A pedra no sapato das esquerdas
- Redação
- há 9 horas
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Como a esquerda brasileira tropeçou nas próprias contradições ao lidar com as pautas identitárias.
Por Prof. Adriano Viaro
Entre o discurso da inclusão e a prática da exclusão, o texto de Adriano Viaro expõe o desconforto da esquerda diante do espelho das minorias.
As contradições da esquerda diante do espelho identitário

A adoção inicial das pautas identitárias por parte da esquerda não se deu pelas bandeiras dos movimentos, mas pela arrogância de "abraçar por não ser preconceituosa", ou seja, o discurso, ora explícito, ora tácito, era o de "venham com a gente, pois aqui não discriminamos ninguém".
Essa tentativa de se dizer "não racista, não machista, não lgbtfóbico", nunca teve base prática, tampouco sentido enquanto discurso, visto que o preconceito não possui base ideológica. A partir do momento em que torna-se evidente o preconceito dentro da própria esquerda - o que constitui apenas e tão somente um argumento racional pautado pela essência endêmica dos "preconceitos capitais"-, a esquerda passa a defenestrar e chamar de identitarismo toda pauta de rechaço ao [seu] preconceito. Trata-se, na verdade, da negação à necessidade de letramentos, ou seja, estudo. Mais do que isso: confessar seus próprios pecados.
A ignorância está em vários pontos da própria esquerda no que tange às manifestações preconceituosas. Quando ouvimos falar que a indicação de uma pessoa negra ao STF não pode ser prioridade, "pois Joaquim Barbosa deu no que deu", percebe-se que um negro claudicante fecha as portas para todos os demais negros - o que é fácil de se perceber no simples fato de que erros de pessoas brancas não são seguidos de discursos impeditivos para outras indicações de brancos (vide o caso envolvendo o ministro Fux, do STF). O mesmo poderia ser dito em relação a todos os outros recortes, símbolos e signos tidos como identitários. A questão de Joaquim Barbosa mostra a falta de letramento pelo simples e absurdo desconhecimento da forte carga que acompanha qualquer negro que ouse ocupar espaços de poder.
Juízes, árbitros de futebol ou artistas globais, pretos, já partem da necessidade estratosférica de provar a todo instante não serem atores sociais da inépcia anexada as suas epidermes. Ou seja, os atores pretos estão a todo instante sujeitos ao julgamento por suas cores.

Um caso típico de falta de letramento para questões da comunidade LGBT, está no discurso enviesado e explícito acerca das manifestações da deputada Erika Hilton. Chamá-la de "deslumbrada", por conta de suas atitudes de ordem pessoal, é desconhecer que uma mulher trans, adulta, por vezes terá comportamentos imaturos - não estou me referindo a evidentes processos de infantilização, mas de manifestações de euforia -, pois sua adolescência foi em identidade masculina, ou seja, toda pessoa trans, além da "vitória" terá um tempo perdido incapaz de ser recuperado - o que motivará atitudes relacionadas à "necessidade de afirmação", pois o movimento da busca dos vieses de confirmacao foi descartado pela troca de identidade de gênero. Ou seja, na transição há um simbólico "reset". E se isso não está claramente evidenciado, precisa-se estudar.
No início, todo membro de coletivos sociais das tidas e ditas minorias eram convidados ao convívio da esquerda, pois ali teriam guarida, porém, quando a mesma esquerda é desmascarada em seus preconceitos, os membros das minorias passam a se questionar e identificar em outros âmbitos ideológicos guarida para suas dores. O campo liberal, por exemplo, acolhe toda a comunidade LGBT, pois enxerga nela um nicho a ser explorado economicamente - gays, por exemplo, em grande parte não possuem filhos e por tal fato consomem mais produtos da sociedade de mercado. A produção de commodities sociais de natureza "fetichista gay" seduz a parcela LGBT de classe média, com mais geração de interesse do que a reserva de espaços vip junto a caminhões da parada LGBT. E sim, isso poderia mudar se os palanques progressistas, em vez de recrutarem LGBTs para a sua "solução de classe", estudassem e entendessem as contradições e demandas da própria classe LGBT em si.
Em resumo, a esquerda viu nos chamados movimentos identitários uma força de militância e voto, porém, quando percebeu o seu total desconhecimento acerca das demandas reivindicatórias dos movimentos em si passou a desconstruí-los dizendo que eles devem esquecer o "identitarismo" e juntar-se ao que é fundamental: a luta de classes.
Exigir que uma pessoa trans não se "deslumbre" por ser cortejada, elogiada, ou por sentir-se desejada e amada - após toda uma luta de autoceitação -, ou simplesmente não entender que uma pessoa negra não pode ser barreira impeditiva ao acesso de outras pessoas de mesma cor, pois isso é essencialmente racista, é querer impor que a branquitude, além de definir espaços de poder, seja o "default" de toda a sociedade. Falta letramento sim. E não é pouco.
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