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O B mudo do PT

  • Foto do escritor: Sara Goes
    Sara Goes
  • 30 de jun.
  • 6 min de leitura

Na campanha pela taxação dos bilionários, bancos e bets, um B ficou de fora, mudo por estratégia, silenciado por cálculo. Mas em tempos de guerra comunicacional, até o que não se diz fala alto

No campo da linguagem e na política, o silêncio também fala. É ele que estrutura o não-dito e define os limites do enunciável. Para Foucault, o não dito é um instrumento de poder, parte das estratégias que definem o que pode ou não ser enunciado em determinado regime discursivo. Bourdieu entende o silêncio como forma de dominação simbólica, resultado das estruturas sociais que condicionam quem tem autorização para falar e o que pode ser dito. Já para Bakhtin, o não dito não é ausência, mas elemento constitutivo do enunciado, pois todo discurso carrega ecos de vozes anteriores e de silêncios que o estruturam.

A campanha "Taxação BBB", lançada pelo PT em junho deste ano, ao nomear bilionários, bancos e bets, constrói um enunciado combativo que se ancora no ethos popular do justiçamento econômico. Mas como defende Bakhtin, todo discurso é uma resposta e também uma espera.

Falta um B e sua ausência é uma escolha pragmática. O B de Big Tech não cabe no slogan porque rompe com a ordem simbólica do consenso tecnológico. O significante não se esgota no que é dito, pois não-dito é parte da escritura. Esse B ausente é uma escrita por ausência. Ele marca a impossibilidade de nomear aquilo que estrutura a própria fala, o algoritmo.

Essa ausência se torna mais eloquente diante dos eventos recentes. E é justamente nesse ponto que a política do silêncio se cruza com a prática institucional, revelando os contornos do não-dito como parte do próprio campo de batalha. Antes de virar discurso, a omissão se revela como estratégia, e a conjuntura mostra que o silêncio tem forma e função. Como lembram Foucault, Bourdieu e Bakhtin, o não dito nunca é neutro, ele opera como limite, imposição e também como potencial enunciativo.

Nesse ponto, o “B mudo” aparece como silencioso cálculo político. Moisés Mendes, em seu artigo “O fim da coalizão amarrada com arame farpado”, argumenta que o silêncio de Lula não é ingenuidade, mas rutura estratégica com a lógica tradicional da coalizão. Ele evita marcar territórios que ainda não tem força para disputar, retendo o campo discursivo. Já Reynaldo Aragon, em textos como “Entre o algoritmo e a covardia: estamos perdendo a guerra informacional” e “A arquitetura da destruição e o silêncio das máquinas”, mostra como a extrema direita, articulada às big techs, opera uma guerra comunicacional sofisticada, com encenação de liberdade, controle da narrativa e captura de regimes de verdade. O PT silencia sobre as plataformas não por omissão, mas por reconhecer que nomeá-las hoje seria entrar com arma atabalhoada num campo onde o adversário já está armado.

O julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet pelo STF ampliou a responsabilização das plataformas sobre conteúdo ilegal mesmo sem ordem judicial. A decisão foi considerada histórica pela AGU e criticada pelo Google, que alegou risco à liberdade de expressão e à economia digital.

A retórica de que qualquer tentativa de regulação das plataformas seria censura tem se naturalizado como senso comum digital. Mas trata-se de uma operação discursiva, no sentido foucaultiano, que busca interditar o próprio campo do debate. A falácia da censura, mobilizada por setores da extrema direita e endossada por representantes das big techs, não apenas desinforma, ela estrutura os limites do que se pode dizer sobre regulação, invertendo os polos de poder. O poder corporativo se disfarça de liberdade, e toda tentativa de limitar abusos é enquadrada como autoritarismo.


Fonema-fantasma da liberdade

“A liberdade de expressão é a nossa alma”, disse Jair Bolsonaro no dia 30 de maio de 2025, aqui em Fortaleza, durante o seminário de comunicação promovido pelo PL. A escolha da Primeira Emenda como referência discursiva não é acidental, é uma importação simbólica de valores norte-americanos para blindar estruturas de desinformação no Brasil. O evento, com presença de representantes das big techs, funcionou como palco para amplificar essa retórica. Bolsonaro atacou o STF, distorceu falas da primeira-dama e acusou o governo de querer importar métodos autoritários da China. O enunciado é sempre responsivo, e aqui, a fala de Bolsonaro responde e antecipa uma disputa, transformando a ideia de liberdade em escudo para a impunidade algorítmica.

