O Cerco ao Brasil: como os EUA reposicionam a América Latina no mapa da guerra híbrida
- Rey Aragon

- há 36 minutos
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A ofensiva silenciosa dos Estados Unidos na América do Sul redesenha fronteiras, leis e narrativas sob o pretexto do “narcoterrorismo”. Argentina, Paraguai, Venezuela, Peru e Guiana formam hoje as linhas de contenção de um cerco político, militar e informacional ao Brasil.
Enquanto o mundo observa o Oriente Médio e o Pacífico, uma guerra invisível avança sobre o coração da América do Sul. Sob a bandeira do “combate ao narcoterrorismo”, Washington reativa a Doutrina Monroe, infiltra suas doutrinas jurídicas e militares em governos aliados e cerca o Brasil por todos os flancos — da Amazônia ao Atlântico Sul. Este artigo revela, com precisão cirúrgica, as engrenagens desse novo cerco hemisférico e os cenários que podem decidir o futuro da soberania latino-americana.
A guerra que não se vê

Há uma guerra em curso, mas ela não é declarada. Não há tanques atravessando fronteiras nem aviões riscando o céu, mas há satélites orbitando consciências, sanções que substituem bombas e narrativas que cumprem o papel das antigas frotas de invasão. É a guerra que se infiltra nas instituições, nas leis, nas telas e nos fluxos de informação. Uma guerra silenciosa e permanente, onde o inimigo é o que se opõe à ordem do império. E, nessa guerra, o Brasil ocupa o centro do tabuleiro.
A geopolítica do século XXI deixou de ser apenas disputa por território: é disputa por sentido. O domínio deixou de se manifestar apenas no chão físico e passou a operar no campo simbólico, jurídico e informacional. O novo império não precisa ocupar o território — basta controlar as narrativas que o explicam. Assim, a América Latina reaparece no radar de Washington não como espaço a conquistar, mas como fronteira cognitiva e jurídica a reocupar. É a atualização da velha Doutrina Monroe, agora digitalizada e travestida de “cooperação antinarcótica”, “proteção de infraestruturas críticas” e “defesa da democracia”.
Desde 2023, a movimentação dos Estados Unidos na região voltou a seguir o padrão histórico que sempre antecede a coerção: saturar o continente de pretextos morais, criar inimigos internos e reconfigurar leis nacionais para legitimar a interferência externa. O termo “narcoterrorismo”, ressuscitado com força em relatórios e pronunciamentos, cumpre hoje o mesmo papel que a palavra “comunismo” teve na Guerra Fria: o de pavimentar, sob aparência de justiça, o caminho para o domínio. É o novo álibi jurídico da dominação.
A diferença é que agora o campo de batalha é difuso. A ofensiva não parte apenas do Pentágono, mas também do Tesouro, das agências de segurança, das big techs e dos parlamentos aliados. A guerra híbrida opera por meio de sanções, campanhas de desinformação, lawfare e integração assimétrica das forças armadas de países periféricos às doutrinas de segurança norte-americanas. As frotas cederam lugar às listas de sanções; as bases, aos acordos de interoperabilidade; e as invasões, aos tratados de “cooperação em segurança interna”. É a guerra como norma, não como exceção.
O Brasil está cercado, não por divisões blindadas, mas por narrativas que o empurram para a defensiva. A cada novo decreto, a cada nova designação de “grupo perigoso”, a cada exercício militar no entorno, o país é lembrado de que precisa escolher um lado — e que qualquer tentativa de soberania autônoma será interpretada como ameaça. Esse cerco não é improvisado: é uma arquitetura planejada que combina as dimensões econômica, militar, informacional e psicológica. Do Caribe ao Prata, do Pacífico ao Atlântico Sul, o império traça uma linha de contenção que visa impedir o fortalecimento do Sul Global e, sobretudo, bloquear o papel estratégico do Brasil no BRICS.
Mas esta guerra, invisível aos olhos e onipresente nos efeitos, não é apenas externa. Ela também se expressa nas fissuras internas — nas elites colonizadas, na extrema-direita que atua como correia de transmissão da agenda estrangeira, e em parcelas do Congresso que tentam importar leis, vocabulários e doutrinas jurídicas desenhadas em Washington. A guerra híbrida é um sistema total, porque captura tanto os fluxos materiais quanto os imaginários. É uma guerra de ocupação mental e institucional.
O desafio, portanto, não é apenas reconhecer o cerco: é compreendê-lo em sua totalidade. O que está em jogo não é uma divergência ideológica, mas o controle sobre os meios de produção da própria realidade. É o poder de definir o que é ameaça, quem é terrorista, o que é liberdade e o que é soberania. E esse poder, quando monopolizado, é o núcleo da dominação imperial.
Este artigo revela o mapa completo dessa ofensiva — suas bases legais, seus operadores regionais, seus canais econômicos e seus objetivos geoestratégicos. A partir das evidências mais recentes, das transformações jurídicas e militares em curso e das conexões que a grande mídia ignora, o que se desenha é o cerco sistemático à América do Sul, com o Brasil no centro gravitacional da disputa. É uma guerra travada sob o disfarce da ordem, e é exatamente por isso que ela é tão perigosa. Porque quando a guerra se disfarça de paz, o inimigo não chega armado: ele chega convidado.
