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O projeto dos EUA em um sistema internacional em transição

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    Rey Aragon
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  • 13 min de leitura

Como o possível encerramento da guerra na Ucrânia, a militarização da Europa e a crescente pressão sobre a América Latina revelam a estratégia de reorganização hegemônica de uma potência em declínio relativo


O debate sobre o fim da guerra na Ucrânia tem sido conduzido como se estivesse em jogo apenas a paz europeia. Mas o conflito sempre foi maior do que isso. À medida que os Estados Unidos sinalizam uma mudança de postura no front europeu, torna-se possível enxergar um projeto mais amplo de reorganização do poder global, no qual a Europa assume os custos da militarização enquanto a América Latina retorna ao centro das disputas estratégicas. Em um sistema internacional em transição, compreender esse movimento deixou de ser exercício teórico e passou a ser condição para interpretar o futuro imediato da política mundial.

Não é mais sobre a Ucrânia



A guerra na Ucrânia foi apresentada ao mundo como um confronto localizado, quase moral, entre democracia e autoritarismo, soberania e agressão. Essa moldura, repetida à exaustão, cumpriu uma função política clara: reduzir um processo histórico complexo a um evento isolado, administrável no campo do discurso e mobilizador no plano simbólico. Mas, à medida que o conflito se aproxima de um ponto de inflexão, torna-se cada vez mais evidente que nunca se tratou apenas da Ucrânia. O que esteve em jogo desde o início foi a reorganização do poder em um sistema internacional em transição.


O conflito europeu deve ser compreendido como parte de um movimento mais amplo de ajuste estrutural de uma hegemonia em declínio relativo. Diante do esgotamento do ciclo de expansão iniciado no pós-Guerra Fria, os Estados Unidos passaram a operar não mais pela promessa de integração universal, mas pela gestão seletiva de dependências, pela redistribuição de custos e pela redefinição de zonas prioritárias de controle. A guerra ofereceu o cenário ideal para esse rearranjo: reativou alianças, reordenou cadeias produtivas, rompeu vínculos energéticos estratégicos e legitimou uma nova arquitetura de segurança ancorada na militarização permanente da Europa.


Nesse processo, a narrativa da guerra cumpriu um papel tão relevante quanto seus desdobramentos materiais. Ao deslocar o debate para o terreno da urgência moral, tornou-se possível naturalizar escolhas que, em outras circunstâncias, encontrariam forte resistência social: expansão acelerada de gastos militares, perda de autonomia industrial, subordinação tecnológica e aceitação de custos econômicos prolongados. A guerra funcionou, assim, como instrumento de disciplina política e econômica, tanto no interior da Europa quanto no sistema internacional como um todo.


À medida que o debate sobre um possível encerramento do conflito ganha espaço, surge a ilusão de que se aproxima um retorno à normalidade. Trata-se de um equívoco. O fim ou o congelamento da guerra não representa o fechamento de um ciclo, mas sua transição para outra fase. As estruturas que ela reorganizou permanecem ativas, e os interesses que dela se beneficiaram não desapareceram. O que está em curso não é a superação da crise, mas a sua realocação geopolítica. Para compreendê-la, é preciso abandonar a leitura episódica do conflito e encará-lo como aquilo que sempre foi: um momento decisivo na reconfiguração do sistema internacional e no deslocamento do eixo central das disputas globais.


A guerra europeia como instrumento de reorganização hegemônica



A guerra na Ucrânia não deve ser analisada apenas por seus desdobramentos militares imediatos, mas por sua capacidade de reorganizar estruturas profundas do sistema internacional. Desde 2022, o conflito operou como um poderoso catalisador de transformações que já estavam latentes: reconfigurou fluxos energéticos, acelerou a reindustrialização bélica, redefiniu prioridades orçamentárias e reordenou hierarquias políticas dentro do bloco ocidental. Longe de ser um acidente histórico, a guerra funcionou como instrumento para atualizar um modelo de dominação que já não conseguia se sustentar pelos mecanismos clássicos de integração econômica e consenso liberal.


