Ceará na encruzilhada digital: entre a soberania e o fantasma do retrocesso
- Sara Goes
- há 3 dias
- 8 min de leitura
O Ceará se tornou peça central da disputa pela soberania digital no Brasil. Entre cabos submarinos, data centers e projetos de inteligência artificial, o estado busca transformar infraestrutura em autonomia, mas enfrenta dilemas ambientais, sociais e políticos que revelam uma ansiedade desenvolvimentista marcada pela incerteza de 2026

Há um verso, entoado pela voz profética de Belchior, mas nascido da genialidade do repentista paraibano Zé Limeira, o "Poeta do Absurdo", que parece ter sido escrito para o Ceará de hoje: "Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro". A frase, um hino de teimosia e ressurreição, encapsula o espírito de um estado que se levanta para reescrever seu destino em bytes e megawatts.
Fortaleza pulsa em uma frequência diferente. Na Praia do Futuro, um hub geográfico natural, aportam hoje 18 cabos submarinos de fibra óptica. É neste solo féil para dados que o Ceará edifica seu sonho, materializado em projetos bilionários. Empresas como a V.tal (com seu projeto "Mega Lobster"), Scala Data Centers e Angola Cables expandem suas estruturas, mas é o colossal projeto da Casa dos Ventos em Caucaia, com investimentos que podem alcançar R$ 50 bilhões, que dimensiona a ambição cearense. Por trás do brilho desses investimentos, no entanto, vibra uma ansiedade profunda, a urgência de um povo que corre contra o tempo para curar as cicatrizes de um atraso histórico e blindar seu futuro.
Essa ânsia, que poderíamos chamar de "ansiedade desenvolvimentista", não é um capricho. O Ceará de hoje, sob a liderança do governador Elmano de Freitas e em sintonia com o projeto do presidente Lula, não busca apenas participar da nova economia; ele busca reescrever a história, usando suas vantagens competitivas como ferramentas de redenção econômica.
A "ansiedade desenvolvimentista", termo que proponho aqui de forma intuitiva, busca sintetizar a atmosfera de urgência bem-intencionada que move os projetos progressistas no Nordeste. Ela se alimenta da herança de um pensamento crítico sobre o Brasil, como o de Celso Furtado, que apontou a necessidade imperativa de romper os ciclos de subdesenvolvimento. Ao mesmo tempo, é uma ansiedade nascida da consciência, central na Teoria da Dependência, de que o avanço na periferia do capitalismo é sempre precário e pode ser desfeito pela conjuntura política. Trata-se, portanto, da tensão de quem corre para construir o futuro com o temor de que a soberania digital se converta em um novo tipo de extrativismo e de que o fantasma do retrocesso, sempre à espreita, coloque tudo a perder.

A soberania além do hardware
A aposta cearense parte de uma premissa estratégica: soberania informacional é a chave, pois não basta ser território de passagem de cabos e armazém de dados das gigantes globais. O desafio é transformar infraestrutura em inteligência e conectividade em autonomia, uma visão materializada em movimentos concretos.
O pilar dessa estratégia é a "IA Cearense", projeto fruto da colaboração entre a Empresa de Tecnologia da Informação (ETICE) e a Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). A meta é desenvolver, num prazo de 24 meses, um modelo de linguagem (LLM) proprietário que seja treinado com dados locais e capaz de compreender o "linguajar popular" da região. Essa ambição não parte do zero, mas se apoia em sucessos já consolidados, como as premiadas aplicações de IA na Secretaria da Fazenda (Sefaz-CE) e no Tribunal de Justiça (TJCE), que revelam uma forte capacidade de inovação orgânica, "de baixo para cima".
No campo político, a estratégia é amparada pelo Projeto de Indicação 259/25, de autoria da deputada Larissa Gaspar (PT), proposta já mencionada neste site. A iniciativa visa criar um mercado protegido através da Política Estadual de Soberania Digital, para que o investimento público fomente o ecossistema local em vez de corporações estrangeiras. É aqui, no entanto, que a aposta na autonomia revela sua maior fragilidade: o avanço prático da "IA Cearense" depende da liberação de verbas da FINEP, uma agência federal. Tal dependência vincula o cronograma da soberania cearense diretamente às prioridades e à estabilidade política de Brasília.
