Hesitaremos: uma resposta ao sequestro dos afetos
- Sara Goes
- 11 de jun.
- 8 min de leitura
O ensaio “Assim os algoritmos sequestram o afeto”, de Reynaldo Aragon, nasceu de uma conversa nossa. Ele me ouviu como amigo, mas também como quem investiga com método. O texto é dele, mas a matéria-prima veio da minha vida. O algoritmo que ele descreve não é uma teoria abstrata, e sim uma engrenagem real, que aprisiona e reproduz nossa solidão, nossa exposição e nosso desejo. Ele está em cada deslize no celular, em cada mensagem que esperamos, em cada notificação que vem ou que falha. Está nos filtros, nos textos prontos, nos silêncios. E, às vezes, está nos crimes.
1. Tinder

Em 2019, eu me divertia nos aplicativos. Fiz de matchs, amigos. Ri de bios mal escritas, engatei boas conversas. Era uma fase improvável de leveza, de respiro. Um intervalo entre um casamento de 14 anos e um futuro relacionamento que seria cercado de luto e violência. Eu estava ali com curiosidade e algum afeto disponível.
Foi quando apareceu um match. Referências em comum, gosto por livros, uma inteligência fluente. Ele parecia alguém confiável, alguém do nosso meio, alguém que sabia o que dizer. E, talvez por isso, tenha sido pior. A violência foi imediata, limitada a uma experiência que me calou por anos. Quando tentei voltar ao aplicativo, tudo tinha sumido: as conversas, o perfil, o botão de denúncia que nunca existiu. E foi ali mesmo, no próprio aplicativo, que encontrei a negação que me faria esquecer: a ausência de rastros, de provas, de qualquer vestígio que confirmasse o que eu vivi. Como se nada tivesse acontecido, como se o crime só existisse porque eu insisti em lembrar. E se eu não lembrasse, não doeria. Se não doía, não era real. Se não era real, não precisava ser dito. A própria plataforma me ensinava a duvidar de mim.
A lógica das plataformas não é feita para proteger, é feita para girar. Para que a gente continue deslizando, mesmo depois de ter sido ferida. Eis a mercantilização da intimidade, uma economia emocional que transforma o desejo em produto, o afeto em performance e a dor em falha pessoal. A promessa de escolha serve para esconder uma estrutura que nos fragiliza.
Tudo é feito para que a gente desista. De denunciar, de confiar, de amar. Mas, ao mesmo tempo, tudo é feito para que a gente volte. Como se o aplicativo fosse a única saída possível, o único espaço onde ainda pode haver encontro, desejo, chance. Reynaldo chamou de engenharia da sensibilidade essa arquitetura que simula liberdade enquanto nos programa. Ela esvazia nossa crença nas relações e, ao mesmo tempo, monopoliza a promessa de afeto. Nos fere e depois se oferece como cura. Nos violenta e depois se apresenta como companhia. É uma arquitetura circular, que quebra, vicia, recompensa. E quando a gente pensa em sair, o sistema já cuidou de nos preparar o retorno.
2. Boo

