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O ciclo econômico básico nas mãos dos rentistas

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    Redação
  • 18 de ago.
  • 6 min de leitura

Como as finanças sequestraram a economia e por que a ciência econômica deixou de servir ao bem comum

Por Ladislau Dowbor - A economia deveria ser uma ciência exata. No entanto, convivemos com previsões contraditórias sobre preços, emprego e déficit, enquanto se analisa o chamado “sentimento de mercado” como se fosse possível prever o futuro e como se refletisse, de fato, as necessidades da sociedade. O que temos são instituições gigantescas, com muito dinheiro, acesso a estatísticas e os melhores analistas, como S&P Global Ratings, Moody’s e Fitch, que chegaram a conceder grau de investimento à Lehman Brothers já em processo de falência. Essas agências são pagas pelas corporações que avaliam. Há ainda consultorias de prestígio como KPMG, Deloitte, PwC e Ernest & Young. O colapso financeiro global de 2007 mostrou o tamanho do problema. Ninguém enxergava a fragilidade do sistema, ou fingia não ver. Sempre haverá alguém que acerta em meio a tantas previsões, mas não se trata de ciência, e sim de oportunismo e desejo de acreditar.

Quando Donald Trump iniciou a guerra tarifária, não tinha ideia do que aconteceria com a economia estadunidense. As análises econômicas seguiam convicções políticas, não evidências. Uma pesquisa da época mostrou isso com clareza: democratas acreditavam que os preços subiriam 7,9%, convencidos de que o governo era ruim; republicanos achavam que cairiam para 0,9%, confiantes na gestão; independentes ficaram no meio. Esse é o resultado da chamada ciência econômica. Em francês, soa até mais pomposo: Sciences Économiques.

Não se trata de ignorância ou desinformação, mas de interesses. No topo do sistema, instituições financeiras forçam a extração até o limite, conscientes de que a corda pode arrebentar. Se fossem mais moderadas, não lucrariam tanto em momentos de crise. Esse é o mundo do dinheiro virtual, dos dados em computadores, do high frequency trading, em que até provocar uma crise pode ser lucrativo, desde que se controle o momento. O problema central é a obsessão pelo lucro imediato. Na crise de 2007 e 2008, 4 milhões de famílias perderam suas casas, enquanto os bancos foram salvos com dinheiro público. Eram grandes demais para falir. Hoje a especulação nunca lucrou tanto. Trump não foi a causa, mas o sintoma de um sistema que, como escreveu Wolfgang Streeck, já não precisa da democracia.

Para a maioria da população, os mecanismos financeiros são um enigma. Muitas pessoas não entendem como se endividaram tanto. Isso vale para as 4 milhões de famílias despejadas, para estudantes que passam décadas pagando dívidas e para mais de 100 milhões de estadunidenses que devem às seguradoras de saúde. Enquanto isso, as fortunas dos bilionários dispararam. São legais, portanto legítimas, ainda que sem relação com atividades produtivas. A exploração via baixos salários é visível, mas o mundo financeiro é tão complexo que escapa à compreensão de quem está fora dele. É esse universo que Brett Christophers chama de capitalismo rentista.

O ciclo econômico básico precisa ser visto como um todo, não em partes isoladas. São engrenagens interdependentes. Quando se compreende a lógica geral, tudo ganha sentido.

O ponto de partida é a família. A economia deve servir ao bem-estar, não o contrário. O Brasil produz 4 quilos de grãos por pessoa por dia e, ainda assim, milhões passam fome. Isso é inaceitável. As necessidades das famílias são o motor da demanda. O dinheiro que elas recebem compra os bens produzidos pelas empresas. Mas quando a maioria é empobrecida, a economia passa a funcionar apenas para poucos privilegiados. Consumo e demanda são a base do sistema.

Os adultos trabalham para obter renda, que os conecta ao segundo ator central: as empresas produtivas. Elas oferecem empregos, pagam salários e produzem bens e serviços. Essa relação é simples: sem renda, não há consumo. Henry Ford já sabia que era preciso pagar salários razoáveis para que as pessoas pudessem comprar os produtos que fabricavam. Individualmente, uma empresa pode lucrar cortando salários, mas no conjunto isso resulta em estagnação econômica.

Equilibrar os dois motores, famílias e empresas, é a função essencial do terceiro ator: o setor público. Nos Estados Unidos, conservadores demonizam “o Estado” como inimigo. Mas a democracia foi uma das maiores invenções da humanidade, ainda que hoje seja difícil considerar representativos governos comprados com dinheiro e manipulados por redes sociais. Daí os novos rótulos: plutocracia, tecno-feudalismo. Ainda assim, quando o Estado de bem-estar cumpre sua função, equilibra famílias e empresas produtivas.

Famílias e empresas pagam impostos, direta ou indiretamente. Esse dinheiro financia infraestrutura essencial, energia, transporte, telecomunicações, água, saneamento, que precisa de planejamento de longo prazo. Privatizações mal estruturadas mostram o contrário. No Reino Unido, a privatização da água e do esgoto resultou em rios poluídos. Infraestrutura, quando organizada pelo setor público, tende a ser mais eficiente e barata. A China tem mais de 40 mil quilômetros de trem de alta velocidade, acessível e rápido, enquanto os Estados Unidos estão apenas iniciando a construção de 700 quilômetros.