O eixo de sobrevivência do império

Nenhum império aceita o próprio declínio. Quando o centro do sistema começa a perder força, ele não recua — ele se reorganiza. Foi assim com Roma, foi assim com o Império Britânico, e é assim agora com os Estados Unidos. O século XXI revelou o que a retórica liberal tentava esconder: o esgotamento de uma hegemonia que depende da manutenção de uma ordem mundial subordinada ao dólar, à sua jurisdição e às suas bases. A crise não é apenas econômica, é existencial. E quando a hegemonia entra em crise, a guerra deixa de ser opção e passa a ser método de sobrevivência.
Desde a pandemia e, mais intensamente, após a guerra da Ucrânia, Washington compreendeu que já não detém o monopólio do fluxo global de mercadorias, tecnologia e informação. A China rompeu o cerco econômico; a Rússia sobreviveu às sanções; e o BRICS deixou de ser um acrônimo para se tornar um projeto político de reorganização do mundo multipolar. Esse novo arranjo — com suas contradições, mas com um horizonte de autonomia — representa, para o império, a maior ameaça desde o fim da Guerra Fria. É nesse contexto que a América Latina volta a ser tratada não como parceira, mas como reserva estratégica: um espaço a ser reocupado para compensar o avanço do Oriente.
O cálculo de Washington é frio e estrutural. Se não pode conter a Eurásia, precisa garantir o hemisfério ocidental. Se não pode controlar as rotas do Mar da China, deve controlar as do Atlântico Sul. E se não pode mais ditar o fluxo da informação, tentará dominar as infraestruturas que o sustentam: cabos submarinos, satélites, nuvens de dados, portos e sistemas financeiros. A nova Doutrina Monroe não se proclama — ela se codifica em leis, sanções, tarifas e narrativas. Ela não diz “a América é dos americanos”, mas age como se todo o continente devesse continuar orbitando o eixo de Washington.
Por isso, a retomada da ofensiva no continente não é apenas militar: é jurídico-econômica e cognitiva. A guerra híbrida substitui as invasões por decretos presidenciais e as ocupações por tratados de interoperabilidade. O objetivo não é conquistar territórios, mas garantir que nenhum país latino-americano possa formular uma política de desenvolvimento soberana fora da órbita estadunidense. O FMI, os acordos de “cooperação em segurança”, a guerra ao narcotráfico e a diplomacia das sanções são expressões distintas de uma mesma racionalidade imperial: a de impedir que o Sul Global construa seus próprios caminhos.
O império envelheceu, mas aprendeu a mascarar a decadência com a retórica da liberdade. O discurso moral é o verniz do controle. Quando fala em “democracia”, o que protege é o fluxo irrestrito de capitais; quando fala em “direitos humanos”, defende o monopólio do poder financeiro; quando fala em “segurança”, justifica o avanço de suas bases. E cada país que tenta romper esse padrão — seja pela via diplomática, tecnológica ou social — é rapidamente submetido à tríade da coerção: desestabilização midiática, punição econômica e isolamento político.
O Brasil, nesse tabuleiro, é mais do que um alvo: é o prêmio estratégico. Controlar o Brasil significa controlar a Amazônia, as águas profundas do pré-sal, as rotas bioceânicas e, sobretudo, a voz política do Sul Global. Por isso, a pressão é constante e multifacetada: tarifas, sanções, lawfare e operações psicológicas. A sobrevivência do império passa por bloquear o avanço brasileiro como potência soberana. E é exatamente esse bloqueio que começa a se materializar nas manobras legislativas da Argentina, nas parcerias militares do Paraguai, nas “operações conjuntas” na fronteira amazônica e nas campanhas de desinformação que tentam retratar o Brasil como refúgio de “narcoterroristas”.
O império sobrevive não pela força bruta, mas pela capacidade de projetar medo e dependência. Ele cria o caos e vende a estabilidade. Oferece proteção contra ameaças que ele mesmo fabrica. E assim vai reconstruindo, peça por peça, a velha arquitetura de dominação continental sob a linguagem moderna da governança e da segurança coletiva. O nome disso é reocupação estratégica. O nome disso é sobrevivência imperial.
O laboratório jurídico da guerra híbrida

O império moderno não se impõe mais por meio de tanques, mas por decretos. As novas armas não explodem: legislam. A guerra híbrida norte-americana transformou o direito em míssil de longo alcance. É por meio de ordens executivas, listas de sanções e leis de segurança transnacional que Washington reconstrói, peça por peça, o arcabouço que lhe permite intervir sem invadir. O poder de fogo se deslocou dos campos de batalha para o campo normativo — e é nessa dimensão que o cerco à América Latina se torna mais sofisticado, mais invisível e mais eficaz.
Desde o 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos vêm fundindo o direito penal com o direito de guerra, criando uma zona cinzenta em que qualquer inimigo político pode ser rotulado como ameaça à segurança nacional. A chamada “guerra ao terror” abriu o precedente para tudo: vigilância em massa, prisões sem jurisdição e intervenções humanitárias disfarçadas. Mas, a partir de 2018, e sobretudo após 2023, essa arquitetura passou por uma mutação silenciosa: o terror deu lugar ao “narcoterrorismo”. Agora, o discurso de combate ao tráfico substitui o anticomunismo da Guerra Fria e o antiterrorismo da era Bush. É o novo pretexto moral, adaptado ao continente latino-americano.
