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O movimento secreto que tenta redesenhar o Brasil: uma análise pós-prisão de Bolsonaro

  • Foto do escritor: Rey Aragon
    Rey Aragon
  • há 1 hora
  • 20 min de leitura

Como a prisão de Bolsonaro, as megaoperações da PF e a pressão dos EUA redesenham a guerra híbrida no país.


O Brasil atravessa a mais complexa reconfiguração de poder desde a redemocratização. A prisão de Bolsonaro expõe apenas a superfície de um tabuleiro onde redes clandestinas de financiamento, operações de inteligência, elites inquietas e pressões externas se movem para moldar o país ao seu interesse. Este artigo revela, em detalhes, como esse movimento oculto atua, quais são os seus próximos passos e que estratégia o governo e as instituições precisam adotar para proteger a democracia e reconquistar a soberania em meio à nova guerra híbrida que se desenha.

A virada silenciosa de novembro de 2025



O Brasil entrou em novembro de 2025 acreditando que estava assistindo ao desfecho de um ciclo. A prisão de Jair Bolsonaro, depois da tentativa grotesca de burlar a própria tornozeleira e de repetir a tática da fuga velada, parecia apenas o capítulo final de uma novela que já se arrastava há anos. O noticiário tratou o episódio como a consequência inevitável de uma vida inteira de ilegalidades. Mas a imagem do ex-presidente sentado no banco de concreto da Polícia Federal, tentando reorganizar o discurso enquanto sua base se fragmentava em pânicos e bravatas, não é o final de nada. É o prólogo de outra coisa: um rearranjo silencioso das forças que disputam o país.


Na superfície, a narrativa é simples: um líder golpista finalmente foi responsabilizado. Mas, abaixo dela, há movimentos que quase ninguém está enxergando. A prisão veio exatamente no momento em que o Estado brasileiro passou a desmantelar, de forma sistemática, as estruturas que sustentaram não só o bolsonarismo, mas décadas de poder cinzento. A ofensiva simultânea — policial, financeira, institucional e geopolítica — indica que a crise não é apenas política: é estrutural. E, como toda crise estrutural, revela mais sobre o futuro do que sobre o passado.


Bolsonaro é apenas o rosto visível de uma engrenagem muito maior. Sua prisão coincide com o avanço de operações que atingem setores intocados da elite econômica; com a desarticulação de redes clandestinas de financiamento; com a exposição de mecanismos de inteligência paralela dentro do Estado; e com a escalada de pressões externas que recolocam o Brasil no centro da disputa hemisférica. Não é coincidência — é confluência.


O país está diante de um ponto de virada discreto, quase imperceptível para quem só acompanha manchetes. O que está em disputa agora não é apenas a punição de um político, mas a tentativa de redesenhar — ou impedir que se redesenhe — o próprio mapa do poder brasileiro. Há um movimento subterrâneo atuando para preservar estruturas que sempre sobreviveram a qualquer governo, e outro tentando finalmente confrontá-las. Esse choque silencioso, invisível a olho nu, é o que realmente define o momento.


A fotografia deste fim de novembro não é a de um ex-presidente derrotado. É a de um país que, pela primeira vez em muito tempo, está olhando para dentro das suas fissuras mais profundas — e descobrindo que elas sempre foram maiores do que os personagens que ocupavam o palco. A pergunta agora não é o que a justiça fará com Bolsonaro, mas o que o Brasil fará com o que encontrou ao segui-lo até o fundo.


O desmonte da infraestrutura oculta do bolsonarismo e do centrão



Se a prisão de Bolsonaro acendeu o holofote, foram as operações da Polícia Federal que iluminaram o subterrâneo. A sequência de investigações que se tornou pública nos últimos meses — Carbono Oculto, Banco Master, combustíveis, fraudes financeiras bilionárias e redes de lavagem de dinheiro — expôs o que a política brasileira sempre preferiu não olhar de frente: a existência de uma infraestrutura econômica paralela que alimenta campanhas, sustenta grupos políticos, financia operações de influência e funciona como pulmão clandestino de poder. É ela, e não a retórica ideológica, que explica a persistência do bolsonarismo e a resiliência do centrão.


