"O orgulho daquilo que não vivemos":Por que Santa Catarina se entende como um mito brasileiro!
- Jeser Batista
- há 17 horas
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Este texto nasceu de um incômodo profundo, não de um plano frio e calculado. Há mais de um ano, essa ideia martela na minha cabeça, e nos últimos meses, tenho rascunhado pedaços de pensamentos, flashes e lembranças. Mas foi na eleição municipal de Indaial, ano passado, quando fui candidato a prefeito que tive a incrível oportunidade de ouvir muitas pessoas, que o mito da excepcionalidade catarinense, voltou com uma força avassaladora. Reavivou memórias e, o mais importante, mostrou a presença viva dessa cultura "arenista" que ainda molda nossa política e nossos jeitos de pensar.
A partir daí, esse desconforto virou um motor. Comecei a investigar, a observar de perto, a escrever rascunhos sobre o tema. E, aos poucos, o que era só uma intuição virou reflexão, e a reflexão se transformou em uma verdadeira busca. Foi assim que organizei as ideias e, só depois, fui atrás das referências para sustentá-las. Então, o texto surge da vivência, da rua, da carne, do calor do tempo político, e só depois encontra a segurança das referências acadêmicas.
Este texto brota da angústia de ver as análises sobre a ascensão de figuras como Carlos Bolsonaro em Santa Catarina repetirem o mesmo erro superficial de sempre: confundir o aparente com a essência. Nasceu, primeiro, como desabafo, como raiva organizada em palavras, e só depois como uma reflexão mais profunda. Ao buscar nas leituras e nos autores um solo teórico, acabei encontrando uma constelação de apoios que, mais do que confirmar uma tese, deram corpo ao que eu já sentia. Aqui, o pensamento não sai da biblioteca para o mundo, mas do mundo para a biblioteca.
Este texto é o registro de uma compreensão que nasceu da experiência, começa no espanto e chega à ideia. E como toda reflexão viva, ele está aberto a ser questionado, criticado, ampliado. O que eu proponho é provocar, abrir espaço para o debate, para que, com coragem e cuidado, desfaçamos esse mito que foi tão meticulosamente construído por séculos de poder e silêncio. Um mito criado e mantido por aqueles que sempre controlaram a economia e a moral catarinense, os grandes nomes do capital industrial e financeiro, herdeiros diretos da velha classe política arenista que, desde a origem da república, disputa e domina o Estado. O que quero aqui é praticar um ato de desobediência à anestesia da história que nos contaram.
Quando olhamos para Santa Catarina pelas lentes apressadas do noticiário, parece que a recente ascensão da extrema-direita é algo novo, um desvio inesperado num estado supostamente moderado. Mas essa visão ignora a profundidade da nossa formação histórica, que moldou o conservadorismo catarinense. O que vemos não é uma invenção recente, mas a continuidade de uma engenharia social e econômica que, há mais século, vem construindo nosso território e também nosso imaginário, em torno de um tripé: pertencimento, mérito e superioridade moral.
O mito da “Santa Catarina diferente” é o pilar que sustenta o sentimento conservador, e esse mito não é uma escolha ideológica livre, mas uma identidade inconsciente forjada pelo Estado. Por mais de um século, como já frisamos, o catarinense foi ensinado a acreditar que prosperou sozinho, quando, na verdade, foi o Estado o grande arquiteto de seu sucesso.
Ao contrário da lógica extrativista que estruturou o Brasil, como o ouro, a cana, a borracha, o gado; tudo explorado até a exaustão, Santa Catarina foi pensada como colônia de povoamento.
Desde o Império, havia aqui uma intenção política clara: ocupar, produzir, civilizar. Como Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973) e Nestor Goulart Reis Filho (1968) analisaram, a política de colonização do Sul não foi improviso, mas um projeto, um laboratório de civilização europeia dentro de um país mestiço.
Chegaram alemães, italianos, poloneses, açorianos, todos com incentivos públicos: terras subsidiadas, crédito, infraestrutura, representação consular. O que se construiu não foi um milagre de pioneiros, mas um projeto de Estado. As comunidades receberam escolas, igrejas, cooperativas, proteção militar e jurídica. Eram microterritórios planejados, semi-autônomos, integrados a uma lógica nacional de controle e “branqueamento”.
O economista catarinense Alcides Goularti Filho (2007) demonstrou com clareza que essa formação não só definiu a estrutura de classes do estado, mas gerou um tipo de capitalismo "moralizado", onde a dependência econômica se transformou em orgulho. O que era resultado de política pública passou a ser contado como vitória da virtude individual. A memória coletiva fez o Estado desaparecer e elevou o trabalhador à condição de herói. É o que Pierre Bourdieu (1989) chamaria de transformação do capital econômico em capital simbólico. Assim, a colonização feita pelo Estado virou mito de mérito.