Um dos efeitos mais evidentes foi a ruptura deliberada do eixo energético entre Europa e Rússia. Durante décadas, essa interdependência havia funcionado como base material de relativa estabilidade continental e como vetor de autonomia estratégica europeia. O conflito, ao legitimar sanções amplas e a substituição forçada de fornecedores, desorganizou esse arranjo e empurrou a Europa para uma posição de maior vulnerabilidade energética, dependente de mercados voláteis e de fornecedores externos mais caros. Essa ruptura não foi um efeito colateral indesejado, mas um elemento central da reorganização em curso, pois enfraqueceu qualquer possibilidade de convergência estratégica euro-russa fora do guarda-chuva atlântico.


Paralelamente, a guerra reativou e expandiu o complexo industrial-militar em escala inédita desde o fim da Guerra Fria. A urgência permanente produziu um ambiente político no qual gastos militares extraordinários passaram a ser tratados como necessidade técnica, não como escolha política. Orçamentos foram flexibilizados, regras fiscais relativizadas e prioridades sociais subordinadas à lógica da segurança. A militarização deixou de ser excepcional e passou a estruturar o planejamento econômico de médio e longo prazo, criando novos interesses materiais profundamente investidos na continuidade da tensão.


Esse processo também reorganizou as relações internas do bloco ocidental. Países europeus foram progressivamente empurrados para uma lógica de alinhamento automático, na qual divergências estratégicas passaram a ser lidas como riscos à segurança coletiva. A guerra produziu, assim, uma homogeneização política que reduziu margens de manobra nacionais e fortaleceu mecanismos de coordenação assimétricos. A centralização das decisões estratégicas, combinada com a fragmentação dos custos, consolidou uma arquitetura em que poucos definem os rumos e muitos arcam com as consequências.


Nesse sentido, a guerra europeia cumpriu uma função estrutural: reorganizou dependências, redistribuiu custos e redefiniu prioridades em favor de uma hegemonia que já não se sustenta pela expansão, mas pela gestão da instabilidade. O conflito não apenas revelou a transição do sistema internacional; ele a acelerou, transformando a Europa no primeiro grande laboratório de um modelo de poder baseado na militarização permanente e na subordinação estratégica.

Europa militarizada, soberania esvaziada



A militarização acelerada da Europa, apresentada como resposta inevitável a uma ameaça externa permanente, revelou uma contradição profunda no projeto político do continente. Ao mesmo tempo em que se arma, a Europa não fortalece sua autonomia estratégica; ao contrário, subordina-se ainda mais a estruturas decisórias, tecnológicas e industriais que escapam ao seu controle direto. O rearmamento europeu, longe de significar soberania, tem operado como vetor de dependência ampliada em um contexto de fragilidade econômica e crise social prolongada.


O aumento expressivo dos gastos militares ocorreu em um momento de estagnação econômica, pressões fiscais crescentes e desgaste do pacto social construído no pós-guerra. Para viabilizá-lo, governos europeus flexibilizaram regras orçamentárias, relativizaram compromissos sociais e normalizaram a ideia de que segurança deve preceder bem-estar. Essa inversão de prioridades não foi acompanhada por um debate público profundo sobre seus custos de longo prazo. A militarização avançou como imperativo técnico, não como decisão política deliberada, o que permitiu neutralizar resistências e reduzir a disputa democrática em torno de escolhas estruturais.


No plano industrial, a promessa de fortalecimento da base produtiva europeia esbarra em limitações concretas. A fragmentação do setor de defesa, a ausência de padronização efetiva e a dependência tecnológica externa dificultam a construção de uma capacidade autônoma real. Em muitos casos, o rearmamento se traduz em compras emergenciais de sistemas prontos, frequentemente produzidos fora do continente, o que transfere recursos públicos europeus para cadeias industriais externas e consolida vínculos de longo prazo difíceis de reverter. A soberania militar, nesse contexto, torna-se retórica, não prática.


Politicamente, a militarização produziu um estreitamento do campo de decisão. Questões estratégicas passaram a ser tratadas como assuntos de segurança, imunes ao debate público ampliado e à contestação social. A crítica à escalada militar passou a ser associada à irresponsabilidade ou à cumplicidade com ameaças externas, criando um ambiente de conformismo forçado. Esse processo enfraqueceu a capacidade europeia de formular políticas externas independentes e reduziu o espaço para iniciativas diplomáticas que escapassem ao enquadramento dominante.


