O útero do Estado: o acordo da fertilidade e a biopolítica na era Trump
- Sara Goes
- há 12 horas
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Quando o Estado decide quem pode gerar vida, a biopolítica vira negócio — e o corpo feminino, ativo de campanha. Entre fetos congelados, acordos farmacêuticos e discursos sobre “bebês patrióticos”, o trumpismo transforma a fertilidade em política de Estado e o útero em campo de batalha ideológica.
O fato e o contexto: uma crise anunciada

A cena, montada no Salão Oval em 16 de outubro de 2025, foi um ato de consumado teatro político. O presidente Donald J. Trump, ao lado de uma executiva da gigante farmacêutica EMD Serono, anunciou um acordo que prometia facilitar o acesso à Fertilização In Vitro (FIV) para milhões de americanos. O evento foi enquadrado como uma vitória para as famílias, uma resposta direta às preces de casais com dificuldades em conceber. Contudo, por trás da retórica cuidadosamente construída sobre "bebés americanos bonitos", desenrolava-se um complexo jogo de poder, pragmatismo eleitoral e estratégia corporativa, cujas raízes mergulham fundo nas guerras culturais que definem a América contemporânea.
Este momento não foi um acaso. Foi a consequência direta de uma crise política detonada meses antes, em fevereiro de 2024, quando o Supremo Tribunal do Alabama emitiu uma decisão sísmica. Numa aplicação lógica da ideologia pró-vida que ganhou força após a queda de Roe v. Wade em 2022, o tribunal determinou que embriões congelados criados por meio de FIV são "crianças extrauterinas". O seu raciocínio baseou-se explicitamente na linguagem antiaborto da constituição do estado e na crença teológica de que a vida humana começa na concepção. O presidente do tribunal chegou a citar a Bíblia para justificar que a vida humana "não pode ser injustamente destruída sem incorrer na ira de um Deus santo".
As consequências foram imediatas e devastadoras. As principais clínicas de fertilidade do Alabama, confrontadas com a perspetiva de processos por homicídio culposo por descartar embriões, uma prática padrão no procedimento, suspenderam todos os tratamentos de FIV. O caos e a incerteza que se abateram sobre milhares de famílias geraram uma onda de indignação nacional. A crise expôs uma contradição fatal no coração do movimento conservador: a ideologia pró-vida, levada à sua conclusão lógica, colidia frontalmente com uma tecnologia reprodutiva popular, abraçada por muitos dos seus próprios eleitores como "pró-família".
A reação política foi veloz e bipartidária. A legislatura do Alabama, controlada pelos Republicanos, correu para conter os danos, aprovando em poucas semanas uma lei que concedia imunidade civil e criminal a fornecedores de FIV. Foi uma retirada tática, uma solução pragmática que permitiu a reabertura das clínicas, mas que evitou deliberadamente a questão central: o estatuto legal de um embrião. Para Donald Trump, esta crise foi uma oportunidade política de ouro. Ele rapidamente se distanciou da decisão, declarou o seu "forte apoio à FIV" e iniciou uma ofensiva de branding, posicionando o Partido Republicano como "o partido dos pais" e o "partido da FIV".
A política pública: entre a retórica e o acordo fechado