Com o tempo, essa inversão se consolidou como nossa identidade política. O catarinense passou a dizer “aqui se trabalha”, “aqui é diferente”, “não dependemos de Brasília”. A autopercepção de eficiência e ordem se tornou um argumento moral. E foi nesse processo que a presença constante do poder público foi apagada. Walter Knaesel Birkner e Marcos Mattedi (2008) mostraram como o cooperativismo, que sempre foi sustentado por crédito estatal, foi reescrito como um símbolo de autonomia individual. A solidariedade, que era social e institucional, foi reinterpretada como virtude pessoal. O coletivo virou prova do "eu".
Como René Gertz observou ao estudar a colonização alemã, essa narrativa sempre teve um forte componente racial. A diferença econômica foi lida como diferença moral, e a diferença moral como diferença racial. O catarinense branco, disciplinado, ordeiro, passou a se ver como o oposto do “Brasil misturado” e “preguiçoso”. É daí que brota o orgulho conservador, que se alimenta de uma hierarquia simbólica disfarçada de ética do trabalho. Não é o ódio ao outro que sustenta essa mentalidade, mas a crença na própria pureza.
O século XX apenas reforçou esse mito. As políticas de industrialização da Era Vargas, o crédito do BNDES, as obras de infraestrutura do regime militar, tudo isso manteve o Estado como motor central do desenvolvimento catarinense. Lucas Cidade Garcez e Marcelo Arend (2019) mostraram que a complexidade produtiva do estado dependeu inteiramente da presença estatal. Mesmo assim, a retórica liberal transformou essa dependência em autonomia. O que foi obra do coletivo passou a ser prova da excelência individual. É uma ironia histórica: o mesmo povo que mais se beneficiou de um Estado forte tornou-se o mais fiel defensor do Estado mínimo. Eduardo von Dentz (2023) demonstrou que até o agronegócio e o sistema cooperativo do Oeste só se consolidaram graças à institucionalidade pública. Mas esse dado desaparece do discurso político, substituído por uma ficção emocional de auto-suficiência.
O resultado é uma modernidade conservadora, um estado socialmente desigual, mas moralmente seguro de si. Hoyêdo Nunes Lins (2018) descreveu essa contradição como uma aceleração desigual do tempo histórico, um lugar onde a modernização material correu mais rápido que a democratização. É exatamente nessa fenda que o bolsonarismo se instala, oferecendo ao catarinense o espelho em que ele sempre quis se ver. O discurso moralista e autoritário apenas reencena, agora em chave digital, a velha distinção entre o “Sul produtivo” e o “Brasil preguiçoso”. É o mesmo enredo, mas com outro sotaque e outras redes.
Recontar essa história é romper o feitiço. Jessé Souza (2017) nos lembra que as elites brasileiras sempre criaram mitos morais para esconder a verdadeira origem de suas riquezas. Milton Santos (1987) ensinou que disputar o território é disputar o sentido da nação. Santa Catarina precisa revisitar seu próprio orgulho e descobrir o que nele ainda é vivo e o que é pura fantasia.
O verdadeiro legado catarinense não é o moralismo nem o individualismo, mas a cooperação, a força comunitária e a presença estatal que estruturaram seu desenvolvimento. O orgulho pode permanecer, mas precisa mudar de objeto: de orgulho da distinção para orgulho da solidariedade.
O caso de Carlos Bolsonaro não é o nascimento de algo novo, mas a reaparição simbólica de um velho espírito de elite vestido de populismo. O conservadorismo local não é uma reação, ele é estrutural. Sobreviveu porque foi ensinado como herança. Enquanto os e as, catarinenses acreditam que venceram sozinhos, continuará servindo, sem perceber, às mesmas forças que o construíram.
A libertação começa pela consciência, e essa consciência exige reconhecer que o Estado, longe de ser um inimigo, foi o verdadeiro parceiro de seu sucesso.
Talvez, ao recontar essa história com honestidade, Santa Catarina consiga finalmente sustentar seu orgulho sem precisar negar o Brasil. Talvez consiga transformar o mito em memória, a superioridade em solidariedade, o passado em lição. E, nesse processo, aprender que ser diferente nunca foi o problema; o problema é acreditar que ser diferente é ser melhor.
Jeser Batista - Canal Notórios Bastardos. Cozinheiro, Sommelier, Ensaísta e Intelectual Bastardo.
Referências
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
DENTZ, Eduardo von. Estado, Institucionalidade e Desenvolvimento Regional no Oeste Catarinense. Revista Economia e Região, v. 11, n. 2, UEL, 2023.
GARCEZ, Lucas Cidade; AREND, Marcelo. Complexidade Econômica e Desequilíbrios Regionais em Santa Catarina. Revista de Economia, UFSC, v. 22, n. 1, 2019.
GERTZ, René. O Perigo Alemão: a colonização alemã e o Estado brasileiro. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1991.
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