A engrenagem se completa com o investimento em capital humano, fortalecendo a UFC e o IFCE como celeiros de talentos em ciência de dados e cibersegurança. O Parque Tecnológico (PARTEC) funciona como o elo entre a academia e o mercado, buscando criar um ciclo virtuoso.
O que está em jogo não é apenas o crescimento de um setor econômico, mas a possibilidade de o Ceará ser protagonista em uma nova etapa civilizatória. O domínio da inteligência, da ciência de dados e da inovação digital deixa de ser privilégio das grandes economias e passa a ser um campo de soberania compartilhada. É esse salto que diferencia a dependência periférica da autonomia estratégica, e que pode garantir ao Ceará não apenas um lugar na economia global, mas a capacidade de desenhar seu próprio futuro.
Os perigos e as narrativas no paraíso digital

Contudo, a velocidade dessa expansão acende luzes de alerta. O caminho do desenvolvimento é um fio de navalha.
De um lado, a pegada ambiental. O projeto da Casa dos Ventos tem uma demanda energética estimada equivalente à de uma cidade de 2,2 milhões de habitantes. Em resposta à pressão sobre os recursos hídricos, o projeto de lei 316/2025 começou a tramitar na Assembleia Legislativa em junho de 2025 para criar uma regulação específica.
De outro, e mais delicado, a pegada social. A recente homologação de três terras indígenas no Ceará – Pitaguary (em Maracanaú e Pacatuba), Lagoa Encantada (do povo Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz) e Tremembé de Queimadas (em Acaraú) – ocorre em um momento de franca expansão do estado como um polo de tecnologia. Esse avanço simultâneo levanta questões críticas sobre a intersecção entre a garantia dos territórios tradicionais e a implantação de grandes infraestruturas como hubs de inovação e data centers.
O epicentro dessa tensão está em Caucaia, onde o avanço da infraestrutura encontra uma dívida histórica com o povo indígena Anacé. O conflito escalou em agosto de 2025, quando lideranças ocuparam a sede da SEMACE (Superintendência Estadual do Meio Ambiente) exigindo a suspensão do licenciamento e a consulta prévia, livre e informada, direito garantido pela Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário.
É aqui que a disputa ultrapassa as fronteiras do Ceará. A questão, justa e urgente, tem sido amplamente abordada por veículos de comunicação sudestina. Contudo, para muitos observadores locais e agentes políticos cearenses, essa cobertura, embora necessária, não raro vem embebida de um sentimento de "salvador branco". A narrativa construída é, por vezes, a de um Sudeste esclarecido "descobrindo" e "salvando" os povos originários de um Nordeste predatório. Essa abordagem ignora ou minimiza a complexidade interna do debate, a existência de uma Secretaria dos Povos Indígenas no Ceará e a própria capacidade de agência e luta política do povo Anacé, podendo instrumentalizar a legítima causa indígena para reforçar velhos estereótipos regionais.
Soma-se a isso a estratégia do assédio digital e político, uma forma de colonização digital orquestrada pela extrema direita em aliança com as big techs para, como definido em sua análise, "domesticar a rebeldia nordestina". Essa não é uma reação espontânea, mas uma operação contínua que combina a manipulação de algoritmos para disseminar desinformação, com ações em terra, como a "Rota 22" do PL, que visam criar uma percepção de força e enfraquecer a resistência local. Nesse xadrez, a própria instalação dos data centers é ressignificada: a infraestrutura que promete soberania pode, paradoxalmente, servir de base para a extração de recursos e o controle de dados por interesses que veem a região como um "hospedeiro útil, mas descartável". A luta pela soberania digital, portanto, se revela uma luta decolonial contra um projeto que busca subjugar o Nordeste política e digitalmente.
A Sombra de 2026

Os anúncios do presidente Lula no Ceará obedecem a uma ordem quase litúrgica: primeiro, os aliados vestidos invariavelmente com camisas de linho branco que até o mês passado lá no campo ainda era flor, escutam emocionados a lembrança das décadas de abandono, do lapso de dignidade econômica e da sabotagem persistente contra o estado. Sob o impacto doloroso da memória, a estrada do desenvolvimento, pavimentada com os ônus ambientais e humanos, é apresentada ao público, que ao recebe como cura a promessa redentora de persistência, a garantia de que, mesmo diante dos fantasmas do passado, o Ceará seguirá em pé. É lindo.
