top of page

Quando o jornalismo progressista vira espetáculo

  • Foto do escritor: Rey Aragon
    Rey Aragon
  • há 2 horas
  • 6 min de leitura

Do grito ao sensacionalismo, a imprensa progressista corre o risco de repetir os vícios que combate na mídia corporativa.


O jornalismo progressista nasceu para formar consciência crítica e disputar corações e mentes de forma estratégica. Mas parte dele tem deslizado para o espetáculo barato, tratando o público como plateia infantilizada e transformando informação em show. Essa vulgarização não fortalece a luta — enfraquece. É hora de refletir sobre que tipo de jornalismo queremos: estratégico, didático e emancipador, ou uma cópia mal disfarçada da lógica do coach e da mídia mainstream.

O espetáculo como armadilha



Há algo de profundamente errado quando o jornalismo que se diz progressista começa a ecoar os mesmos trejeitos dos coaches de autoajuda e dos palcos corporativos da motivação. Gritos, slogans, teatralidade, verborragia: tudo isso pode até gerar engajamento imediato, mas não produz pensamento crítico. O que deveria ser trincheira de formação e consciência se converte em show barato, embalado pela lógica da economia da atenção.


A ironia é que, em nome da “modernidade” e da “interatividade”, parte do jornalismo de esquerda passa a imitar justamente o que sempre criticou na mídia corporativa: a transformação da informação em espetáculo. Walter Lippmann, no início do século XX, já defendia um jornalismo moldado para ensinar o povo a pensar de acordo com a visão das elites — uma estética da manipulação travestida de pedagogia. Quando setores progressistas incorporam esse molde, ainda que de forma inconsciente, caem na mesma armadilha.


A esquerda não precisa de gurus midiáticos para dizer ao público como deve sentir ou reagir. Precisa de um jornalismo que reconheça no leitor um sujeito pensante, crítico, capaz de compreender a complexidade de seu tempo. A infantilização, travestida de linguagem acessível, é apenas uma forma sofisticada de desrespeito. E, no campo progressista, essa postura é ainda mais grave: ela não só enfraquece a luta, como banaliza a própria ideia de jornalismo como instrumento estratégico de emancipação.

Entre Lippmann e Gramsci: manipulação ou formação crítica



Walter Lippmann, considerado por muitos o pai do jornalismo moderno nos Estados Unidos, defendia que a função da imprensa era modular a forma como o povo pensa, moldando a opinião pública conforme os interesses das elites. Em seu olhar elitista, o cidadão comum não teria capacidade de compreender a complexidade do mundo e, portanto, deveria ser conduzido por uma imprensa “responsável” — responsável, claro, perante os donos do poder. Essa lógica abriu caminho para o jornalismo neoliberal, que reduz a informação a uma ferramenta de manipulação das massas.


No extremo oposto, Antonio Gramsci enxergava a comunicação como terreno estratégico da disputa política. Para ele, a batalha por corações e mentes não se fazia pelo sensacionalismo, mas pela formação crítica e pela pedagogia revolucionária. O jornalismo, nessa visão, deveria ser didático sem ser paternalista, acessível sem ser vulgar, pedagógico sem ser dogmático. Gramsci sabia que a consciência de classe não nasce do grito ou da espetacularização, mas da construção paciente de uma cultura política.


Quando setores da imprensa progressista abandonam esse horizonte gramsciano e, em busca de audiência, deslizam para a estética do espetáculo lippmanniano, não apenas perdem sua função estratégica: tornam-se caricaturas de si mesmos. É nesse ponto que a esquerda corre o risco de se infantilizar, tratando sua própria base como incapaz de pensar por conta própria. O resultado é perverso: a lógica neoliberal da atenção se infiltra no campo progressista, transformando trincheiras em palcos e militância em espetáculo.

O personalismo como caricatura



O jornalismo progressista, quando reduzido ao personalismo, deixa de ser ferramenta coletiva e se torna extensão do ego de quem o conduz. A figura do jornalista ou comunicador se converte em marca, em guru, em protagonista absoluto, e o conteúdo passa a gravitar em torno de sua performance e de seu carisma. Não se trata mais de informar e formar, mas de encantar e capturar.


Esse personalismo é a negação da política como construção coletiva. No lugar da pluralidade de vozes e da crítica emancipadora, ergue-se uma narrativa centralizada, muitas vezes revestida de falsa humildade, mas profundamente enraizada na lógica da autopromoção. A estética do coach, importada da cultura corporativa, é a forma mais acabada dessa lógica: slogans simplistas, tom professoral, a ilusão de que há um “caminho certo” revelado pelo mestre que fala mais alto do que todos.