Pela primeira vez desde a redemocratização, o Estado brasileiro decidiu tocar nos nervos expostos dessa estrutura. A Carbono Oculto, ao revelar a simbiose entre o crime organizado, empresas de fachada e fundos de investimento com sede na Faria Lima, desmontou o mito confortável de que o crime e a política vivem em esferas separadas. O Banco Master, com os mais de 12 bilhões movimentados em operações fraudulentas, mostrou como uma parte relevante da elite financeira lucrou com zonas de sombra que sempre foram tratadas como inevitáveis. A PF atingiu, de forma direta, a engrenagem que financia campanhas, compra lealdades, irrig a redes digitais e sustenta a autonomia política de caciques que se apresentam como “moderadores”.


Esse é o verdadeiro terremoto — e ele é maior que qualquer prisão. Bolsonaro, para a extrema-direita, é substituível. O fluxo de dinheiro não. É por isso que os setores mais inquietos neste momento não são os seguidores radicais, mas empresários, operadores do mercado, intermediários políticos e deputados com vínculos diretos nessas redes cinzentas. Eles entenderam que o cerco não é moral, é estrutural. E que a continuidade de suas operações depende, agora, da capacidade de reconstruir rapidamente a proteção política perdida.


A razão dessa inquietação é simples: o modelo tradicional de poder no Brasil sempre se apoiou na fronteira turva entre legal e ilegal, formal e informal, público e privado. Essa fronteira garantiu autonomia para grupos que nunca dependeram totalmente do Estado, e que, por isso mesmo, sempre tiveram força para chantageá-lo. Ao atacar essa zona cinzenta, a PF não está desarticulando apenas crimes; está desfazendo a base material de um sistema político inteiro.


O bolsonarismo compreendeu isso cedo. Ele se apoiou em um ecossistema de financiamento informal que incluía desde doações milionárias sem lastro até redes de empresários protegidos por esquemas financeiros opacos. Assim, construiu a capacidade de operar campanhas permanentes, manter influência digital intensa e financiar estruturas paramilitares, digitais e territoriais. O centrão, por sua vez, sobreviveu historicamente em zonas muito semelhantes — por isso sua reação, neste momento, é menos ruidosa e mais desesperada.


A grande reviravolta de 2025 não é apenas moral nem judicial. É econômica e logística. O Estado está cortando o oxigênio. Quando a fronteira cinzenta perde ar, toda a arquitetura política montada sobre ela precisa se reinventar para sobreviver. É isso que acontece agora: um rearranjo do poder que não aparece nas manchetes, mas que determina o destino dos próximos anos. A disputa não é apenas institucional. É pelo controle das bases materiais que moldam o poder no Brasil.

A guerra subterrânea no aparato de Estado



O que acontece hoje dentro do Estado brasileiro não é mera disputa administrativa ou embate institucional. É uma batalha silenciosa por controle de território político, no sentido mais literal do termo: informações, fluxos, comando, legitimidade e capacidade de projetar força. Durante anos, a máquina pública foi capturada por grupos que operavam segundo uma lógica paralela de poder — generais convertidos em atores políticos, policiais federais organizados em facções ideológicas, servidores de inteligência trabalhando para redes informais, e uma parte do funcionalismo moldada pela crença de que o Estado existe para servir a uma causa e não à República. A crise de 2025 expôs esse sistema de dentro para fora.


O bolsonarismo não inventou a infiltração política no aparato estatal, mas levou essa lógica ao limite. Transformou a ABIN em arma de facção, instalou núcleos clandestinos de monitoramento, acionou servidores para produzir relatórios falsos, manipulou bancos de dados sensíveis, e criou estruturas de inteligência paralela que respondiam diretamente ao chefe do Executivo. Nas Forças Armadas, consolidou uma doutrina que confundia missão institucional com projeto ideológico; que via o presidente como comandante político e não constitucional; e que tratava qualquer limitação judicial como afronta militar. A fantasia de “Forças Armadas moderadoras” gerou um monstro: um corpo fardado que se entendia como guardião de um país imaginário.


A ruptura veio tarde, mas veio de forma inédita. A condenação de generais envolvidos na tentativa de golpe abriu um precedente histórico: pela primeira vez, o país viu que o manto da farda já não garantia impunidade automática. Ao mesmo tempo, investigações internas e externas começaram a desmantelar núcleos inteiros de inteligência e contrainteligência que operavam à margem da lei. A ABIN entrou em crise; setores da PF que antes orbitavam o bolsonarismo perderam proteção política; e quadros militares começaram a perceber que a continuidade da velha doutrina significaria o isolamento total das Forças Armadas frente à sociedade.