Mas o desenvolvimento, ao contrário da retórica oficial, não é para todos. A prova está no ranking da Forbes: em 2025, o Ceará mais que dobrou o número de bilionários, saltando de 9 para 19 nomes. No topo aparece Mário Araripe, fundador da Casa dos Ventos, com R$ 18,1 bilhões acumulados, justamente a empresa responsável pelo megaprojeto de data center em Caucaia, que avança sobre territórios reivindicados pelo povo Anacé e enfrenta resistência indígena. A lista inclui ainda magnatas da saúde privada, da indústria alimentícia, da educação e das telecomunicações, como a Brisanet. Enquanto a fortuna de poucos se multiplica em cifras colossais, o acesso à água pode vir a ser disputado entre o consumo popular e a voracidade energética e hídrica dos data centers, a desigualdade tende a se perpetuar e os empregos prometidos podem ser em número reduzido e exigir alta qualificação, o que restringe o alcance da renda gerada. A geografia da riqueza cearense, portanto, ilumina um paradoxo incômodo: quem mais lucra com a corrida digital e energética não é necessariamente quem mais precisa dela.
É impossível dissociar a arrancada cearense do alinhamento político com o governo federal. A memória do que se passou após o impeachment de 2016, quando projetos estruturantes foram paralisados, e dos anos em que Bolsonaro não apenas negligenciou a região mas ameaçava publicamente governadores nordestinos, ainda pesa como advertência. Esse passado recente alimenta a percepção de que nada está garantido, de que 2026 é mais que uma eleição, é a incógnita que paira sobre cada investimento, cada assinatura de contrato e cada promessa de futuro.
A ansiedade desenvolvimentista do Ceará nasce desse paradoxo. De um lado, a convicção de ter encontrado um caminho sólido, sustentado por conectividade, energia limpa e inovação. De outro, a consciência de que a estrada é longa, sinuosa e pode ser bloqueada pela correlação de forças políticas nacionais e pela voracidade de interesses externos. O projeto cearense, apoiado por Elmano e articulado com Lula, não se fia no acaso nem no estigma de ser um sujeito de sorte. Ele se constrói como aposta deliberada na inteligência, na sustentabilidade e na inclusão social, tentando não apenas reduzir desigualdades históricas mas também enfrentar a disputa simbólica que define o Brasil contemporâneo, onde narrativas, algoritmos e pressões geopolíticas são tão decisivas quanto portos, rodovias e linhas de transmissão.
É delicado tecer críticas a um projeto que foi construído e sonhado por todos aqueles que defenderam a democracia no Ceará, erguendo com as próprias mãos muros de contenção contra o fascismo enquanto limpavam o litoral tomado por óleo com a força bruta do corpo. Essa delicadeza consiste em não confundir a crítica com oposição moralista nem com o desejo caricato de um salvador branco, típico de certas publicações sudestinas que apontam o dedo para os datacenters do Ceará e denunciam o assédio a comunidades indígenas com um subtexto que parece mais ofendido pela ousadia de um estado nordestino buscar desenvolvimento do que pelas contradições concretas que esse processo envolve. As críticas, nesse contexto, expressam a necessidade de compreender as tensões reais que atravessam esse caminho, para que o desenvolvimento não se converta em nova forma de injustiça ou em revanche simbólica contra a própria história.
É nesse cruzamento de vulnerabilidade e esperança, do jornalismo e gestores, que se forja a atual encruzilhada do Ceará. O esforço é erguer um projeto de futuro capaz de resistir às intempéries da política nacional e às investidas da guerra híbrida contra o protagonismo nordestino. Mais que crescimento econômico, trata-se de uma tentativa de afirmar soberania, de inscrever o estado como ator central em uma nova geografia de poder. Encarnar, em sua forma mais radical e concreta, a profecia absurda de Zé Limeira: ano passado o Ceará pode ter morrido, mas este ano ele não morre.
Comentários