A Executive Order 14157, assinada em janeiro de 2025, é a peça-chave dessa engenharia jurídica. Ela autoriza o governo norte-americano a designar organizações criminosas estrangeiras como “entidades terroristas” (FTO/SDGT), permitindo o congelamento de ativos, a aplicação de sanções financeiras e a extraterritorialidade penal. O que antes exigia provas, agora basta convicção política. A consequência é brutal: qualquer país que mantenha relações econômicas, comerciais ou políticas com esses grupos pode ser enquadrado como conivente — e, por extensão, alvo legítimo de punições. Assim, o império amplia sua jurisdição sem precisar de autorização do Conselho de Segurança ou de tratados multilaterais. Ele legisla unilateralmente sobre o mundo.
Essa mesma lógica foi expandida pela OFAC (Office of Foreign Assets Control) e pelo Tesouro dos Estados Unidos, que operam hoje como agências de guerra financeira. As sanções deixaram de ser instrumentos diplomáticos e se tornaram armas estratégicas, capazes de paralisar economias inteiras sem disparar um tiro. A coerção financeira, nesse modelo, é o equivalente contemporâneo do bloqueio naval: corta o oxigênio, mas não deixa marcas visíveis. O IEEPA (International Emergency Economic Powers Act) e o Kingpin Act são as colunas dessa nova doutrina, sustentando o que poderíamos chamar de imperialismo regulatório, no qual a soberania dos países é corroída pela imposição extraterritorial de normas travestidas de combate ao crime.
Na América Latina, a penetração desse arcabouço jurídico ocorre de forma gradual e quase imperceptível. A cada novo acordo de “cooperação antinarcótica”, uma cláusula de compartilhamento de dados, uma operação conjunta de inteligência ou uma missão de treinamento militar, parte da jurisdição nacional é transferida para órgãos vinculados ao Departamento de Estado ou à DEA. O que se chama de “parceria técnica” é, na prática, a erosão do princípio de soberania jurídica. O Paraguai, com suas unidades sensíveis operadas pela DEA, é o exemplo mais nítido; a Argentina, com suas novas leis de segurança interna, é o próximo passo. No campo normativo, o império avança como quem não avança — e, quando o avanço se consuma, já é tarde demais para recuar.
O “narcoterrorismo” cumpre, nesse contexto, a função de chave mestra. Ele permite unificar discursos, operações e legislações distintas sob um mesmo enquadramento simbólico. Com essa palavra mágica, Washington reconcilia seu discurso moral com sua necessidade estratégica. Ao transformar o crime em terrorismo, apaga a fronteira entre polícia e exército, entre justiça e guerra. A retórica se converte em poder normativo; a exceção, em regra. E o resultado é devastador: o império não precisa mais justificar suas ações — apenas nomear o inimigo.
A América Latina é o território ideal para essa doutrina porque combina riquezas estratégicas — petróleo, lítio, água, biodiversidade — com uma história de dependência institucional e elites dispostas a reproduzir a lógica do colonizador. É o campo de testes perfeito para a fusão entre guerra psicológica, lawfare e coerção econômica. Por isso, as leis nacionais vão sendo moldadas para espelhar a arquitetura jurídica dos Estados Unidos, enquanto a opinião pública é condicionada a aceitar a presença estrangeira como necessária para o “combate ao crime”. O resultado é a militarização da vida civil sob a aparência de normalidade.
A guerra híbrida jurídica é, portanto, o mais sofisticado instrumento de dominação do século XXI. Ela transforma o direito em arma, a lei em fronteira e o conceito de segurança em instrumento de submissão. A cada decreto, o império constrói um mundo onde ele é simultaneamente juiz, promotor e executor. E quem se opõe a esse modelo — quem ousa defender sua soberania informacional, energética ou territorial — é automaticamente convertido em suspeito. A América Latina está vivendo a judicialização da dependência: um sistema onde a lei não emancipa, mas coloniza.
Teatros regionais do cerco

A guerra híbrida não se move em linha reta. Ela se propaga em círculos concêntricos, como ondas silenciosas que cercam o alvo principal sem nunca declará-lo. No tabuleiro da América do Sul, cada país cumpre uma função distinta dentro da estratégia de contenção. O conjunto forma uma pinça geopolítica: de um lado, o arco norte, que vai do Caribe até a Amazônia; do outro, o flanco sul, que se estende da Argentina ao Paraguai e alcança o Atlântico. No centro, o Brasil — a peça que precisa ser neutralizada para que o império recupere o controle sobre o continente.
Venezuela — o ensaio geral do bloqueio
A Venezuela é o laboratório de tudo o que está sendo testado no continente. Sob a retórica humanitária, o país foi submetido à mais longa e sofisticada operação de desestabilização da história recente. Sanções, isolamento diplomático, sabotagem energética e guerra psicológica compuseram um experimento de dominação sem invasão direta. O bloqueio econômico imposto por Washington asfixiou a economia venezuelana por dentro, enquanto uma guerra de informação global retratava o governo de Caracas como uma ameaça continental. O resultado foi duplo: destruir o exemplo de um Estado que ousou nacionalizar seu petróleo e, ao mesmo tempo, criar o pretexto moral para cercar o norte amazônico sob o discurso da “restauração democrática”.