A Europa emerge, assim, como um espaço profundamente armado, mas estrategicamente constrangido. Assume os custos econômicos, sociais e políticos de uma militarização permanente sem controlar plenamente seus meios, seus objetivos ou seus desdobramentos. Ao transformar-se em fronteira avançada de um sistema de segurança que não define, o continente sacrifica autonomia em nome de uma proteção que, paradoxalmente, aprofunda sua vulnerabilidade estrutural. A militarização, apresentada como resposta à crise, passa a ser parte constitutiva dela.

Estados Unidos: hegemonia tardia e monetização da dependência



A leitura mais comum sobre a atuação dos Estados Unidos na guerra da Ucrânia costuma oscilar entre dois extremos igualmente insuficientes: a defesa altruísta da ordem liberal ou o impulso irracional para a escalada militar. Ambas ignoram o elemento central que organiza a política externa norte-americana no atual momento histórico: a gestão estratégica de uma hegemonia em declínio relativo. Mais do que vencer guerras ou impor consensos duradouros, Washington opera hoje para reorganizar dependências, reduzir custos diretos e preservar alavancas decisivas de poder em um sistema internacional cada vez mais fragmentado.


Nesse sentido, a guerra europeia ofereceu aos Estados Unidos uma oportunidade singular. Ao estimular e coordenar a resposta militar ocidental, Washington conseguiu reafirmar sua centralidade política sem assumir sozinho o ônus econômico, social e humano do conflito. A redistribuição de custos tornou-se eixo da estratégia: a Europa financia, se militariza e absorve os impactos inflacionários e fiscais, enquanto os Estados Unidos preservam sua capacidade de direção estratégica, seu domínio tecnológico e sua primazia industrial no setor de defesa.


A monetização da dependência é o mecanismo-chave desse arranjo. O rearmamento europeu, acelerado pela narrativa de urgência permanente, se converte em demanda estrutural por sistemas, tecnologias, interoperabilidade e manutenção que, em grande medida, permanecem sob controle norte-americano. Não se trata apenas da venda de armamentos, mas da consolidação de um ecossistema de dependência de longo prazo que envolve padrões operacionais, cadeias de suprimento, software, inteligência e doutrina. A guerra, nesse contexto, não é apenas um evento militar, mas um ativo estratégico capaz de gerar renda, influência e alinhamento político continuado.


Ao mesmo tempo, os Estados Unidos buscam reduzir sua exposição direta ao conflito. O discurso sobre negociação, contenção e eventual encerramento da guerra não contradiz essa lógica; ao contrário, a complementa. Encerrar ou congelar o conflito em termos favoráveis permite a Washington preservar os ganhos acumulados, evitar riscos de escalada incontrolável e liberar recursos políticos e estratégicos para outras frentes consideradas mais vitais. A hegemonia tardia não se sustenta pela expansão contínua, mas pela capacidade de escolher onde, quando e como intervir.


Essa seletividade revela uma mudança qualitativa no exercício do poder. Os Estados Unidos não abandonam a Europa, mas redefinem sua função: menos espaço de projeção direta e mais zona de amortecimento, disciplinamento e geração de dependência. Ao transformar aliados em gestores locais de uma arquitetura de segurança que não controlam plenamente, Washington mantém influência sem assumir o protagonismo ostensivo. O poder se exerce menos pela ocupação e mais pela organização das condições em que outros atuam.


O projeto norte-americano, portanto, não é o de um império em colapso, mas o de uma potência que reconhece os limites de sua capacidade de imposição direta e adapta seus instrumentos. Ao monetizar a instabilidade, reorganizar dependências e deslocar prioridades, os Estados Unidos buscam atravessar a transição do sistema internacional preservando aquilo que consideram essencial: controle tecnológico, primazia financeira e capacidade de definir os termos do jogo, mesmo quando já não detêm o monopólio da força.

Rússia: contenção, sobrevivência e os limites da escalada



A Rússia ocupa um lugar singular na transição do sistema internacional: não é uma potência hegemônica em declínio, tampouco um ator emergente com capacidade plena de reorganizar a ordem global. Trata-se de uma potência regional ampliada, dotada de recursos estratégicos decisivos, mas constrangida por limitações estruturais profundas. Compreender sua atuação exige abandonar tanto a caricatura da ameaça expansionista ilimitada quanto a leitura indulgente que a reduz a simples vítima do cerco ocidental. O que orienta Moscou, no atual momento histórico, é uma lógica de contenção e sobrevivência em um ambiente de hostilidade prolongada.


