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O pau que dá em Chico, dá em Mr. Francis

  • Foto do escritor: Sara Goes
    Sara Goes
  • 4 de ago.
  • 4 min de leitura

Como Washington defende leis duras contra corrupção no país, mas trabalha para frear regulação de suas gigantes de tecnologia, expondo uma notável dualidade de interesses

Brasília se tornou o palco de um intenso, cabo de guerra diplomático com Washington, cujas regras parecem mudar conforme o jogador. De um lado, o governo americano incentiva abertamente o Brasil a adotar uma legislação severa para punir corruptos e violadores de direitos humanos, inspirada em sua celebrada Lei Magnitsky. Do outro, o mesmo Tio Sam, em aliança com as gigantes do Vale do Silício, move suas peças para minar a soberania brasileira na regulação do mercado digital.

A mensagem que circula nos corredores do poder é clara: as regras são bem-vindas, desde que o "pau" não bata nos "Franciscos" de um trilhão de dólares.


 "Chico" da corrupção

A primeira face da política externa americana para o Brasil é a do "xerife global" da ética. A ferramenta que Washington oferece é a Global Magnitsky Act, uma poderosa arma da Casa Branca que permite ao presidente dos EUA impor sanções, como congelamento de bens e proibição de vistos, a indivíduos estrangeiros envolvidos em atos de corrupção significativa ou graves violações de direitos humanos.

A ideia de que o Brasil deveria adotar um mecanismo similar, uma "Lei Magnitsky brasileira", não surgiu por acaso. Ela foi semeada e cultivada, ganhando tração em propostas no Congresso Nacional e recebendo o apoio de figuras públicas de destaque, como o ex-ministro e ex-juiz Sergio Moro. O discurso é atraente: dar ao Estado brasileiro uma ferramenta ágil para punir os maus elementos, em uma demonstração de compromisso com os padrões internacionais de governança.

Sob essa ótica, os EUA se posicionam como um parceiro na luta por um Brasil mais limpo e justo, exportando seu modelo legal como um padrão a ser seguido.


O "Mr. Francis" intocável do Vale do Silício

A outra face da moeda, no entanto, revela-se quando a soberania legislativa do Brasil mira os interesses econômicos americanos. O principal campo de batalha tem sido o Projeto de Lei 2630, popularmente conhecido como "PL das Fake News". A proposta busca estabelecer um marco regulatório para as plataformas digitais, exigindo mais transparência de algoritmos e responsabilidade na moderação de conteúdo.

A reação foi imediata e feroz, em uma escalada de lobby que analistas consideraram sem precedentes pela forma como as empresas usaram seus próprios produtos como arma. O Google tomou a dianteira, inserindo um link em sua página principal de busca, o site mais acessado do Brasil, com o alerta "O PL das Fake News pode piorar a sua internet". De maneira ainda mais direta, o Telegram disparou uma mensagem a milhões de brasileiros, afirmando que o projeto daria ao governo "poderes de censura" e "mataria a internet moderna". Enquanto isso, a Meta inundava o Facebook e o Instagram com anúncios patrocinados que replicavam a mesma narrativa de risco à liberdade de expressão.

Essa tática, que transformou as interfaces de usuário em palanque político, extrapolou o lobby tradicional de bastidores e foi vista como uma demonstração de força. A agressividade foi tal que provocou uma reação enérgica das autoridades brasileiras: o Google passou a ser investigado por abuso de poder econômico pelo CADE e notificado pelo Ministério da Justiça, enquanto o Telegram foi obrigado, por uma dura ordem do Supremo Tribunal Federal, a apagar sua mensagem e publicar uma retratação, sob pena de suspensão do serviço em todo o país. A ameaça à continuidade dos serviços, antes implícita, tornava-se assim uma moeda de troca no debate público.

Mas a oposição não foi apenas corporativa. O governo americano entrou em campo. Em relatórios anuais, o Escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR) já classificou iniciativas como essa como potenciais "barreiras comerciais". A Câmara de Comércio Americana (Amcham), influente porta-voz dos interesses empresariais dos EUA no Brasil, publicou notas e pareceres robustos, reverberando os argumentos das empresas de tecnologia e alertando para um "ambiente de negócios hostil".

A mensagem aqui é outra: a liberdade, neste caso, é a de mercado, e a inovação não pode ser contida por regras locais.


Soberania de duas velocidades

Ao colocar os dois casos lado a lado, a contradição salta aos olhos. Por que a mesma diplomacia que defende a criação de leis para punir indivíduos no Brasil se opõe com tanta veemência a leis que buscam regular suas empresas bilionárias?

Trata-se de um choque frontal entre a diplomacia de "valores" e a diplomacia de "interesses", uma soberania relativa. Quando a pauta é o combate à corrupção, uma bandeira que serve aos interesses geopolíticos americanos e não afeta diretamente seus grandes conglomerados, o incentivo à ação legislativa brasileira é bem-vindo. Contudo, quando a pauta é a regulação de um setor estratégico que representa o auge do poderio econômico e tecnológico dos EUA, a soberania brasileira é vista como um obstáculo, uma ameaça ao livre fluxo de dados e lucros.

O pau que bate em Chico é o da lei internacional e dos bons costumes, que fortalece a influência americana. Mr. Francis é protegido, é a galinha dos ovos de ouro da nova economia, cujas regras devem permanecer fluidas e, de preferência, definidas por elas mesmas.

O embate em curso define muito mais do que os rumos da internet no país. Ele testa a capacidade do Brasil de se autodeterminar em um século dominado pelo poder digital. A questão que fica para o Planalto e para o Congresso é se o país escreverá suas próprias regras ou se aceitará que, na doutrina do parceiro do Norte, nem todo mundo é igual perante a lei. Principalmente quando um deles vale trilhões.


 
 
 

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