O caso do Essequibo transformou-se, em 2025, na mais clara expressão do novo imperialismo energético. A Guiana, agora convertida em produtora de quase um milhão de barris diários, tornou-se o cavalo de Troia da ExxonMobil e da Chevron no Caribe. Em nome da “proteção de ativos estratégicos”, os Estados Unidos reinstalaram sua presença militar na região, deslocando navios, caças e drones sob o pretexto de garantir a “segurança marítima”. Na prática, o que se desenha é um corredor de controle aeronaval que avança em direção à foz do Amazonas, tangenciando o território brasileiro. O que se faz hoje contra a Venezuela é o protótipo do que se pretende aplicar amanhã contra o Brasil: o cerco jurídico, informacional e energético travestido de missão humanitária.
Colômbia — o manual de instruções
A Colômbia sempre foi o país-modelo da estratégia norte-americana na América do Sul. Desde o Plano Colômbia, nos anos 2000, o país foi moldado como base de exportação de doutrina: contrainsurgência, inteligência integrada e dependência tecnológica. O governo de Gustavo Petro tentou inverter esse paradigma, aproximando-se do BRICS e assumindo uma agenda de paz interna. A resposta veio rápida. Em 2025, Washington “descertificou” a Colômbia na política de combate às drogas — um ato simbólico de retaliação diplomática que suspendeu cooperações e cortou financiamentos, sob o pretexto de “ineficiência no combate ao narcotráfico”. Era o recado: qualquer tentativa de autonomia política terá custo. A Colômbia, antes exemplo de alinhamento, passou a ser o espelho invertido do que acontece quando se rompe o pacto de subordinação.
O país vive agora uma guerra interna de narrativas. A direita e os grandes conglomerados midiáticos, apoiados por fundações norte-americanas, tentam reconstruir o imaginário da “ameaça socialista” e associar o governo Petro ao caos e à insegurança. É o mesmo script aplicado no Brasil entre 2013 e 2016: uma guerra cultural combinada a lawfare, com financiamento estrangeiro e manipulação de percepções. A Colômbia, portanto, é o manual de instruções da guerra híbrida — a prova de que a dependência militar é sempre seguida da dependência simbólica.
Peru — o flanco pacífico
O Peru é o elo logístico da disputa global. A crise política permanente — que já derrubou presidentes, dissolveu congressos e normalizou o estado de exceção — criou o terreno ideal para a infiltração de interesses externos. O Porto de Chancay, construído pela China, é o ponto de inflexão. Ele encurta o caminho entre o Pacífico Sul e o mercado asiático, reduzindo custos e tempos logísticos, e tornando-se o principal nó da Nova Rota da Seda na América Latina. Para Washington, isso representa uma ameaça direta ao controle das cadeias marítimas e de suprimento. Por isso, o discurso da “segurança portuária” e do “combate ao contrabando” começou a se espalhar como justificativa para cooperações militares e presenciais de “monitoramento”.
Em 2025, o novo governo peruano — fruto de mais uma transição turbulenta — retomou acordos de segurança com os Estados Unidos, sob o argumento de conter “gangues transnacionais” e “atividades ilícitas em rotas bioceânicas”. É o mesmo método jurídico da guerra híbrida: transformar infraestrutura em vulnerabilidade, para justificar a presença militar estrangeira. O Pacífico tornou-se o laboratório econômico do cerco, complementando o arco militar que se fecha no norte e no sul. O Brasil, ao planejar sua integração à ferrovia bioceânica Brasil–Peru, está, sem perceber, entrando em um campo onde a disputa logística e a disputa estratégica se fundem.
Bolívia — o lítio e o fantasma da autonomia
A Bolívia é o campo mineral do cerco. Desde que o país se transformou no coração do Triângulo do Lítio, passou a ser tratado como território sensível das transições energéticas globais. Em 2019, o golpe que derrubou Evo Morales teve a digital de corporações interessadas em desmontar a nacionalização dos recursos naturais. Em 2025, com a disputa interna entre Arce e Morales, o império voltou a pressionar. O discurso é sempre o mesmo: “estabilidade institucional”, “segurança de investimentos”, “combate à corrupção”. Por trás da retórica, o objetivo é reabrir contratos e recolocar o lítio sob controle ocidental. O que se faz na Bolívia é parte da mesma engrenagem que atua no Brasil: impedir que o Sul produza, com seus próprios recursos, tecnologia soberana. O minério é o novo petróleo, e a narrativa da governança é a nova ocupação.
Argentina — o flanco sul da OTAN
Na Argentina, a submissão deixou de ser disfarçada. O governo Milei transformou o país em plataforma operacional da política de segurança estadunidense no Cone Sul. Em 2025, Buenos Aires sediou a conferência SOUTHDEC, com a presença do Comando Sul, abrindo oficialmente as portas para a interoperabilidade militar e a adoção de padrões OTAN. Paralelamente, o governo enviou ao Congresso a nova Lei Antimáfia e a reforma da Lei de Segurança Interior, que autoriza o uso das Forças Armadas em missões internas. Sob o pretexto de combater o crime organizado, institucionaliza-se o paradigma da segurança total — aquele em que o inimigo é interno, difuso e sempre conveniente.