A política de fertilidade da administração Trump opera em duas velocidades distintas: a da retórica grandiosa e a da ação pragmática. A primeira é um conjunto de propostas e ideias destinadas a responder à ansiedade demográfica que permeia a sua base. A segunda é a realidade de acordos concretos, moldados mais pela negociação empresarial do que por uma legislação abrangente.
No campo das intenções, o governo e os seus aliados têm explorado ativamente políticas pronatalistas para combater o declínio das taxas de natalidade nos EUA. Figuras influentes no universo MAGA, como o antigo conselheiro Stephen Miller, alertam para o "colapso" da fertilidade americana. Estas preocupações deram origem a propostas concretas que circulam nos círculos conservadores. As ideias em discussão incluem a criação de um "bónus de bebé" de 5.000 dólares para cada nova mãe, a reserva de uma percentagem de bolsas de estudo de prestígio para candidatos casados ou com filhos, e até a instituição de uma "Medalha Nacional da Maternidade" para homenagear mães de famílias numerosas. O próprio Trump abraçou esta agenda, apelando publicamente a um novo "baby boom".
No entanto, a promessa de campanha mais ousada de Trump foi a de tornar a FIV gratuita ou obrigar os seguros a cobri-la, uma proposta que muitos analistas consideraram legislativamente inviável. A realidade da sua política concretizou-se de forma muito diferente. As suas ordens executivas e anúncios focaram-se em emitir orientações não vinculativas que encorajam os empregadores a oferecer benefícios de fertilidade como pacotes suplementares, semelhantes a planos dentários, sem qualquer mandato ou subsídio federal.
O acordo com a EMD Serono é, até agora, a manifestação mais tangível desta política. Não se trata de uma lei que torna a FIV universalmente acessível, mas sim de um acordo específico com um único fabricante de medicamentos para oferecer descontos através de um novo website governamental. Críticos, como a senadora Elizabeth Warren, rapidamente classificaram estas medidas como "meias-medidas" e "promessas quebradas", argumentando que a política real depende da boa vontade do setor privado em vez de uma garantia governamental. Assim, a política pública de Trump nesta área revela-se como um conjunto de incentivos e acordos pontuais, em vez de uma reforma estrutural e universal do sistema de saúde.
O acordo com a EMD Serono é um exemplo paradigmático do modus operandi de Donald Trump, que governa menos como um estadista tradicional e mais como um empresário a fechar um negócio. A negociação foi uma transação pura, um quid pro quo meticulosamente calibrado para servir os interesses de ambas as partes.
Para compreender o acordo, é preciso entender o ecossistema de coação e incentivo que a administração construiu para dobrar a indústria farmacêutica. A estratégia assentava em dois pilares. O "pau" era a ameaça de tarifas de até 100% sobre medicamentos importados, invocando a Seção 232 da Lei de Expansão Comercial. Esta ameaça era particularmente potente para uma empresa como a EMD Serono, com uma casa-mãe alemã (Merck KGaA) e uma cadeia de abastecimento global, pois poderia devastar as suas operações nos EUA. A "cenoura" era a plataforma governamental TrumpRx.gov, um mercado online que permitiria às empresas vender medicamentos diretamente aos pacientes, contornando intermediários e oferecendo benefícios como isenções de tarifas para as empresas que cooperassem.
A EMD Serono, inicialmente cética em relação aos planos da administração, mudou de rumo quando a ameaça das tarifas se tornou iminente e concorrentes como a Pfizer e a AstraZeneca começaram a fechar acordos. A empresa adotou uma estratégia de "diplomacia corporativa direta", identificando a necessidade política urgente de Trump por uma vitória na FIV e oferecendo uma solução à medida.
A estrutura do negócio foi clara. Nas concessões da EMD Serono, a empresa ofereceu descontos de 84% no seu portfólio de medicamentos para FIV e comprometeu-se a investir nos EUA. Em troca, nos benefícios para a EMD Serono, a empresa garantiu uma isenção total das tarifas punitivas e, crucialmente, um Voucher de Prioridade de Revisão da FDA para um novo medicamento, o Pergoveris.
Este voucher, que reduz o tempo de aprovação de quase um ano para apenas um ou dois meses, é um ativo comercial de imenso valor, acelerando o acesso ao mercado e proporcionando uma enorme vantagem competitiva.
A abordagem da EMD Serono contrastou fortemente com a da PhRMA, o principal grupo de lobby da indústria, que gastou centenas de milhões de dólares numa campanha de confronto que se revelou ineficaz. A EMD Serono, com um orçamento de lobby mínimo e uma política contra doações políticas, alcançou um resultado superior porque entendeu a natureza transacional do poder na era Trump. A empresa não lutou contra a agenda do presidente; alinhou os seus ativos corporativos com os objetivos políticos dele, transformando uma ameaça existencial numa vitória estratégica.
A biopolítica MAGA e os ecos do poassad

O interesse do movimento MAGA pela fertilidade não é apenas uma questão de saúde
pública ou de pragmatismo eleitoral. É a manifestação de um coerente projeto biopolítico, enraizado na ideologia do Nacionalismo Cristão e na ansiedade demográfica. A preocupação com o declínio das taxas de natalidade da população branca e cristã é uma questão existencial sobre a identidade e o futuro da nação. O apelo a um "baby boom" não é um convite neutro para que todos os cidadãos tenham mais filhos; é um projeto cultural e político que visa reforçar demograficamente um bloco específico, para "restaurar" uma visão particular da nação.
Esta visão está intrinsecamente ligada a uma política de fronteiras rígida e a uma retórica anti-imigração. O controlo demográfico opera em duas frentes: incentivar nascimentos dentro do grupo desejado e, simultaneamente, limitar ou reverter a entrada de grupos considerados estranhos à identidade nacional, como os imigrantes latinos. A expulsão de imigrantes torna-se, assim, o outro lado da moeda da política pronatalista, uma forma de "purificar" o corpo demográfico da nação enquanto se tenta aumentar a sua base "nativa".
Neste contexto, a intervenção do Estado na reprodução humana para fins ideológicos, embora com métodos distintos, estabelece uma linha de comparação com regimes autoritários do século XX. Uma análise comparativa revela padrões, mesmo que as justificações e as ferramentas tenham evoluído.
Na Alemanha Nazi, a força motriz era uma eugenia biológica radical. O objetivo do programa Lebensborn não era apenas quantitativo (mais cidadãos), mas qualitativo: purificar e criar uma "raça superior". Isto levou a políticas extremas como o rapto de crianças consideradas "racialmente valiosas" em territórios ocupados, tratando-as como um recurso genético a ser colhido. O Estado reivindicou a autoridade para definir quais vidas eram valiosas.
Na Itália Fascista, a principal motivação era a ambição geopolítica. A "Batalha pelos Nascimentos" de Mussolini era primariamente quantitativa, focada em aumentar a população para fornecer "corpos" para os seus exércitos e colónias. O corpo da mulher foi transformado num recurso para o Estado, e um ato privado, ter filhos, foi redefinido como um dever público e patriótico.
Na Espanha Franquista, a ideologia era fundamentalmente reacionária. O objetivo de Franco era restaurar uma ordem social passada: católica, patriarcal e tradicionalista. As suas políticas foram de reversão, desmantelando direitos progressistas das mulheres e impondo a sua domesticidade como forma de controlo social e consolidação ideológica. Uma mulher com controlo sobre o seu corpo era vista como uma ameaça ao Estado.
O movimento MAGA opera dentro de uma democracia, utilizando ferramentas mais indiretas como guerras culturais e a regulação estratégica da tecnologia. Não há programas estatais de criação, mas a ideologia subjacente partilha um tema comum com os regimes históricos: a crença de que a demografia é um elemento crucial do poder do Estado e que a procriação é uma questão de interesse nacional a ser incentivada e moldada para fins ideológicos.
Isolamento, alianças e o novo eixo nacionalista

