O verdes abutres da colina
- Sara Goes
- há 29 minutos
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No romance de José Alcides Pinto, os abutres esperam o colapso. Na política brasileira, também. Uma análise sobre oportunismo, ruído e a fabricação da traição

Publicado na década de 1970, Os verdes abutres da colina é um romance do escritor cearense José Alcides Pinto, marcado por forte densidade simbólica e crítica social. Ambientada no sertão, a obra se passa na aldeia fictícia de Alto dos Angicos, um território assolado pela miséria, pela violência cotidiana e por uma ordem social rigidamente autoritária.
No centro dessa estrutura está o coronel Antônio José Nunes, senhor absoluto das terras e das vidas, cuja autoridade não se sustenta apenas pela força física, mas por um sistema de medo, superstição, religião instrumentalizada e resignação coletiva. A violência contra mulheres, a naturalização da morte e a exploração extrema compõem o pano de fundo de uma comunidade em que o abuso não é exceção, mas regra.
Ao redor dessa engrenagem de poder, circulam figuras que não governam diretamente, mas observam. Entre elas, os verdes abutres da colina, aves que sobrevoam a aldeia como metáfora permanente da decomposição social. Eles não produzem a tragédia, não iniciam o massacre, não comandam o sistema. Apenas esperam. São pacientes, atentos, sempre prontos a se alimentar do colapso quando ele finalmente ocorre.
Na política brasileira, os verdes abutres são aquelas forças que vivem à espreita de qualquer oportunidade para atacar o governo que salvou o país do fascismo. Não importa sob que aparência se apresentem. Podem assumir a forma de analistas carismáticos, lideranças de tom messiânico ou operadores profissionais de indignações instantâneas, sempre prontos a lançar uma hashtag oportunista e a converter qualquer gesto em escândalo moral. Não são, necessariamente, os autores diretos do retrocesso, mas se alimentam do desgaste, do erro, da hesitação e, sobretudo, do ruído.
Essas forças não operam pela construção de alternativas nem pela disputa real de projeto político. Vivem da expectativa permanente de fracasso. Não disputam estratégia, aguardam o momento em que um movimento tático, uma negociação procedimental ou uma decisão defensiva possa ser enquadrada como traição. Assim como no romance de José Alcides Pinto, sua força não está na ação direta, mas na capacidade de reconhecer a decomposição antes que ela se torne visível e de amplificá-la quando surge.
Quando essa lógica encontra grandes aparelhos de poder, ela deixa de ser oportunismo difuso e assume contornos estruturais. A Globo, nesse sentido, não opera por insinuação: age de forma direta. Durante anos, ajudou a construir Sérgio Moro como herói nacional e encontrou, nesse processo, a convergência silenciosa de setores que se diziam críticos ao sistema. O mesmo alinhamento reaparece agora no silêncio diante de seu desmascaramento factual. Não se trata de coincidência, mas de interesse.
Os verdes abutres também operam sobre emoções ainda quentes. Quem esteve nas ruas há poucos dias carrega no corpo a tensão do enfrentamento e a expectativa de coerência absoluta. É exatamente aí que eles atuam. Em vez de reflexão, estimulam reação. Em vez de mediação, produzem suspeita. Convertem energia coletiva em ansiedade moral e redirecionam a indignação para o desgaste interno, no momento em que ela deveria virar estratégia política.
É desse ecossistema que os verdes abutres se alimentam. Não precisam liderar ataques nem formular projetos. Basta esperar. Esperar o desgaste, a falha, a ambiguidade conveniente. O colapso, para eles, nunca é uma tragédia política. É uma oportunidade.
Nesse ambiente, o debate sobre a dosimetria deixa de ser apenas uma discussão legislativa e passa a funcionar como pretexto. A crítica ao projeto é legítima. A dosimetria representa, sim, um passo atrás na já tardia responsabilização dos crimes contra a democracia e ameaça tensionar o frágil encerramento do período de transição. Mas o que se observa é algo além disso: a transformação de um acordo de procedimento em prova de traição, sem qualquer fato concreto que sustente essa acusação.
A distinção elementar entre acordo de mérito e acordo procedimental é apagada deliberadamente. Permitir que um projeto avance na pauta, mantendo voto contrário, passa a ser tratado como capitulação política. O risco inerente à governabilidade em um Congresso hostil é convertido em narrativa de rendição moral. O gesto substitui a prova. A suspeita substitui a análise.
É exatamente desse clima que os verdes abutres se alimentam. Quanto maior a histeria, maior a carniça simbólica disponível. A crítica deixa de operar como instrumento de vigilância democrática e passa a funcionar como mecanismo de desgaste contínuo. Não se cobra estratégia. Cobra-se pureza absoluta. Não se analisa correlação de forças. Exige se heroísmo permanente. A política real é tratada como desvio ético.
O resultado é perverso. Um governo que derrotou o fascismo nas urnas passa a ser atacado não apenas pela oposição tradicional, mas por um cerco oportunista que atua como se a democracia estivesse sempre à beira da traição final. Qualquer cálculo vira conspiração. Qualquer decisão vira suspeita. E, assim, os abutres não precisam atacar diretamente. Basta esperar que o desgaste se produza por dentro.
Em Os verdes abutres da colina, a tragédia se consolida porque a desconfiança passa a organizar a vida coletiva mais do que a ação transformadora. No presente, insistir na fabricação da traição sem prova, especialmente em torno de um tema sensível como a dosimetria, não fortalece a democracia. Apenas cria o ambiente ideal para que aqueles que sempre esperam pelo colapso possam, mais uma vez, se alimentar dele.




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