O mesmo Estado que corta direitos sociais amplia seu aparato repressivo, e a militarização se torna política de Estado. A Hidrovía Paraná–Paraguai, por sua vez, transformou-se em instrumento de chantagem logística. Com o controle das tarifas e a instabilidade regulatória, Buenos Aires mantém o poder de afetar exportações do Paraguai e do Brasil, pressionando economicamente seus vizinhos. O império não precisa mais impor bloqueios: terceiriza-os.
Paraguai — a base invisível
Se a Argentina é o flanco legal do cerco, o Paraguai é o flanco silencioso. O país consolidou-se como principal base de interoperabilidade norte-americana no coração do continente. A DEA e o DHS mantêm unidades sensíveis em Assunção, e as Forças Armadas paraguaias participam de programas de treinamento e inteligência com o Comando Sul. Em 2025, o governo ampliou o acordo de cooperação militar, incorporando radares de longo alcance, aviões A-29 Super Tucano e helicópteros taiwaneses. Tudo em nome do “combate ao narcotráfico”. Na prática, o território paraguaio serve de ponto de apoio logístico e informacional para monitorar a Amazônia e o Centro-Oeste brasileiros.
O Paraguai é a peça que completa o anel do cerco: discreto, pequeno e fundamental. Nele, a presença militar não é percebida como ocupação, mas como ajuda. É a forma mais perigosa de dependência — aquela que se confunde com gratidão.
O Brasil sob o prisma do “narcoterrorismo”

No centro de todo o tabuleiro, o Brasil tornou-se o alvo mais cobiçado da nova doutrina de coerção continental. Desde 2024, uma série de operações políticas, jurídicas e midiáticas vem tentando enquadrar o país dentro da narrativa do “narcoterrorismo”. O rótulo, importado de Washington e reproduzido por setores da extrema-direita no Congresso e na mídia corporativa, funciona como senha para abrir a porta da intervenção legal e simbólica. A lógica é simples: se o Brasil for percebido como um Estado permissivo ao crime organizado transnacional, toda forma de pressão externa — econômica, diplomática ou militar — pode ser justificada em nome da “segurança hemisférica”.
O problema é que essa narrativa parte de uma mentira jurídica. A Lei nº 13.260/2016, conhecida como Lei Antiterrorismo, nunca reconheceu o narcotráfico como terrorismo. O conceito de narcoterrorismo não existe no ordenamento brasileiro, tampouco na maioria das convenções internacionais ratificadas pelo país. Ainda assim, o termo passou a circular em comissões do Congresso, em discursos de parlamentares alinhados a Washington e em relatórios de entidades de “cooperação internacional” financiadas por think tanks norte-americanos. A palavra virou arma de guerra cognitiva: um instrumento para distorcer a percepção pública e preparar terreno para enquadramentos jurídicos externos.
A ofensiva ganhou força depois do massacre ocorrido no Rio de Janeiro em outubro de 2025, quando setores da imprensa e políticos oportunistas começaram a pedir a inclusão de facções criminosas na lista de “organizações terroristas”. O timing não foi casual. No mesmo período, os Estados Unidos ampliaram a Executive Order 14157, que permite designar cartéis estrangeiros como “entidades terroristas” e aplicar sanções automáticas a governos considerados complacentes. A coincidência retórica entre Brasília e Washington não é coincidência política — é coordenação estratégica. O objetivo é preparar o terreno para que, em caso de escalada institucional, o Brasil possa ser classificado como “Estado conivente com o narcoterrorismo”, abrindo espaço para sanções, isolamento financeiro e pressão militar.
O que está em curso é a tentativa de transformar o território brasileiro em zona de contenção da multipolaridade. Sob o disfarce da segurança, o império busca reverter a autonomia conquistada na última década: a reativação do papel da Petrobras, a aproximação com o BRICS, o investimento em defesa nacional e o fortalecimento da diplomacia Sul-Sul. Tudo isso é visto, por Washington, como sinal de desobediência. E, como em todo sistema imperial, a desobediência é punida.
A guerra híbrida contra o Brasil opera em três dimensões simultâneas. A primeira é econômica, com a aplicação de tarifas punitivas e restrições comerciais seletivas, destinadas a enfraquecer a indústria nacional e pressionar o governo a rever alianças estratégicas. A segunda é informacional, com o uso das redes sociais e da mídia corporativa para fabricar crises, fomentar o medo e associar políticas sociais a desordem e criminalidade. A terceira é jurídico-política, na qual setores do Judiciário e do Legislativo, capturados por agendas externas, trabalham para moldar a legislação brasileira à imagem do direito norte-americano de exceção.
Em meio a essa ofensiva, a Amazônia assume papel central. Não apenas pelas suas riquezas minerais e pela água doce, mas porque representa o elo físico entre o Brasil e o sistema ecológico global. O discurso ambientalista — tão legítimo em essência — foi sequestrado e instrumentalizado como ferramenta de pressão geopolítica. Sob o argumento de proteger a floresta, constrói-se uma retórica de tutela internacional que reduz a soberania brasileira a uma concessão temporária. O mesmo ocorre com o petróleo da Margem Equatorial, onde o avanço de multinacionais norte-americanas, recém-libertadas de restrições ambientais, coincide com a pressão diplomática para limitar a atuação da Petrobras. É uma guerra pelo subsolo e pela narrativa, travada ao mesmo tempo.