Esse movimento gerou um choque geopolítico interno que poucos estão analisando. Há hoje dois projetos disputando a alma do aparato estatal. O primeiro, comprometido com a reorganização institucional, busca reconstruir o Estado como instrumento de soberania — profissionalizando inteligência, limitando militares à função constitucional e fortalecendo mecanismos de controle civil. O segundo, ainda entranhado em segmentos das corporações, tenta preservar a doutrina do “excepcionalismo militar”: a ideia de que cabe às FFAA arbitrar crises, vigiar instituições e intervir quando julgarem necessário. Essa doutrina não desapareceu com as condenações; apenas recuou para as sombras, onde sempre foi mais perigosa.


O componente mais sensível dessa disputa é que a guerra híbrida travada no Brasil nunca foi apenas digital. Ela foi, desde o início, uma guerra de inteligência. E inteligência, quando capturada, não produz apenas desinformação — produz instabilidade calculada, sabotagem institucional e erosão de legitimidade. A desorganização de setores do aparato estatal deixou marcas profundas: relatórios contaminados, protocolos violados, cadeias de comando corroídas. Recuperar isso exige mais que investigação. Exige reconstruir confiança e capacidade operacional.


O fato de que o Estado brasileiro decidiu enfrentar esse submundo indica uma mudança de rumo com efeitos estruturais. Ao romper a lógica da proteção automática aos fardados e aos operadores de inteligência, o país envia um sinal claro: o Estado não está mais disposto a conviver com estruturas paralelas que desafiam sua autoridade. Mas esse processo ainda está em curso, e o risco de contraofensivas silenciosas — vindas de dentro das corporações — permanece alto. A disputa pelo comando real do aparato estatal é hoje uma das batalhas mais decisivas para o futuro da democracia brasileira.

O tabuleiro internacional: EUA, narcoterrorismo e a doutrina da intervenção “legalizada”



Enquanto o Brasil tenta decifrar sua própria crise interna, há outra engrenagem trabalhando em paralelo — muito maior, muito mais organizada e infinitamente mais perigosa. É a engrenagem da política externa norte-americana, que reenquadrou quase toda a América Latina sob um novo rótulo estratégico: o do “narcoterrorismo”. Essa palavra ressurge com força justamente agora, quando a prisão de Bolsonaro, o avanço das operações da PF e a reorganização do Estado brasileiro começam a reposicionar o país fora da órbita de submissão tácita que marcou décadas de dependência. Não é coincidência. É método.


Desde o início dos anos 2000, Washington vem refinando o modelo de intervenção indireta no hemisfério. O Plano Colômbia, a Iniciativa Mérida e o discurso da “segurança hemisférica” abriram caminho para um tipo de ingerência que dispensa marines, mas opera com instrumentos igualmente poderosos: agências de inteligência, pressão econômica, cooperação judicial, controle de fluxos financeiros, diplomacia coercitiva e guerra informacional. Agora, em 2025, essa lógica retorna com nova roupagem — e com foco explícito na ideia de que o narcotráfico e o crime organizado justificariam qualquer intervenção política.


É exatamente aqui que o Brasil se encontra. A ofensiva da PF contra redes bilionárias de lavagem e esquemas de combustíveis expôs algo que os EUA acompanham há muito tempo: a interpenetração entre crime organizado, economia formal e política. Para Washington, essa interpenetração é o flanco perfeito para enquadrar o país em sua narrativa de “Estado vulnerável à ameaça transnacional”. O mesmo rótulo que justificou bases militares na Colômbia, intervenções em Honduras, operações especiais no México e cooperação ampliada no Paraguai agora paira sobre o Brasil. Não se trata de preocupação moral — trata-se de oportunidade estratégica.


A contradição aparente do governo Trump retirar tarifas em plena crise diplomática com Brasília, enquanto intensifica sinais de desconfiança política, segue a mesma lógica. O recuo tarifário não tem nada a ver com afinidade ou gesto de aproximação: é resposta ao pavor da inflação interna nos EUA, que ameaça corroer o capital político do trumpismo. Ao mesmo tempo, a administração norte-americana, seus think tanks e seus operadores legislativos seguem pressionando o Brasil em outro front: segurança, democracia, mídia, big techs, vigilância e ruptura institucional. O Brasil, na visão estratégica de Washington, deve continuar vulnerável — e, portanto, dependente.