Seis anos depois, com quase 40 anos e um filho pequeno, voltei aos aplicativos. Mãe solo, recém-saída de um casamento atravessado por várias formas de violência, eu não buscava redenção, amor ou recomeço romântico. Queria apenas me lembrar de quem eu era antes das agressões, do novo número na balança, da tensão diária pela sobrevivência. Não queria sequer um xodó. Só queria ouvir algum elogio que não nascesse da pena ou da surpresa de quem me via tão fragilizada pela primeira vez.
Fiz cadastro em aplicativos que prometiam uma métrica diferente. Plataformas que anunciavam “conexões mais profundas”, com critérios mais éticos, proteção contra violência e um design descolado que me impressionou logo de início. Os perfis não eram chamados de usuários, mas de almas. O vocabulário já antecipava uma promessa de densidade, de cuidado. E naquele momento de cansaço e busca, eu quis acreditar. Quis pertencer a uma rede que não me tratasse como descartável.
Eu sabia o que estava fazendo. Sabia o que era o design da fricção zero, sabia que quanto mais deslize, mais lucro. Sabia que já tinha sido vítima de um homem perigoso, com perfil construído para me enganar, e mesmo assim fui. Não sem constrangimento, não sem desconforto, mas fui. Porque, naquele momento, a possibilidade de ser validada rapidamente por desconhecidos parecia mais suportável do que continuar invisível.
Encontrei o que a máquina costuma entregar: presenças filtradas, bios sorridentes, frases genéricas. E eu também me adaptei. Escolhi uma foto estratégica e uma bio que fosse suficientemente sincera. Aragon escreve que “o afeto foi comprimido em gestos ligeiros e respostas automáticas”. E era exatamente assim que eu me sentia, uma presença comprimida, editada, reduzida à performance.
A plataforma me oferecia o lugar do recomeço, mas sob a condição de que eu me editasse e me tornasse produto da minha própria ausência. Era esse o protocolo implícito, parecer inteira, disponível e leve. Como se eu não tivesse passado por nada. Como se bastasse deslizar para ser entorpecida por um afeto breve.
E foi nesse retorno que reencontrei um amigo de anos, alguém que tinha perdido de vista por acaso, mas que nunca deixou de me acompanhar pela internet. Durante seis anos, ele me viu sem me ver. Acompanhava minha vida de longe como uma série da Netflix, como quem consome conteúdo que já sabe onde vai dar. Quando nos falamos novamente, ele já não me via como alguém real. Eu era uma personagem, uma projeção alimentada por algoritmos que ordenam afetos e pré-formatam vínculos. O que existia entre nós não era reencontro, era metaintermediação, aquele tipo de familiaridade artificial que o sistema cultiva até parecer intimidade.
Contei minha situação com sinceridade. Falei da rotina exaustiva, dos dois empregos, do bebê que dormia pontualmente às 21h, do corpo e das prioridades alteradas. Falei da solidão, da falta de tempo, da ausência de desejo. E ele ouviu em silêncio, mas não acolheu porque não precisou me redescobrir. Já tinha me organizado mentalmente com base no que viu filtrado, recortado, embalado para engajamento. O que o decepcionou não foi quem eu era, mas o fato de eu não coincidir com o perfil antecipado. Com uma ternura sanguinária, ele me disse, “Você é uma menina tentando sair do fundo do poço”. E disse como quem olha de cima, como quem observa um esforço patético e distante.
Ali, de novo, me reduzi à lógica da fricção zero, uma mulher que não podia ter dúvidas, não podia ter peso, não podia demorar, não podia falhar. Não era eu que estava ali. Era o algoritmo, decepcionado com a falha da própria previsão. Era como se eu tivesse traído uma narrativa que não escrevi. Como se a estética do meu cansaço fosse uma falha do sistema. Ali, mais uma vez, não fui vista. Fui medida.
3. Whatsapp

Foi depois desse episódio que nasceu minha amizade com Rey. Conversamos uma noite inteira, num tédio compartilhado enquanto nossos filhos dormiam fora de casa. Eu ainda estava abalada, me sentindo exposta, ridícula, com raiva de ter voltado aos aplicativos. Rey me ouviu com a paciência de quem sabe quando não é hora de interromper. Eu chorei no ombro dele e ele me consolou sem frases prontas. Quis saber os detalhes. Perguntou como eu me sentia, mas não para me explicar, e sim para nomear comigo aquilo tudo que ainda estava disperso. Indicou livros, citou autores, me apresentou Byung-Chul Han e depois, muito naturalmente, sugeriu que escrevêssemos um artigo juntos sobre aquilo. Achei o pior flerte do mundo.
Sem que a gente percebesse, aquilo virou uma amizade. Não baseada em compatibilidade de perfil, nem em algoritmo, nem em promessas. Mas em hesitação, em conversa longa, em silêncio que não pressiona. Uma amizade feita no tempo do afeto que resiste.
Há um trecho do ensaio de Rey que me atravessa, “O amor, como o pensamento, exige atrito. Exige o tempo do não-saber, da vulnerabilidade, do tropeço. A fluidez total dissolve esse tempo. Transforma o encontro em transação. A paixão em funcionalidade. A conversa em interface. O afeto em performance”. Me atingiu em cheio, porque descreve com precisão o que vivi sem nomear. Uma mulher tentando encontrar afeto entre intervalos de fraldas e trabalhos, acreditando estar buscando conexão, sem perceber que estava sendo violentada. Esse recorte do afeto feito para encaixar e performar foi justamente o que me levou de volta aos aplicativos, mesmo sabendo o que eles podiam me tirar.
4. Tela preta