Internamente, a extrema-direita funciona como tropa auxiliar dessa estratégia. Seus parlamentares reproduzem, quase palavra por palavra, o discurso de congressistas republicanos norte-americanos, clamando por uma “nova guerra contra o narcoterrorismo”. A repetição sistemática dessa linguagem cria o ambiente emocional necessário para a aceitação da ingerência. Assim, o Brasil é atacado de fora e de dentro: de fora, por um império que tenta reordenar o continente; de dentro, por uma elite que atua como correia de transmissão de seus interesses.
Mas o país não é um observador passivo desse processo. Desde o retorno de uma política externa altiva e ativa, o Brasil recuperou prestígio diplomático e voltou a exercer liderança regional. A reação do governo às tarifas impostas por Washington e o discurso do presidente Lula na ONU, em setembro de 2025, marcaram uma ruptura simbólica: o Brasil deixou claro que não aceita mais ser tutelado. Contudo, essa postura soberana tem um preço. A cada passo em direção à autonomia, cresce o cerco.
O Brasil, portanto, é hoje o espelho onde o império projeta o medo do futuro. Um país continental, com recursos estratégicos, com voz política global e capacidade de articulação tecnológica, que não se submete à lógica da dependência. É por isso que o cerco é tão intenso — e tão disfarçado. Porque o verdadeiro objetivo não é combater o crime, mas impedir que o Brasil consolide sua soberania informacional, energética e cognitiva. O “narcoterrorismo” é apenas o disfarce jurídico de uma guerra muito mais profunda: a guerra pela consciência nacional.
Os vetores invisíveis do cerco

A guerra híbrida, ao alcançar sua maturidade, dissolve as fronteiras entre poder econômico, comunicação e tecnologia. O império percebeu que a dominação contemporânea não depende apenas de bases militares ou de tratados, mas do controle sobre os fluxos — de capitais, de dados, de emoções e de sentidos. Por isso, os vetores invisíveis do cerco são os mais perigosos: eles operam dentro das próprias estruturas que sustentam a vida social, sem ruído, sem violência aparente, mas com um efeito de corrosão permanente sobre a soberania dos povos.
O primeiro vetor é econômico. As sanções, tarifas e barreiras comerciais tornaram-se instrumentos cirúrgicos de coerção. Quando os Estados Unidos impuseram tarifas punitivas ao Brasil em 2025, a mensagem foi clara: a economia seria usada como linha de pressão política. O objetivo não é arrecadar, é disciplinar. Por meio do FMI, dos acordos de crédito, das agências de risco e do sistema financeiro dolarizado, Washington mantém o poder de estrangular qualquer tentativa de política desenvolvimentista. A moeda, o crédito e a dívida são as armas silenciosas de uma guerra travada dentro das planilhas e dos algoritmos dos bancos. É o velho imperialismo financeiro travestido de “ajuste macroeconômico”.
O segundo vetor é informacional. No século XXI, a guerra de narrativas substituiu a guerra de trincheiras. As plataformas digitais são os novos campos de batalha, e os algoritmos, as novas armas. A desinformação não é mais espontânea, é sistêmica. Ela nasce de laboratórios de inteligência artificial, é amplificada por fazendas de bots e moldada por sistemas de recomendação que respondem a interesses geopolíticos. O que parece caos é engenharia. A extrema-direita latino-americana é o produto mais visível dessa engenharia de percepção, que mistura religião, ressentimento e manipulação emocional para destruir a confiança coletiva. O discurso do ódio não é apenas ideologia: é uma tecnologia social de controle. O que se chama de “liberdade de expressão” nas plataformas é, na verdade, a liberdade do capital para colonizar a consciência.
O terceiro vetor é tecnológico. A soberania digital transformou-se na nova fronteira da dependência. Cabos submarinos, satélites, data centers e nuvens de governo são hoje equivalentes às antigas ferrovias e refinarias do século XX: infraestrutura estratégica. Quem controla os dados controla o futuro. Os Estados Unidos sabem disso e, por isso, tentam impor seus padrões tecnológicos como norma universal. A captura das infraestruturas digitais dos países latino-americanos é o movimento mais sofisticado de colonização do nosso tempo. Programas como o REDATA e acordos de “parceria tecnológica” com big techs mascaram a transferência de dados nacionais sensíveis para ecossistemas privados controlados pelo Norte Global. É a ocupação digital do território informacional.
Esses três vetores — econômico, informacional e tecnológico — convergem para o mesmo objetivo: impedir a autonomia cognitiva dos povos. Ao controlar os meios de circulação da riqueza, da informação e do saber, o império impede que as nações periféricas produzam a sua própria consciência histórica. A dependência tecnológica alimenta a dependência econômica, que por sua vez legitima a dependência ideológica. É um ciclo fechado, autossustentável, no qual a dominação não precisa mais de força: basta que o oprimido acredite que sua submissão é inevitável.
No caso brasileiro, o cerco é particularmente sofisticado. Enquanto o país avança na política de soberania informacional — com iniciativas de nuvem pública e defesa de dados —, as pressões externas se intensificam para forçar acordos de interoperabilidade com plataformas estrangeiras e abrir o sistema de informações nacionais à supervisão privada. A disputa por inteligência artificial é o novo campo de batalha. O império não teme a tecnologia brasileira em si, mas o que ela representa: a possibilidade de um país do Sul construir autonomia cognitiva fora da tutela do Vale do Silício.