O problema não é apenas estético. É estratégico. Porque, ao transformar o jornalismo em culto da personalidade, abandona-se o terreno da disputa de ideias para entrar no espetáculo da idolatria. E idolatria não emancipa — infantiliza. A esquerda, quando cai nessa armadilha, perde aquilo que a diferencia: a capacidade de reconhecer em sua base uma massa crítica, criativa, pensante. O personalismo converte militantes em seguidores, e a informação em produto de consumo.

A ilusão da independência



Muito se repete, no campo progressista, a narrativa de que certos projetos jornalísticos são “livres” porque não dependem das grandes corporações ou das big techs. Essa autoproclamação de independência, porém, frequentemente esconde uma realidade incômoda: a transformação da informação em produto de consumo, sustentado por uma lógica de mercado travestida de engajamento político.


A retórica da liberdade financeira se torna uma vitrine conveniente. Por trás dela, constroem-se impérios de arrecadação que movimentam somas expressivas de dinheiro, vendendo sonhos de transformação e ilusões de formação crítica. Critica-se a dependência de anúncios estatais ou de pequenas doações que mantêm vivos núcleos combativos e precarizados, mas naturaliza-se a ideia de que a “verdadeira independência” nasce de um fluxo contínuo de capital privado vindo da própria base militante.


O problema é que esse modelo, longe de representar autonomia, apenas recria as lógicas de exploração que a esquerda deveria enfrentar. Não é a publicidade que vulgariza o jornalismo, mas o uso da própria militância como mercado cativo, como massa de consumidores de conteúdo embalado em estética de espetáculo. A falsa independência é, portanto, apenas outra forma de dependência: dependência da atenção, do engajamento imediato e da teatralização constante que mantém a máquina girando.

O preço da vulgarização



As consequências desse modelo não são superficiais. Quando o jornalismo progressista se rende ao espetáculo, não apenas enfraquece sua própria credibilidade, mas também desarma as trincheiras da luta política e cultural. O que deveria ser formação crítica se dilui em slogans de consumo rápido; o que deveria ser pedagogia revolucionária se reduz a entretenimento; o que deveria ser consciência de classe se converte em catarse coletiva de curto prazo.


Esse processo gera três efeitos perversos. Primeiro, a desqualificação do público, tratado como incapaz de compreender a complexidade de sua própria realidade. Segundo, a banalização da luta, transformada em show, em performance que serve mais ao prestígio pessoal do comunicador do que à construção coletiva. Terceiro, a corrosão da confiança, pois o público percebe — mesmo que de forma difusa — quando a informação não emancipa, mas manipula.


O resultado é devastador: em vez de fortalecer o campo progressista diante do avanço global da extrema-direita, esse jornalismo espetacularizado o fragiliza. Ele cria ilusões de mobilização, mas não constrói poder real. Produz engajamento ruidoso, mas não sedimenta consciência crítica. E na guerra híbrida em que vivemos, onde a disputa por corações e mentes é a essência da batalha, esse erro não é apenas estético — é estratégico.

Pela construção do jornalismo estratégico



O jornalismo progressista não nasceu para competir com a mídia corporativa em termos de espetáculo. Nasceu para ser contraponto, para oferecer profundidade onde há superficialidade, consciência onde há alienação, estratégia onde há distração. O seu papel não é infantilizar, mas convocar; não é entreter, mas formar; não é vender ilusões, mas revelar estruturas.


Se a esquerda quiser estar à altura dos desafios deste século — da ascensão da extrema-direita global à guerra híbrida que corrói democracias — precisa abandonar o vício do sensacionalismo e resgatar a seriedade estratégica da comunicação. Isso não significa rigidez ou aridez, mas sim didatismo sem paternalismo, visceralidade sem vulgarização, paixão sem espetáculo.


Um jornalismo progressista que trate o público como massa pensante e crítica é o verdadeiro antídoto contra a lógica neoliberal da atenção. É esse jornalismo, ético e emancipador, que pode cumprir o papel de trincheira na disputa por corações e mentes — não o espetáculo travestido de revolução.


O alerta é claro: o espetáculo pode até produzir aplausos imediatos, mas não constrói história. O que constrói é a lucidez, a responsabilidade e a coragem de falar com o povo como sujeito, nunca como plateia. O jornalismo progressista só será revolucionário se for capaz de recusar a tentação do palco e assumir o compromisso da consciência.

Comentários


pin-COMENTE.png
mantenha-se atualizado

Obrigado pelo envio!

  • linktree logo icon
  • Ícone do Instagram Branco
  • x logo
  • bluesky logo icon
  • Spotify
  • Ícone do Youtube Branco
  • linktree logo icon
  • x logo
  • bluesky logo icon
bottom of page