O bolsonarismo, nesse tabuleiro, não é uma exceção: é ativo geopolítico. Um Brasil instável, polarizado, com elites acuadas e instituições questionadas é extremamente útil para a doutrina de “governança hemisférica” norte-americana. Um Brasil soberano, com controle sobre suas cadeias financeiras, suas estruturas de inteligência e sua política externa, não é. Por isso, a instabilidade política brasileira sempre encontrará eco em setores dos EUA que lucram com a desordem controlada: complexos industriais de defesa, consultorias de segurança, big techs que disputam regulação e agências de inteligência que operam em escala global.


A prisão de Bolsonaro — e o que ela desencadeou — precisa ser lida nesse contexto: Washington observa não apenas o destino do ex-presidente, mas o que ele significa para a correlação de forças no Estado brasileiro. Um país que desmantela suas zonas cinzentas, reorganiza suas instituições e reconstrói soberania informacional é, por definição, um país menos permeável à doutrina do narcoterrorismo. Menos manipulável. Mais autônomo. E isso incomoda.


A América Latina, mais uma vez, está em disputa. Só que, desta vez, o Brasil não está apenas no centro do mapa — está no centro da justificativa. A forma como lidarmos com esta crise interna definirá não só nossa política doméstica, mas o grau de liberdade que teremos diante da maior potência do mundo. O “movimento secreto” que tenta redesenhar o Brasil não opera só em Brasília. Ele opera em Washington, Miami, Langley e na enorme máquina ideológica que sempre se beneficia de um continente instável.


O pânico discreto da elite brasileira



A elite brasileira — política, financeira, jurídica e empresarial — reagiu à prisão de Bolsonaro com um silêncio que diz mais que qualquer discurso. Não houve solidariedade explícita, não houve defesa pública, não houve indignação institucional. Houve apenas uma espécie de recolhimento estratégico, uma pausa estudada, como quem sabe que o problema não é o personagem algemado na PF, mas o conjunto de movimentos que se desenrola atrás da cena. A inquietação real não nasce do medo da radicalização bolsonarista. Nasce do temor de que o Estado tenha finalmente decidido cruzar uma fronteira que, por décadas, ninguém ousou tocar: a fronteira entre poder e impunidade.


A sequência de operações da PF empurrou setores historicamente intocáveis para um território desconhecido: o da responsabilização concreta. Empresários com trânsito no Congresso, operadores do mercado financeiro, consultores de campanhas, intermediários de contratos públicos, advogados influentes e dirigentes partidários perceberam que o alvo desta vez não é só o ex-presidente. É o ecossistema inteiro que permitiu sua ascensão. A Carbono Oculto, ao desvendar o elo entre crime organizado e investimentos de alto risco, atingiu diretamente o coração da Faria Lima, que sempre explorou a zona cinzenta sem imaginar que ela pudesse se tornar foco de investigação estrutural. O caso Master funcionou como alerta definitivo: se um banco desse porte pode ruir, qualquer elo da cadeia pode ruir junto.


O centrão, acostumado a navegar entre ilegalidade tolerada e legalidade negociada, entendeu a mensagem com clareza. Essa estrutura de poder nunca dependeu apenas de votos ou articulação parlamentar. Dependeu, sobretudo, da capacidade de financiar campanhas, irrigar redes de influência, manter fluxos paralelos de recursos e reconstruir, a cada ciclo eleitoral, alianças fluidas sustentadas por dinheiro opaco. Agora, esse modelo está sob cerco — e o centrão sabe que, sem ele, perde metade do seu poder real. Daí o comportamento nervoso, as movimentações discretas, as tentativas de reaproximação com o governo e, ao mesmo tempo, a defesa pública de “limites” para o STF e a PF.


