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Infância sob cerco: filhos transformados em armas da disputa política

  • Foto do escritor: Sara Goes
    Sara Goes
  • 17 de ago.
  • 4 min de leitura

Ao redor do mundo, filhos se tornaram peças sacrificáveis na disputa política, tratados como instrumentos de pressão, munição simbólica e moeda de troca em guerras que não reconhecem limites

De sanções internacionais à retórica doméstica, a infância tem sido manipulada como ferramenta de poder, revelando a face mais vulnerável da política contemporânea. A revogação do visto da filha de 10 anos do ministro Alexandre Padilha pelo governo estadunidense não foi acaso. É a aplicação deliberada de uma doutrina que admite o uso de familiares imediatos, inclusive crianças, como instrumentos de pressão contra autoridades estrangeiras. Prevista na legislação migratória, essa prática transfere o peso da sanção para os vínculos mais frágeis, ao tornar os filhos extensão punitiva do alvo principal.

O expediente não é novo. Já houve interpretação jurídica nos Estados Unidos que classificou o pagamento de mensalidade escolar de um filho como benefício ilícito a um pai sancionado¹. No plano simbólico, a extrema direita transformou a infância em trincheira de guerra, usando a pedofilia como arma recorrente. Nos anos 1980, o país viveu o “pânico satânico”, quando creches foram acusadas de abrigar rituais de abuso infantil ligados ao satanismo. Nada foi comprovado, mas famílias inteiras foram destruídas. Em 2016, o Pizzagate reciclou esse roteiro: uma pizzaria em Washington foi falsamente acusada de ser centro de tráfico de crianças ligado ao Partido Democrata, até que um homem armado invadiu o local “para investigar”.

Esses episódios foram o berço do QAnon, que globalizou a calúnia ao difundir a fantasia de uma cúpula pedófila controlando o mundo. O Brasil não ficou imune: em 2018, o bolsonarismo agitou a farsa do “kit gay” como acusação contra adversários políticos. Nos Estados Unidos, narrativas semelhantes alimentaram legislações como a “Don’t Say Gay”, sancionada por Ron DeSantis, que associava a defesa de direitos LGBTQIA+ à pedofilia. Em todos os casos, a lógica é a mesma: criar pânico moral, manipular afetos parentais e abrir caminho para retrocessos legislativos. O resultado é o sequestro da infância como arma política, desviando o foco do combate real ao abuso infantil e convertendo-o em instrumento de desinformação e controle.

No Brasil, a mobilização seletiva da infância como narrativa política se repete em episódios marcantes. Deltan Dallagnol, ao anunciar a saída do Ministério Público, justificou a decisão pela necessidade de cuidar da filha pequena e enferma. Pouco depois, descobriu-se que a criança, com apenas dois anos e meio, já figurava como sócia de uma empresa familiar. A contradição expôs como a condição infantil pode ser usada tanto como apelo emocional quanto como engrenagem patrimonial. O mesmo Deltan exibiu cinismo diante da morte do neto de Lula, quando mensagens reveladas pelo The Intercept Brasil mostraram procuradores ironizando a perda de um menino de seis anos. A infância, assim, não surge como valor absoluto, mas como recurso seletivo: ora convoca compaixão, ora alimenta escárnio. Como aponta Viviana Zelizer, a criança se tornou “inestimável” enquanto valor simbólico, mas deslocada para arenas utilitárias que a transformam em instrumento de interesses políticos e econômicos.

A lógica se repete em figuras da extrema direita. Em 2020, Rodrigo Constantino, comentando a denúncia de uma jovem contra um colega de classe por estupro, afirmou que, se fosse sua filha, a puniria em casa, relativizando a violência e responsabilizando a vítima. Para reforçar a tese, arrastou a própria filha para o exemplo. O impacto foi imediato: Laura Constantino, então adolescente, declarou ter ficado abalada, mas tentou defendê-lo. A cena expôs a corrosão produzida quando a autoridade paterna se sobrepõe à autonomia dos filhos, no que Jacques Donzelot denomina polícia da família.

O clã Bolsonaro levou essa dinâmica a um patamar inédito. Jair Bolsonaro ergueu sua imagem como patriarca absoluto, mas essa centralidade minou a autonomia dos descendentes. Eduardo, deslocado para missões internacionais, perdeu espaço interno. Carlos, operador digital, exibe sinais de colapso emocional após anos de paranoia e isolamento. Flávio, o mais funcional, teve a carreira limitada pelo próprio pai, que alternava entre blindá-lo e expô-lo. Não há sucessão, há contenção. Cada filho é fixado em um papel — Eduardo internacional, Carlos digital, Flávio político, sem possibilidade de renovação. A mesma pedagogia se estende ao país: adolescentes estimulados a se armarem, vacinação infantil ridicularizada, a filha adolescente exposta como símbolo político. Até declarações sobre atração por meninas de 14 anos, feitas em 2018, ou a homenagem a Stroessner em 2022, compõem o mosaico de um projeto que naturaliza a violência contra a infância como engrenagem de poder.

Michelle Bolsonaro, longe de representar contraponto, reforça a lógica ao expor a filha adolescente em um ambiente já marcado por falas misóginas do pai. Nesse projeto, até os vínculos íntimos são convertidos em ativos políticos, mesmo à custa da proteção infantil. A fronteira rompida se repete no cenário internacional. Em Gaza, milhares de crianças assassinadas diante das câmeras demonstram a necropolítica descrita por Achille Mbembe: o poder que decide quem pode viver e quem deve morrer. A infância, símbolo do futuro, é transformada em alvo preferencial da pedagogia da crueldade.

O contraste aparece no universo de Lula. Dona Lindu, Lurian e Bia Lula são figuras que fortalecem o símbolo político sem perder identidade própria. Lurian, mesmo alvo de ataques à vida privada, construiu trajetória independente. Bia surge como militante por escolha própria, não por imposição. A família é origem e memória, não engrenagem de submissão. Nesse registro, infância e pertencimento se entrelaçam com a força coletiva do banzo nordestino: o retorno simbólico à terra natal que, na velhice, se intensifica como afirmação política. Ao contrário da extrema direita, que instrumentaliza filhos para sustentar a autoridade do pai, a tradição popular resguarda a infância como promessa de continuidade coletiva. É nesse contraste que Lula encarna o arquétipo do “pai da soberania”: não o que subjuga, mas o que devolve dignidade à experiência infantil do abandono, transformando dor em obstinação.

Com Dona Lindu, aprendeu a converter pobreza em dignidade e fome em resistência. Com Lurian, enfrentou campanhas difamatórias que usavam a filha como arma contra o pai. Com Bia, viu a neta transformar perseguição em militância. E com Arthur, viveu a perda cruel explorada pelos adversários, mas devolveu a dor como força íntima de um avô que encarna um povo. Ao contrário da lógica seletiva descrita por Zelizer, Lula reinscreve a infância como linguagem de pertencimento coletivo. O que os inimigos tentam reduzir a dor privada retorna como política de soberania, enraizada na memória familiar e projetada como horizonte de dignidade nacional.


¹ Exemplo jurídico de sanções derivadas aplicadas em contexto estadunidense.


 
 
 

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