A amizade com Rey me salvou antes mesmo que eu percebesse. Ele deu nome para o que estava por vir, me indicou leituras, abriu um espaço de escuta onde a hesitação foi acolhida, não silenciada. Por um tempo, me senti recuperada, capaz, como se o amar via aplicativos fosse apenas matéria-prima para ensaios ou piadas internas. Achei que, finalmente, tinha reaprendido a andar ao invés de deslizar, como Rey escreveu, desejando sem mapa, reencontrando o outro sem GPS afetivo.
Mas então, a segurança de voltar para a vida real virou um vácuo. Os desencontros inevitáveis se tornaram atrasos, respostas menos frequentes, até se dissolver num silêncio inescapável. Não houve briga, nem confronto, apenas o silêncio que invade quando o outro parte sem avisar. Regredi para dentro, revi cada fala, cada gesto, pesquisei meus próprios limites e me acusava sem descanso, perguntando-me se fui demais ou de menos.
Percebi que, depois de 14 anos de intimidade real, depois de um filho, depois dos 40, me tornara frágil, ansiosa, incerta em relacionamentos curtos, totalmente hipervigilante. Não era apenas sobre desempenho no amor, era também sobre como amizade e intimidade haviam sido reformatadas por uma lógica que, como Rey alerta, nos adestra a performar, consumir e repetir, como se nossa configuração emocional tivesse sido redesenhada pelo algoritmo. Na vida real não há log para consultar, nem “visto por último” para explicar o sumiço. Ficou só um vazio e uma pergunta que se repete: o que foi que eu fiz?
Rey escreve sobre o sequestro dos afetos. Han explica que esse sequestro é parte de uma nova modalidade de poder que se disfarça de oferta. E foi nessa fusão que compreendi: os algoritmos não apenas sequestraram o afeto, eles reprogramaram a forma como eu me relaciono.
4. Pracinha

Rey alerta que “o fascismo digital não se impõe, ele seduz. Ele oferece pertencimento no lugar da reflexão. Simplicidade no lugar da complexidade. Confirmação no lugar do outro.” Nesse mundo onde a fricção zero molda o afeto para o consumo, a indignação não nasce do embate, ela é fabricada, calculada e vendida, deslizando silenciosamente pelas timelines em bolhas algorítmicas de ódio.
Eu experimento isso diariamente, numa rotina de mulher sem tempo, trabalhando o dia inteiro diante de telas, tentando, sem sucesso, resgatar laços reais rompidos eleição após eleição, relacionamento após relacionamento, enquanto meu filho, um bebê hiper carismático, se aproxima de todos os olhares com uma facilidade inocente e desconcertante.
Meu filho me ensina diariamente essa urgência. Ele se conecta com qualquer pessoa, cachorro, gato ou calango. Conversa sem like, pede colo sem filtro, é presença sem artefato. E me diz, todo dia, que eu posso tentar de novo. Reaprender a hesitar é também reaprender a caminhar até a pracinha mais próxima com ele, parar na porta do mercado, reclamar do calor com quem passa. É reconstruir sentidos humanos que não são traduzidos em gráfico de engajamento e não fluem em buffer, mas fluem no tempo da presença, no tempo comum.
A resistência é também escrever com delicadeza sobre os traumas de uma amiga que mora do outro lado do país, tentando dar a ela, com cada palavra, a coragem de reagir. Que ela consiga, pouco a pouco, sair do silêncio imposto, usar o corpo para falar, a voz para existir, e se permitir viver fora do script. Que exista, não para agradar, nem para corresponder, mas simplesmente para estar. Com verdade. Com fricção. Com vida.


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