O empresariado tradicional vive outra forma de angústia. Muitos dos grupos econômicos que se aproximaram do bolsonarismo o fizeram não por afinidade ideológica, mas por cálculo utilitário: estabilidade tributária, facilitação administrativa, acesso privilegiado a contratos e participação silenciosa em esquemas financeiros que alimentavam a expansão acelerada de capital. A prisão de Bolsonaro desmontou essa engenharia simbólica. As operações da PF desmontaram a material. A combinação das duas expôs um risco que ninguém estava preparado para enfrentar: o risco de que a elite econômica passe, pela primeira vez, de observadora privilegiada a objeto direto da reconstrução institucional.


É por isso que a reação não é pública — é subterrânea. Reuniões discretas, notas de mercado escritas com cuidado, pressão sobre parlamentares, articulações com setores do Judiciário e tentativas de reconstruir alianças que blindem o sistema contra investigações futuras. A elite brasileira está tentando reorganizar suas defesas antes que a próxima fase da ofensiva estatal avance. E sabe que o tempo, desta vez, não está a seu favor.


O elemento mais sensível da equação é que a elite política e econômica brasileira sempre operou com a convicção de que o sistema jamais permitiria que seus mecanismos de autopreservação fossem desmantelados. Essa convicção ficou abalada. E quando a elite perde a certeza da impunidade, ela não busca justiça — ela busca recompor o controle. É esse movimento silencioso, estratégico e invisível que agora se desenrola nos bastidores do poder: não para defender Bolsonaro, mas para salvar o que realmente importa a quem sempre comandou o país sem ser visto.

A próxima fase da extrema-direita: tática, discurso e o risco real



A extrema-direita brasileira sabe que perdeu o comando da máquina, mas não perdeu a capacidade de produzir instabilidade. Isso significa que a sua fase insurgente — a fase em que opera sem o Estado, sem orçamento público, sem ministérios e sem a proteção aberta das Forças Armadas — está apenas começando. O bolsonarismo não desaparece com a prisão do seu líder. Ao contrário: redefine sua estratégia a partir dela, explorando cada fissura institucional, cada medo social e cada brecha internacional. A prisão não encerra o movimento. Reorganiza-o.


A primeira adaptação é narrativa. O bolsonarismo já percebeu que não tem força para mobilizar multidões como antes, mas ainda tem a capacidade de produzir símbolos. Transformar Bolsonaro em mártir não é uma escolha emocional: é uma estratégia de sobrevivência. O discurso de “preso político”, importado da retórica trumpista e amplificado por influenciadores empresariais e religiosos, cumpre duas funções. A primeira é manter a base radical em estado permanente de agitação emocional. A segunda é criar uma estrutura de pressão internacional que possa ser usada como instrumento de chantagem diplomática contra o governo e as instituições brasileiras. Este movimento se alinha perfeitamente às campanhas globais de deslegitimação de sistemas judiciais que contrariem interesses da extrema-direita internacional.


Mas o elemento mais perigoso não está no discurso. Está na tática. O bolsonarismo entendeu que a era das grandes concentrações — as marchas, os atos milionários, as invasões cinematográficas — terminou. A resposta estatal ficou dura demais, e a base perdeu capilaridade. A nova fase opera na lógica da violência de baixa intensidade: ataques isolados, ameaças direcionadas, ações simbólicas contra instituições, atentados pequenos mas coordenados, rupturas localizadas capazes de gerar sensação permanente de instabilidade. Esse é um padrão clássico de insurgências políticas que não conseguem mais controlar o centro, então deslocam sua força para as margens. O objetivo não é derrubar o governo, mas corroer lentamente sua percepção de estabilidade.


É exatamente aqui que a articulação com atores internacionais se torna decisiva. Não se trata de conspiração cinematográfica, mas de alinhamento político-ideológico. Think tanks ultraconservadores, plataformas digitais que resistem à regulação e setores da direita norte-americana — especialmente o ecossistema trumpista — têm interesse direto na continuação da instabilidade brasileira. Um Brasil estável, com PF forte, STF respeitado e capacidade de regulação informacional, representa risco para a doutrina da desinformação global. Já um Brasil dividido, polarizado e com elites acuadas oferece o ambiente perfeito para experimentações políticas de longo prazo.


Internamente, o bolsonarismo aposta em três vetores simultâneos. O primeiro é o radicalismo religioso, que funciona como laboratório de mobilização emocional instantânea e como escudo moral contra responsabilização judicial. O segundo é a guerra informacional permanente, sustentada por influenciadores médios — não mais os grandes nomes — que produzem microdoses de desestabilização diariamente. O terceiro é a infiltração territorial, especialmente em setores da segurança pública, onde redes de afinidade política podem ser ativadas de forma seletiva para criar eventos de crise: greves, paralisações, operações “descoordenadas”, ações fora de protocolo e vácuos de autoridade.