O setor público também sustenta serviços sociais como saúde, educação, segurança e assistência. Serviços universais e gratuitos são mais eficientes e menos custosos. Basta comparar: a saúde nos Estados Unidos custa mais de 11 mil dólares por pessoa ao ano, contra 5 mil no Canadá. O resultado é que o Canadá está entre os países com melhor saúde pública do mundo, enquanto os Estados Unidos figuram entre os últimos da OCDE. O mesmo se aplica à educação: sistemas gratuitos, como o da Finlândia, alcançam os melhores resultados internacionais.

Nos países que funcionam, cerca de 60% do bem-estar econômico vem da renda direta e 40% do acesso a serviços públicos gratuitos. Esse “salário indireto” garante direitos básicos, é mais barato e mais eficiente. Foi a base dos trinta anos dourados após a Segunda Guerra. A China mantém esse caminho até hoje, com sucesso.

Desde os anos 1980, com Thatcher e Reagan, a financeirização reorganizou a economia em benefício de poucos. O Brasil é exemplo do que pode dar errado. O poder de compra foi corroído pela inflação até 1994, quando o Plano Real a controlou. Mas a estabilidade de preços foi trocada por juros abusivos. Em 2025, famílias brasileiras pagam, em média, 54% de juros em empréstimos bancários. Com inflação de 6%, trata-se de usura institucionalizada. Metade da população adulta está inadimplente. O resultado é um dreno de 10% do PIB.

As empresas produtivas também sofrem. No Brasil, pagam juros de 21%, contra 3% ou 4% na Europa. Multinacionais se financiam em mercados globais, mas 5 milhões de micro, pequenas e médias empresas dependem dos bancos locais. A indústria caiu de 22% para 11% do PIB em poucas décadas. O sistema financeiro deixou de financiar a produção e passou a sugar recursos, retirando outros 4% do PIB.

As contas públicas seguem o mesmo caminho. Em 2025, a dívida pública brasileira representava 80% do PIB, mas os juros pagos eram de 15%, gerando um dreno de outros 10% do PIB. Recursos que deveriam ir para saúde, educação e infraestrutura são desviados para os 10% mais ricos, bancos e especuladores.

Esse modelo mata a economia por três razões: famílias não consomem porque pagam dívidas; empreendedores não investem porque os juros são proibitivos; e, ao invés de arriscar em atividades produtivas, aplicam em títulos públicos com 15% de retorno e zero risco. O rentismo domina. Quase um terço do orçamento público é capturado por grupos financeiros.

Somam-se a isso a evasão fiscal, de cerca de 6% do PIB, e as renúncias fiscais, de 4% do PIB. Lucros e dividendos são isentos desde 1995. A Lei Kandir, que isenta exportadores de impostos, funciona como estímulo à reprimarização da economia, favorecendo a exportação de commodities e minerais a custo zero. É um retorno à lógica colonial, mas agora com tecnologias de ponta.

O resultado é um fluxo financeiro integral que drena mais de um quarto da economia.

O caso brasileiro é extremo, mas não único. Os Estados Unidos gastam mais de um trilhão de dólares ao ano apenas com juros da dívida pública, enquanto educação, saúde e habitação afundam a população em dívidas e estagnação. A China optou por canalizar recursos para investimentos produtivos. Ellen Brown resume: “Temos duas economias, a material, onde bens e serviços são comprados e vendidos, e a monetária, que movimenta ativos financeiros como ações, títulos e moedas. É basicamente dinheiro que gera dinheiro sem produzir nada”. Thomas Piketty também demonstrou que o grande dinheiro no capitalismo contemporâneo não vem da produção, mas das finanças.

O dinheiro virtual transformou-se em uma gigantesca máquina de acumulação. Michael Hudson chamou isso de retorno dos barões ladrões e descreveu o fenômeno: “A forma pós-moderna de guerra de classes é a do capital financeiro contra o trabalho e a indústria. Patrões exploram o trabalho pagando menos do que o valor de venda dos produtos. Mas o trabalho também é explorado pela dívida, hipotecária, estudantil, de automóvel e de cartão de crédito, apenas para cobrir custos de vida”.

Uma geração de economistas vem denunciando o que Hudson chamou de economia de sucata. Brett Christophers fala em capitalismo rentista. Mariana Mazzucato aponta o capitalismo extrativo. Yanis Varoufakis descreve o tecno-feudalismo. Zygmunt Bauman fala em capitalismo parasitário. Todos esses termos buscam nomear o mesmo fenômeno: especulação que gera dinheiro sem produzir nada. Não se trata mais de acumulação de capital, essência do capitalismo industrial, mas de rentismo. Estamos destruindo nosso mundo natural e produzindo desigualdades insustentáveis. E o melhor que um líder consegue propor é o velho lema: “Drill, baby, drill”


 
 
 

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