A guerra na Ucrânia impôs custos elevados à economia russa, bloqueou acessos tecnológicos, tensionou cadeias logísticas e aprofundou a dependência de circuitos alternativos de comércio e financiamento. Ainda que o Estado russo tenha demonstrado capacidade de adaptação e resiliência, a prolongação do conflito limita perspectivas de desenvolvimento de médio e longo prazo. Uma guerra permanente não é compatível com um projeto de crescimento sustentado, e uma escalada direta com a OTAN representaria um risco existencial que Moscou não tem interesse objetivo em assumir.


Nesse contexto, a retórica russa de que não busca uma guerra continental deve ser lida menos como gesto conciliatório e mais como expressão de um cálculo racional. A manutenção de capacidades coercitivas, a defesa de zonas consideradas vitais e a disposição para o uso da força em seu entorno imediato coexistem com a consciência dos limites impostos pelo equilíbrio nuclear e pela assimetria econômica em relação ao bloco ocidental. A Rússia opera no limiar: forte o suficiente para impedir sua marginalização completa, mas não a ponto de impor unilateralmente uma nova ordem.


A insistência europeia na narrativa de uma ameaça russa iminente cumpre, nesse quadro, funções que vão além da descrição objetiva do risco. Ela legitima a militarização acelerada, justifica o alinhamento automático e reduz o espaço para soluções diplomáticas que escapem à lógica da dissuasão permanente. Para Moscou, essa narrativa reforça a percepção de cerco e consolida a opção por uma postura defensiva-agressiva, marcada mais pela negação do avanço adversário do que por projetos expansionistas de longo alcance.


Ao mesmo tempo, a centralidade dos Estados Unidos nas eventuais negociações revela uma hierarquia implícita que a própria Rússia reconhece. Moscou compreende que qualquer rearranjo estável de segurança europeia passa necessariamente por Washington, não por Bruxelas. Isso reforça a leitura de que o conflito, para além de suas dinâmicas regionais, integra um jogo mais amplo de reposicionamento hegemônico no qual a Rússia busca garantir espaço de manobra suficiente para preservar sua integridade estratégica e evitar um isolamento irreversível.


A Rússia, portanto, não age movida por impulsos irracionais nem por um desejo ilimitado de confronto. Atua sob constrangimentos severos, buscando maximizar segurança relativa em um sistema hostil e em transição. Seus movimentos refletem menos ambição expansiva do que a tentativa de impedir um rebaixamento estratégico permanente. É nesse equilíbrio precário entre contenção e coerção que se define seu papel no rearranjo global em curso.

A América Latina como território decisivo



À medida que o conflito europeu se aproxima de um ponto de estabilização relativa, o eixo central das disputas globais desloca-se de forma cada vez mais nítida para o Hemisfério Ocidental. Esse movimento não é contingente nem circunstancial; ele decorre de uma lógica estrutural da hegemonia em transição. Diferentemente da Europa ou da Eurásia, a América Latina não é apenas um espaço de influência desejável para os Estados Unidos, mas um território existencial para a reprodução de seu poder. Energia, alimentos, minerais críticos, rotas logísticas e fluxos informacionais convergem na região, tornando-a peça-chave na tentativa de compensar perdas relativas em outras frentes.


Nesse contexto, a América Latina reaparece não como periferia passiva, mas como campo decisivo de disputa. O continente concentra recursos estratégicos fundamentais para a economia global do século XXI, ao mesmo tempo em que abriga Estados com diferentes graus de autonomia política e capacidade de articulação externa. Para Washington, permitir a consolidação de projetos soberanos, alianças extra-hemisféricas ou infraestruturas independentes na região significaria aceitar um enfraquecimento acelerado de sua posição global. A pressão crescente sobre o continente deve ser lida, portanto, como parte de um esforço de recentralização hegemônica.


A Venezuela ocupa papel simbólico e estratégico nesse movimento. Mais do que um caso isolado, o país funciona como laboratório de uma combinação de instrumentos que articulam sanções econômicas, isolamento diplomático, guerra informacional, lawfare e presença militar indireta. A persistência desse cerco revela que o objetivo não se limita à mudança de governo, mas à afirmação de um princípio: a impossibilidade de desvio estrutural no interior do espaço considerado vital. A mensagem dirigida ao restante do continente é clara: a autonomia tem custos crescentes.