O bolsonarismo, portanto, está entrando em sua fase mais adaptável. Ele não busca mais governar — busca sobreviver e manter capacidade de dano suficiente para ser considerado relevante. Essa lógica é típica de movimentos que perderam o aparato estatal, mas não perderam articulação, financiamento residual e canais internacionais de incentivo. É também a fase em que o risco aumenta: quando uma força política não tem mais como vencer, ela tenta garantir que ninguém governe em paz.


A pergunta, agora, não é se a extrema-direita vai radicalizar. Ela já radicalizou. A questão é como o Estado vai responder a essa nova morfologia de conflito — difusa, fragmentada, híbrida, conectada transnacionalmente e sustentada por redes de poder que não dependem mais de vitórias eleitorais para existir.

As vulnerabilidades da democracia brasileira



A democracia brasileira entrou em 2025 mais robusta do que estava há dois anos, mas também mais exposta. As instituições reagiram ao golpismo com firmeza inédita, mas a reação trouxe à tona fragilidades profundas que, por décadas, foram empurradas para debaixo do tapete. O país descobriu que é possível conter uma tentativa de ruptura, mas ainda não definiu como evitar a próxima. Esse é o dilema central do momento: o Brasil venceu uma batalha, mas não consolidou as defesas para a guerra longa que continua sendo travada no campo político, informacional, econômico e geopolítico.


A primeira vulnerabilidade é tecnológica. O país entrou na era da guerra híbrida sem possuir uma doutrina própria de soberania informacional. O ecossistema digital continua sob domínio de plataformas estrangeiras que operam segundo lógicas comerciais, não democráticas. A moderação de conteúdo é opaca, as métricas de alcance são desconhecidas e o poder das big techs para moldar percepções coletivas permanece intocado. O Brasil reage de forma fragmentada, caso a caso, sem um sistema nacional capaz de proteger o espaço público digital da manipulação algorítmica. Isso significa que, mesmo quando instituições se fortalecem, a opinião pública — seu combustível — continua vulnerável a interferências internas e externas.


A segunda vulnerabilidade é financeira. A rede cinzenta desmontada pela PF é apenas uma parte do problema. Há setores inteiros da economia brasileira dependentes de estruturas que funcionam na fronteira entre legalidade e ilegalidade: combustíveis, logística, fundos de investimento, nichos do agronegócio, franquias empresariais e setores da comunicação. Quando esses sistemas são pressionados, a reação não é institucional, é política. O risco é que grupos econômicos, ao perceberem que o Estado está disposto a reorganizar suas zonas opacas, tentem capturar ou paralisar mecanismos de fiscalização. É o tipo de conflito que não aparece nos jornais, mas que decide o futuro real da democracia: quem controla o dinheiro que controla a política.


A terceira vulnerabilidade é institucional. A crise expôs que algumas das nossas principais estruturas de Estado — inteligência, segurança pública, sistemas de controle interno — ainda carregam resquícios de doutrinas autoritárias. Quando setores do aparato estatal acreditam que podem operar acima das instituições democráticas, a fronteira entre legalidade e arbítrio fica instável. A condenação de generais e a reorganização da ABIN foram passos históricos, mas insuficientes: a cultura do “excepcionalismo fardado” ainda está viva, apenas menos barulhenta. Reconstruir confiança interna e definir limites claros entre funções civis e militares é urgente, mas politicamente arriscado.


A quarta vulnerabilidade está no próprio sistema político. O presidencialismo de coalizão continua produzindo dependência extrema do centrão, que opera como poder paralelo capaz de sabotar agendas nacionais para preservar estruturas que o beneficiam. Quando a base material desse sistema é investigada — como agora —, parte da classe política tende a reagir produzindo instabilidade institucional. É o mecanismo de autodefesa que garantiu a sobrevivência desse grupo por décadas: se o sistema os ameaça, eles ameaçam o sistema.


