provocação, como no episódio em que admitiu usar a filha como escudo, como ferramentas calculadas para buscar visibilidade e engajamento.
A ignorância fabricada é um espetáculo. Uns acreditam, outros interpretam, todos compartilham. Essa é a pedagogia do bolsonarismo: ensinar a confundir convicção com conhecimento, histeria com coragem e mentira com fé.




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