Assim, o verdadeiro confronto não se dá apenas entre Estados, mas entre modos de organizar a realidade. De um lado, o modelo da integração soberana, que aposta na cooperação científica e na partilha do conhecimento como instrumentos de libertação. Do outro, o modelo do império digital, que transforma cada dado em mercadoria e cada indivíduo em ativo financeiro. O Brasil está entre esses dois mundos — e a escolha que fizer determinará não apenas seu destino político, mas o futuro da própria ideia de independência na era das máquinas.
Cenários possíveis e ações estratégicas

O futuro imediato da América do Sul se decide nas margens da linguagem: o nome que se dá às coisas cria as condições de possibilidade para agir sobre elas. Se “narcoterrorismo” se impõe como gramática regional, o continente se verá empurrado para um estado de exceção permanente; se “soberania” volta a orientar o léxico comum, recuperamos o terreno da política. A projeção de cenários, portanto, não é exercício de futurologia, mas leitura das tendências estruturais já em curso — e das brechas pelas quais é possível intervir. No primeiro horizonte, a harmonização securitária no Cone Sul avança por dentro da legislação argentina e paraguaia, irradiando pressões por protocolos de “operações combinadas” na faixa de fronteira com o Brasil. A retórica de crime transnacional abre caminho para memorandos que naturalizam intercâmbio de dados sensíveis, missões de treinamento e presença intermitente de agentes estrangeiros sob o guarda-chuva da cooperação. A consequência provável é um dilema fabricado: negar-se a integrar essas operações custa imagem e acusações de conivência; aceitar, custa jurisdição e precedentes. A resposta brasileira, para não se reduzir a um sim ou não, precisa deslocar o eixo da discussão, propondo uma arquitetura sul-americana própria de segurança cooperativa, com parâmetros de direitos, governança de dados e cláusulas de não extraterritorialidade, de modo a transformar a demanda por coordenação em oportunidade de liderança regional.
No segundo horizonte, a “proteção de infraestrutura” no arco Guyana–Caribe consolida uma presença aeronaval constante que, mesmo sem violar limites formais, impõe regras de convivência assimétricas às ZEEs vizinhas. A expansão de FPSOs e rotas de exportação oferece o pretexto perfeito para coalizões ad hoc que operam por convites bilaterais e justificativas técnicas. Aqui, o risco não é um incidente espetacular, mas a sedimentação de uma nova normalidade operacional na qual o Brasil é espectador tolerado. O contragolpe passa por uma diplomacia de amortecimento combinada a capacidades técnicas próprias: mediação ativa do contencioso Essequibo em foros multilaterais, protocolos de deconfliction escritos com densidade jurídica, ampliação de ISR nacional e acordos de partilha de consciência situacional sob guarda brasileira. Não se trata de confrontar o guarda-chuva alheio com bravatas, mas de erguer um teto próprio e habitável.
No terceiro horizonte, o torniquete logístico se fecha via Hidrovía e nós portuários, com oscilações regulatórias e tarifárias que servem de alavanca política. O que parece uma querela de pedágios é, na prática, instrumento para modular custos de exportação, reposicionar corredores e premiar comportamentos alinhados. O movimento defensivo clássico — contestação jurídico-diplomática caso a caso — é insuficiente, porque responde a sintomas. O salto qualitativo exige diversificação real de escoamento: fortalecer corredores interiores brasileiros, acelerar integrações ferroviárias de longo curso, dar previsibilidade regulatória aos portos amazônicos e, sobretudo, usar a própria escala do mercado brasileiro para constituir um bloco de interesse com Paraguai e Bolívia que neutralize incentivos a medidas unilaterais. Quando a logística vira arma, a infraestrutura vira escudo.
No quarto horizonte, a linha de montagem sancionatória acelera. Designações de grupos como entidades terroristas e novas listas financeiras expandem o de-risking bancário e criam zonas cinzentas de compliance onde qualquer transação pode ser travada por medo, e não por lei. O efeito não é apenas macroeconômico; é civilizatório, porque privatiza a censura financeira por meio de intermediários. O antídoto pede diversificação de meios de pagamento, acordos de compensação em moedas locais no âmbito do BRICS ampliado, reforço das salvaguardas do Banco do Sul e de fundos regionais, além de uma política de seguros soberanos para operações estratégicas. Sem redundância financeira, não há independência política.
No quinto horizonte, a disputa informacional entra em modo total. Plataformas, classificadores de risco reputacional e provedores de nuvem formam uma ecologia de poder que decide o que é visível, o que é viável e o que é verdadeiro. O Brasil só romperá essa captura se tratar dados, algoritmos e infraestrutura como bens estratégicos. Uma Nuvem Pública federada e auditável, com localização de dados críticos, padrões abertos e certificação de segurança, precisa se combinar a regras claras sobre meta-dados operacionais de energia, defesa e logística. A IA não pode ser terceirizada como utilitário neutro: modelos, pesos e pipelines relevantes ao interesse nacional devem nascer em universidades públicas e empresas estatais ou estratégicas, sob governança de interesse público. Tecnologia sem soberania é terceirização de destino.