O seminário foi mais do que um evento, foi ponto de inflexão. As big techs se aliaram explicitamente ao capital político da extrema direita para capturar o Estado e a narrativa. Como vem alertando Reynaldo Aragon, trata-se de uma etapa avançada da colonização algorítmica, um processo em que o lobby digital deixa de operar nos bastidores e assume a cena pública, organizando eventos, moldando políticas e interferindo nas estratégias eleitorais. É uma ocupação simbólica e institucional, travestida de tecnicidade, que atravessa comissões, frentes parlamentares e instâncias legislativas, bloqueando qualquer tentativa de construir soberania informacional.

Essa mesma lógica foi encenada na Paulista, onde o deputado Gustavo Gayer subiu no carro de som para exibir áudios de Alexandre de Moraes, distorcendo suas falas. A performance mobilizou culto religioso, perseguição judicial e fake news, compondo uma narrativa de martírio digital. A estratégia é antiga, transformar a responsabilização institucional em opressão simbólica. O que muda é a camada técnica, a viralização mediada por algoritmos que selecionam, priorizam e disseminam o que melhor engaja, não o que melhor informa. É aqui que a função fática do discurso, manter o canal aberto, é substituída pela função conativa algorítmica, capturar e direcionar o desejo.

O discurso de Gayer, os áudios contra Moraes, o evento do PL, a decisão do STF, a atuação da FrenCyber e a mobilização da chamada “bancada do like” formam um mesmo campo de disputas simbólicas e cognitivas. Estamos diante de um novo regime de verdade, no sentido foucaultiano, aquele em que a verdade não é aquilo que se comprova, mas o que circula com mais intensidade. O critério de verdade passa a ser o de viralidade. E nesse regime, o silêncio sobre as big techs, como já se disse, também fala.


Sintaxe da guerra

A guerra contemporânea não se trava apenas com armas, mas com vocabulários. Cada termo escolhido, cada silêncio calculado, cada metáfora repetida compõem a sintaxe de uma batalha discursiva em curso. Se a política é também linguagem, então os conflitos se dão na escolha dos signos, na ordem dos enunciados e nas pausas estratégicas entre eles. Como escreveu Moisés Mendes, essa disputa é menos sobre os fatos e mais sobre o controle da linguagem que os torna possíveis e, por isso mesmo, sobre quem pode falar, o que pode ser dito e quem se cala. É nessa gramática do embate que o B mudo ganha função, não como ausência passiva, mas como parte de uma estrutura tática de enunciação.

Nesse contexto, a campanha do PT acerta ao mirar em vilões visíveis, bilionários, bancos e bets e ao silenciar sobre o poder estrutural das big techs, que são simultaneamente infraestrutura, arena e ator do jogo. Como já defendi, em parceria com Reynaldo Aragon, a proposta de sobretaxar as big techs seria um gesto de soberania informacional ao reverter a lógica da dependência e reconstruir o público num espaço onde tudo foi privatizado pela linguagem das plataformas.

Talvez o PT ainda não possa dizer esse B em voz alta. Mas não dizer é diferente de não pensar. A política, como a linguagem, é também feita de pausas. E cada pausa tem valor fonológico. O B mudo é uma pausa que pede futuro. Em Bakhtin, todo enunciado carrega ecos de outros, o dito e o não-dito formam um só corpo discursivo. Nesse sentido, o B mudo funciona como vestígio de um enunciado interditado, mas ainda assim presente. Ele é efeito estético e político, pois dramatiza uma ausência e insinua uma promessa. Sua mudez não é ausência de voz, mas estratégia de escuta. É silêncio que prepara terreno para a irrupção de um novo léxico, aquele em que as big techs possam finalmente ser nomeadas sem mediação.

Esse dia pode estar mais próximo do que parece. A capital federal recebe, nos dias 8 e 9 de julho, o Encontro Nacional “Soberania Já!”, que reunirá parlamentares, ativistas, pesquisadores, coletivos hackers, organizações sociais e representantes do poder público para debater os caminhos da soberania digital no Brasil. Com atividades públicas e reuniões estratégicas em diferentes locais do Plano Piloto, o evento contará com a presença de nomes como Orlando Silva, Ideli Salvati, Nina da Hora, Beatriz Tibiriçá, Uirá Porã, Sérgio Amadeu e Jader Gama.

A programação inclui aulas públicas, articulação de uma Frente Parlamentar, plenárias estratégicas e grupos de trabalho voltados à construção de um Plano Nacional de Soberania Digital. Promovido por uma coalizão de entidades da sociedade civil articuladas na Rede pela Soberania Digital, com apoio da Campanha Internet Legal e de diversos mandatos parlamentares, o encontro marca um esforço concreto para que o Brasil possa, enfim, dizer esse B em voz alta.


📲 Mais informações e atualizações em breve em: www.soberania.digital


 
 
 

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