Essa ofensiva não se dá apenas pela via militar ou diplomática tradicional. Ela se expressa na disputa por infraestruturas críticas, no controle de cadeias logísticas, na captura de fluxos de dados e na influência sobre sistemas políticos internos. Bases flexíveis, acordos de segurança, programas de cooperação seletiva e intervenções no campo informacional compõem um mosaico de ações que, tomadas em conjunto, desenham um novo padrão de presença hegemônica. Trata-se menos de ocupação direta e mais de condicionamento estrutural das possibilidades de ação dos Estados latino-americanos.


Ao mesmo tempo, o reposicionamento norte-americano na região ocorre em um cenário mais complexo do que em ciclos anteriores. A presença chinesa no comércio, no financiamento e na infraestrutura, bem como a atuação russa e de outros atores extra-regionais, amplia as margens de escolha dos países latino-americanos e eleva os custos de uma dominação incontestada. Essa pluralização de vínculos não elimina a assimetria de poder, mas introduz fricções que tornam a gestão hegemônica mais instável e mais propensa ao uso de instrumentos coercitivos.


A América Latina emerge, assim, como o espaço onde se decide não apenas o futuro da influência norte-americana, mas o próprio formato da transição do sistema internacional. A intensificação das pressões sobre o continente não é sinal de força absoluta, mas de uma necessidade crescente de controle. Em um mundo em transformação, a região deixa de ser cenário secundário e passa a ocupar o centro de uma disputa que definirá os contornos da ordem global nas próximas décadas.

Conclusão — Um mundo em transição e as escolhas do Sul Global



O debate sobre o fim ou a estabilização da guerra na Ucrânia tende a ser conduzido como se estivesse em jogo apenas o retorno a uma normalidade perdida. Essa leitura é enganosa. O que se encerra, se de fato se encerrar, não é um ciclo de crise, mas uma de suas fases. As estruturas reorganizadas pela guerra permanecem ativas, os interesses que dela se beneficiaram continuam operando e os deslocamentos geopolíticos que ela acelerou não serão revertidos por um acordo pontual. O sistema internacional não caminha para a pacificação, mas para uma redistribuição assimétrica das tensões.


Nesse cenário, o projeto dos Estados Unidos revela sua lógica fundamental. Diante da impossibilidade de sustentar uma hegemonia baseada na expansão contínua e no consenso liberal, Washington passa a operar pela gestão da instabilidade, pela monetização das dependências e pela redefinição de zonas vitais. A Europa assume o papel de espaço militarizado e disciplinado, arcando com custos crescentes sem controlar plenamente os meios ou os fins do processo. A Rússia é contida em um equilíbrio precário que limita seu desenvolvimento e a mantém como ameaça funcional. E a América Latina ressurge como território decisivo, não por acaso, mas por sua centralidade material na reprodução do poder global.


Para o Sul Global, esse rearranjo impõe dilemas inescapáveis. A neutralidade, frequentemente invocada como estratégia prudente, revela-se cada vez mais ilusória em um sistema que reorganiza hierarquias por meio da coerção indireta e da captura estrutural. Estados que não formulam projetos próprios tendem a ser absorvidos como peças de engrenagens alheias, ajustando suas políticas internas às necessidades externas. A transição em curso não penaliza apenas a fragilidade; ela pune a ausência de estratégia.


Ao mesmo tempo, a própria transição abre brechas. A multiplicação de atores, a fragmentação das cadeias globais e o desgaste do unilateralismo criam espaços para iniciativas soberanas, cooperação Sul-Sul e construção de capacidades autônomas. Essas possibilidades, no entanto, não se realizam espontaneamente. Exigem leitura correta do momento histórico, coordenação política e disposição para enfrentar custos de curto prazo em nome de autonomia de longo prazo. Sem isso, a diversificação de vínculos corre o risco de se transformar em mera sobreposição de dependências.


O mundo que emerge da guerra europeia não será definido apenas pelas grandes potências, mas pela forma como as regiões historicamente subordinadas responderão à reorganização do poder. Para a América Latina e para o Sul Global como um todo, o desafio não é escolher entre blocos, mas decidir se permanecerão como territórios de ajuste de um sistema em crise ou se conseguirão afirmar projetos próprios em meio à transição. Em um sistema internacional que muda de forma, mas não abdica da hierarquia, compreender o projeto em curso deixou de ser exercício analítico. Tornou-se condição para não ser novamente organizado por ele.


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