Por fim, há a vulnerabilidade externa. A América Latina voltou a ser prioridade geopolítica para os Estados Unidos, e o Brasil ocupa posição central na doutrina do “narcoterrorismo” redesenhada para justificar intervenções políticas e pressões econômicas. Um país dividido internamente, com elites desconfiadas, instituições em reconstrução e disputa permanente no espaço digital, torna-se alvo fácil para agendas externas que se beneficiam da instabilidade. O golpe de 8 de janeiro mostrou como atores transnacionais conseguem influenciar narrativas domésticas; o desafio agora é impedir que influenciem decisões de Estado.


Essas vulnerabilidades não significam derrota. Significam que o país está no meio de um processo de reorganização profunda, que só terá resultados duradouros se for acompanhado de estratégia. O Brasil tem força institucional, capital social e posição internacional para sair dessa crise mais forte. Mas isso exige reconhecer, sem ilusões, onde ainda estamos frágeis — e construir, de forma coordenada, as defesas que nunca tivemos.


O que o Brasil precisa fazer agora: defesa e contra-ataque estratégico



O Brasil chegou ao ponto em que não basta mais reagir ao caos. É preciso moldar o ambiente antes que ele seja moldado pelos adversários. A democracia brasileira se defendeu bem desde 2023, mas ainda opera como quem apaga incêndios: apura um golpe, prende conspiradores, desarticula redes, neutraliza ameaças. É insuficiente. O país só supera seu ciclo de instabilidade quando passar da reação à estratégia — quando abandonar a lógica de contenção e adotar a lógica da construção. O que está em disputa agora não é a punição de um grupo político. É a capacidade do Brasil de exercer soberania plena num cenário de guerra híbrida global.


A primeira frente é a informacional. O país precisa formular, enfim, uma doutrina nacional de soberania digital. Não é censura nem controle arbitrário: é construir mecanismos transparentes, públicos e democráticos para impedir que algoritmos privados definam o destino coletivo. Plataformas estrangeiras operam com métricas opacas, incentivam polarização e produzem lucros com instabilidade social — e isso se tornou risco à segurança nacional. O Estado deve exigir interoperabilidade, auditoria independente, clareza algorítmica e responsabilidade operacional. Do contrário, a opinião pública continuará vulnerável a operações coordenadas, internas e externas, que distorcem o debate e corroem a confiança democrática.


A segunda frente é financeira. As operações da PF abriram a porta para um redesenho profundo do sistema econômico subterrâneo que sempre sustentou o poder informal no Brasil. É crucial que governo, Banco Central, Receita e COAF atuem de forma coordenada, criando mecanismos permanentes de rastreamento de fluxos suspeitos, especialmente aqueles que conectam crime organizado, clubes empresariais, intermediários políticos e fundos opacos. Esse ecossistema é o combustível da instabilidade. Sem desorganizar essa rede, a política continuará dependente de estruturas paralelas que operam à margem do interesse público. A reconstrução institucional exige um sistema financeiro transparente, auditável e blindado contra captura política.


A terceira frente é militar e institucional. O país precisa reformular por completo a relação entre civis e Forças Armadas. Não se trata de humilhar corporações nem de criar conflitos artificiais, mas de redefinir, de maneira inequívoca, o papel constitucional dos militares. Isso inclui rever currículos, redesenhar estruturas de comando, eliminar resquícios de doutrina autoritária e integrar a inteligência de defesa a um sistema civil robusto. A democracia brasileira não sobreviverá a outro ciclo em que uma parte do aparato armado se veja autorizada a agir politicamente. Profissionalizar é proteger — tanto o Estado quanto as próprias Forças Armadas.


A quarta frente é política. O presidencialismo de coalizão, da forma como funciona hoje, transformou governabilidade em refém do centrão. A prisão de Bolsonaro e o avanço das operações contra redes cinzentas colocaram parte da classe política em modo defensivo. É justamente por isso que reformas profundas precisam ser feitas agora, enquanto o sistema ainda está desarticulado. Financiamento público mais transparente, punição para lavagem eleitoral, limite para emendas de controle individual, rastreamento de recursos de campanha e critérios rigorosos de compliance são passos indispensáveis. A democracia brasileira nunca sairá do ciclo de chantagens enquanto o dinheiro continuar sendo o principal vetor de poder político.