Este projeto biopolítico interno reflete-se numa reconfiguração da política externa, marcada por um crescente isolamento das alianças democráticas tradicionais e uma aproximação a nações que partilham uma visão de mundo iliberal e nacionalista. A ideologia do "America First" traduz-se num ceticismo em relação a instituições multilaterais e numa preferência por relações bilaterais transacionais, onde a afinidade ideológica muitas vezes se sobrepõe aos interesses geopolíticos de longo prazo.
Neste novo mapa diplomático, Israel, sob a sua liderança de direita, emerge como um parceiro estratégico e ideológico crucial. A aliança é cimentada não apenas por interesses de segurança, mas por uma ressonância de narrativas. Ambos os movimentos veem-se como defensores de uma identidade nacional forte, enraizada na tradição e ameaçada por forças globais e demográficas.
A celebração da família tradicional e a preocupação com as taxas de natalidade tornam-se um terreno comum, criando um eixo onde a política de fertilidade e a geopolítica se encontram. Esta aproximação permite que o movimento MAGA contorne as críticas de antissemitismo, projetando uma imagem de apoio a um Estado-nação étnico e religioso, que serve de modelo para a sua própria visão de uma América mais explicitamente cristã e nacionalista.
A guerra silenciosa pela definição: da proibição à regulação 'ética'

Enquanto a resposta de Donald Trump à crise da FIV é impulsionada pelo pragmatismo eleitoral, uma batalha mais subtil e potentially mais duradoura está a ser travada pela alma da medicina reprodutiva. Longe dos holofotes da Casa Branca, a vanguarda intelectual do movimento conservador está a executar uma estratégia sofisticada para alcançar os seus objetivos a longo prazo, não através da proibição, mas através da regulação e da redefinição.
Organizações influentes como a The Heritage Foundation e a Susan B. Anthony Pro-Life America reconhecem que uma proibição total da FIV é politicamente inviável e impopular. Por isso, a sua estratégia mudou. Em vez de atacar a tecnologia de frente, procuram enquadrá-la nos seus termos morais. Eles argumentam que a indústria da fertilidade nos EUA opera como um "Oeste Selvagem" não regulamentado, que se envolve em práticas que eles consideram equivalentes à eugenia, como a criação de embriões excedentários, o seu descarte e o rastreio genético para selecionar características desejáveis.
A solução proposta não é a proibição, mas a criação de uma distinção fundamental entre a FIV "antiética" (a prática padrão atual) e uma "FIV ética". Esta versão "ética" seria rigorosamente regulamentada para se alinhar com os seus princípios pró-vida, por exemplo, limitando o número de embriões criados ao número exato a ser transferido. Ao mesmo tempo, promovem ativamente a "Medicina Reprodutiva Restaurativa", um conjunto de terapias que visam tratar as "causas profundas" da infertilidade, apresentando-a como uma alternativa moralmente superior à FIV.
Esta estratégia é engenhosa. Permite-lhes apoiar o objetivo popular de ajudar casais a ter filhos, enquanto condenam os métodos que violam os seus princípios fundamentais sobre o estatuto do embrião. Abre uma nova frente política. A batalha já não é apenas sobre o acesso à tecnologia, mas sobre como ela é usada, quem a controla e que linhas morais devem ser traçadas.
Esta é a verdadeira guerra a longo prazo. É uma tentativa de mudar a prática médica a partir de dentro, orientando pacientes e políticas públicas para um modelo de medicina reprodutiva que incorpore os seus valores. É uma forma de influência mais silenciosa do que um decreto presidencial, mas o seu impacto, ao redefinir o que é considerado prática médica aceitável e ética, pode ser muito mais profundo e permanente. A luta pelo útero do Estado não está a ser travada apenas com ordens executivas e acordos corporativos, mas também com a reescrita silenciosa das regras da própria ciência.
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