No plano tático, nenhuma dessas frentes funciona isoladamente. A defesa da Amazônia Azul requer integração com uma política industrial de sensores, satélites e aeronaves de patrulha; a diplomacia de amortecimento perde eficácia sem lastro de capacidade; a logística soberana depende de investimento público anticíclico e de coordenação federativa; a guerra de narrativas precisa de um ecossistema público de comunicação que não confunda pluralidade com terceirização do debate às big techs. O fio que costura essas frentes é a soberania informacional: quem detém e governa os dados — territoriais, industriais, energéticos, cognitivos — define o campo de batalha e o ritmo do conflito.
Por isso, a ação estratégica mais importante é de método: substituir a reação episódica por planejamento integrado de longo prazo. Um Conselho de Soberania Informacional e Energética, com assento de chancelaria, defesa, minas e energia, ciência e tecnologia, comunicação e Casa Civil, deve operar com capacidade de análise de risco contínua, cenarização trimestral e planos executivos vinculantes. Em paralelo, o país precisa de um estatuto de interoperabilidade soberana que condicione qualquer cooperação internacional — militar, policial, tecnológica — a cláusulas de não extraterritorialidade, governança de dados sob autoridade nacional, transparência algorítmica mínima e reversibilidade contratual. Sem essas âncoras, todo acordo vira brecha.
Nada disso exclui a dimensão simbólica. A disputa central é pela crença coletiva de que o Brasil pode decidir seu futuro. A estratégia vence quando, apesar das pressões, o país injeta previsibilidade regulatória para quem produz aqui, ativa cadeias industriais em torno de energia e defesa, reencanta a diplomacia sul-americana como projeto de proteção mútua e substitui o medo por propósito. O império prospera quando as periferias se sentem pequenas; a soberania começa quando elas param de pedir licença para existir.
A batalha pelo sentido da história

Toda guerra termina, mas nem todas são vencidas. A guerra que se trava hoje na América do Sul não será decidida por tanques nem tratados, mas por algo muito mais profundo: o controle do significado das coisas. É uma guerra sem quartel pela interpretação da realidade — e quem dominar essa disputa decidirá o curso da história. O império sabe disso. Por isso investe tanto em narrativas, símbolos e palavras. O domínio começa quando o oprimido repete, sem perceber, a gramática do dominador.
O cerco ao Brasil é, antes de tudo, uma tentativa de silenciar sua voz histórica. Porque o Brasil não é apenas um país: é um projeto de civilização. Um território que carrega em si a possibilidade de um outro mundo — plural, mestiço, criativo e rebelde —, um modelo de sociedade que o império não consegue compreender nem controlar. É por isso que o Brasil precisa ser contido, desmoralizado, infiltrado, tutelado. Porque um Brasil soberano, integrado à América Latina e articulado com o Sul Global, não é apenas um problema geopolítico: é uma ameaça filosófica à ordem que transformou o planeta em mercado.
Mas há algo que o império não compreende. O poder material pode dominar o espaço, mas não o tempo. As forças que hoje parecem imbatíveis carregam em si as sementes da própria ruína. Cada sanção, cada tarifa, cada ingerência reforça, paradoxalmente, a consciência de que a dependência é uma prisão. E quando os povos percebem que a obediência é voluntária, o império começa a morrer.
O Brasil não está condenado à servidão. Ao contrário: está diante de uma encruzilhada histórica. De um lado, o caminho da submissão tecnológica, jurídica e informacional — a conversão definitiva em colônia digital. Do outro, o caminho da reconstrução soberana — que exige coragem política, imaginação institucional e maturidade estratégica. Essa escolha não será feita por decretos, mas pela formação de uma consciência coletiva capaz de entender que a soberania não é um ato administrativo, é um processo civilizatório.
A América Latina precisa se enxergar como um corpo só. Nenhum país resistirá sozinho à ofensiva híbrida do Norte Global. O destino do continente depende da capacidade de transformar a integração em instrumento de defesa e emancipação. A UNASUL, o MERCOSUL, o BRICS ampliado — todos são mais do que fóruns diplomáticos: são trincheiras do pensamento e da sobrevivência. O desafio é resgatar o espírito original da cooperação, não como aliança tática, mas como projeto histórico de libertação.
O império pode cercar territórios, mas não pode ocupar consciências. Pode impor tarifas, mas não pode controlar ideias. Pode espalhar medo, mas não pode matar o desejo de autonomia. A história está repleta de impérios que acreditaram ter vencido o mundo no exato momento em que começaram a perder o sentido. E é esse sentido que está em disputa agora — o sentido de existir como nação livre, como continente autônomo, como humanidade soberana.
O Brasil não é o fim desse processo: é o seu começo. A partir daqui, a luta deixa de ser apenas por fronteiras físicas e passa a ser pela fronteira do possível. Porque quem define o possível define o futuro.
E é por isso que este artigo existe: para revelar o invisível, conectar o que foi fragmentado e oferecer ao leitor o mapa daquilo que o império tenta esconder — a certeza de que a guerra em curso não é apenas contra governos, mas contra a ideia de que os povos do Sul possam pensar por si mesmos.
O império cerca territórios; os povos libertam consciências. E é nesse gesto de libertação — lento, consciente e coletivo — que o Brasil reencontra sua vocação histórica: ser a força que, ao resistir, muda o destino do mundo.





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