A quinta frente é geopolítica. O Brasil precisa construir um escudo diplomático contra a doutrina norte-americana do “narcoterrorismo” e contra a retomada da política de intervenção hemisférica. Isso não se faz com enfrentamento retórico, mas com estratégia: ampliação de alianças no Sul Global, fortalecimento do BRICS, cooperação técnica com países que desenvolveram autonomia digital, aproximação com organismos multilaterais e diversificação de parcerias em tecnologia, inteligência e defesa. O país que controla seu ambiente internacional controla também o destino interno. Um Brasil isolado é vulnerável; um Brasil articulado é inatingível.


A sexta frente é social. Não há soberania institucional sem legitimidade popular. E legitimidade não se mantém apenas com programas econômicos — embora eles sejam fundamentais. Ela se sustenta com comunicação clara, transparência ativa, prestação de contas e narrativa estratégica. O país precisa compreender, em termos simples, o que está em jogo. E essa pedagogia não é responsabilidade de um único ator: é de todo o sistema democrático. A extrema-direita opera com afeto e identidade. A democracia precisa operar com pertencimento e clareza. Sem isso, qualquer avanço institucional será percebido como distante e vulnerável à manipulação.


Estas seis frentes compõem o plano que o Brasil precisa executar simultaneamente: proteger seu ambiente informacional, reorganizar sua economia política, redefinir o papel das instituições armadas, reformar a política, fortalecer sua posição internacional e ampliar sua base social. Não é uma agenda de governo. É uma agenda de país. Se o Brasil não agir agora, quando a correlação de forças ainda permite movimento, perderá a oportunidade mais estratégica de sua história recente. Se agir, pode transformar uma crise profunda na primeira fundação real de soberania do século XXI.

Conclusão: o Brasil diante do seu próprio desenho



O Brasil está, mais uma vez, diante do momento em que precisa decidir quem o desenha. Pela primeira vez desde a redemocratização, o país enxerga com nitidez as engrenagens que sempre moveram sua instabilidade: o dinheiro cinzento que lubrifica a política, a infiltração de doutrinas autoritárias no aparato estatal, a dependência tecnológica que fragiliza a esfera pública, a pressão geopolítica que transforma a região em tabuleiro de interesses externos. A prisão de Bolsonaro apenas revelou o que já operava há décadas — e o que agora, enfim, está sendo confrontado.


Há um movimento que tenta redesenhar o Brasil segundo a lógica que o manteve vulnerável: elites que não aceitam perder seu poder informal, setores militares que ainda guardam fantasmas de tutela, operadores financeiros que prosperam na fronteira entre o legal e o ilícito, e atores internacionais que veem vantagem em um país instável. Esse movimento não é novo nem oculto por genialidade — é oculto porque sempre se acostumou a operar sem resistência.


Mas há outro movimento em curso, menos ruidoso e muito mais profundo. Ele está na reorganização da Polícia Federal; na reconstrução da inteligência; na condenação inédita de generais golpistas; nas operações que desmontam estruturas de lavagem bilionária; na consolidação do STF como dique institucional; na tentativa de formular uma doutrina nacional para o espaço digital; e na retomada de uma política externa que compreende que soberania não se decreta — se constrói.


O país vive agora a colisão entre esses dois movimentos. O primeiro tenta preservar o passado que o beneficiou. O segundo tenta inaugurar o futuro que nunca tivemos. É um choque silencioso, mas decisivo. E, como toda disputa histórica, ele não se define apenas por força institucional: depende de estratégia, de clareza e de vontade política. O Brasil só romperá seu ciclo de instabilidade se entender que não há democracia plena enquanto estruturas paralelas continuarem determinando o que o Estado pode ou não fazer.


O momento exige coragem, mas também inteligência. Não basta avançar; é preciso consolidar. Não basta desmontar; é preciso construir. Não basta punir; é preciso redesenhar. O país está diante da rara oportunidade de reorganizar suas fundações — informacionais, financeiras, institucionais e geopolíticas. Se conseguir transformar a crise atual em projeto, pela primeira vez terá condições reais de escapar da dependência que marcou sua trajetória por tanto tempo.


O movimento secreto que tenta redesenhar o Brasil não é inevitável. Ele apenas prospera quando o país não decide por si mesmo. Agora, pela primeira vez em muito tempo, o Brasil tem a chance de traçar o próprio desenho. E o mundo inteiro observa para ver se faremos isso — ou se deixaremos que façam por nós.

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