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Caribe em Chamas: Como o Terrorismo Marítimo e o Tarifaço dos EUA Miram o Brasil e a Multipolaridade

  • Foto do escritor: Rey Aragon
    Rey Aragon
  • há 11 minutos
  • 18 min de leitura

A escalada no Caribe — do “terrorismo marítimo” às tarifas seletivas — marca a volta aberta da coerção norte-americana na região e testa a capacidade do Brasil de defender sua soberania e a zona de paz latino-caribenha.


A combinação explosiva entre o alarme de “regime change” em Cuba, o memorando jurídico que amplia o conceito de terrorismo para enquadrar embates marítimos, a resistência bolivariana sitiada na Venezuela, o tarifaço seletivo contra o Brasil e o posicionamento firme de Lula na multipolaridade revela um novo tabuleiro: o Caribe se tornou o laboratório avançado da guerra híbrida dos EUA. O comércio virou coleira política, a categoria “terrorismo” passou a caber em qualquer disputa, e a América do Sul enfrenta o maior teste de soberania desde o fim da Guerra Fria.

A nova doutrina de coerção dos EUA: terrorismo, comércio e contenção multipolar



A política externa dos Estados Unidos para o Caribe e para a América Latina entrou em uma nova fase, mais explícita e menos constrangida do que no pós-Guerra Fria. A principal inflexão não está num gesto isolado, mas na combinação inédita entre três ferramentas que agora operam em sincronia: a expansão do conceito jurídico de terrorismo para justificar ações extraterritoriais; o uso estratégico do comércio como mecanismo de punição política; e a instrumentalização da narrativa de “segurança regional” para conter iniciativas multipolares, especialmente quando associadas ao Brasil de Lula e ao eixo China–Rússia. O resultado é uma espécie de doutrina híbrida que reconcilia antigas práticas de regime change com instrumentos modernos de guerra econômica e informacional.


A ampliação artificial do conceito de terrorismo — que desde o pós-11/9 é uma obsessão normativo-discursiva dos EUA — funciona como chave universal capaz de abrir portas jurídicas para quase tudo: intervenção, sanção, bloqueio, restrição de vistos, congelamento de bens, enquadramento de embarcações e jurisdição extraterritorial. Essa elasticidade, que durante duas décadas se expandiu para o Oriente Médio, agora começa a ser aplicada com ênfase renovada no Caribe. O memorando jurídico que serviu de base para a tese de “terrorismo marítimo”, usado recentemente para justificar respostas agressivas contra embarcações, é mais do que um parecer técnico: é uma carta branca para converter qualquer incidente local em ameaça global. No tabuleiro estratégico, isso significa que fronteiras soberanas podem ser reinterpretadas conforme a conveniência de Washington.


Em paralelo, o comércio deixou definitivamente de ser um instrumento neutro de interdependência econômica e passou a operar como coleira política. As tarifas seletivas impostas ao Brasil são o exemplo mais recente de uma tática que combina “aviso” e coerção: punem o desalinhamento, testam a resiliência diplomática e tentam forçar o país a abandonar agendas multipolares. É o retorno da lógica do “ou está conosco, ou está contra nós”, agora repaginada em um contexto de competição tecnológica e disputa por cadeias de valor. E, diferentemente das intervenções militares clássicas do século XX, essa modalidade de coerção é mais limpa, mais silenciosa e mais eficaz no curto prazo — porque visa diretamente setores produtivos, investidores e fluxos de exportação, produzindo inquietação interna sem disparar um único tiro.


Tudo isso converge para um objetivo central: impedir que o Caribe e a América do Sul se tornem uma zona de influência multipolar capaz de desafiar a hegemonia dos EUA. A ascensão diplomática de Lula, o fortalecimento do BRICS ampliado, a penetração da China em infraestrutura e tecnologia, e a construção de agendas energéticas independentes criaram uma janela inédita de autonomia continental. A resposta dos EUA foi rápida: enquadramento econômico, reativação de narrativas de ameaça regional, aproximação seletiva com governos alinhados e ampliação do aparato jurídico que permite ações punitivas. A linguagem é nova, mas a lógica é velha — a contenção, que antes se expressava em golpes e intervenções militares, agora se manifesta em documentos jurídicos, tarifas cirúrgicas, doutrina de segurança inflada e lawfare transnacional.


Essa nova doutrina híbrida opera num limiar perigoso: ao mesmo tempo em que evita mecanismos tradicionais de intervenção direta, cria condições estruturais para disciplinar governos, manipular percepções e interferir na autonomia regional. É um poder mais difuso, mais sofisticado e mais difícil de denunciar publicamente — justamente porque se apresenta travestido de “legalidade”, “segurança” e “proteção ao comércio internacional”. No fundo, porém, trata-se da continuidade da mesma estratégia histórica: a manutenção da ordem hemisférica sob supervisão norte-americana, agora reconfigurada para um mundo em disputa, onde multipolaridade deixou de ser hipótese e passou a ser realidade concreta.


Cuba como gatilho: o retorno explícito do regime change



O alarme soou no Caribe quando Cuba voltou a ocupar o centro da retórica de Washington. Não se trata apenas de mais um capítulo da longa história de hostilidades; o que está em curso é a reabilitação explícita do regime change como instrumento legítimo de política externa. O modo como os EUA voltaram a enquadrar a ilha — ora como foco de instabilidade regional, ora como epicentro de uma suposta ameaça “transnacional” — revela algo maior do que um ajuste discursivo: é a tentativa de reinstalar, em pleno século XXI, a lógica de substituição de governos sob o manto jurídico do combate ao terrorismo.


Cuba se torna, nesse tabuleiro, a válvula de teste. A ilha funciona como laboratório político onde Washington experimenta a nova engenharia de coerção que pretende aplicar de maneira escalonada na região. Se a narrativa pegar ali, se a opinião pública norte-americana aceitar o enquadramento da ilha como “Estado que patrocina ameaças”, se o aparato jurídico sobreviver ao escrutínio doméstico e internacional, então todo o Caribe estará pavimentado como zona de intervenção ampliada. É um ensaio geral — e, como em qualquer ensaio, há margem para calibrar discurso, medir reações e testar limites.


A escolha de Cuba não é aleatória. É simbólica e estratégica. Simbólica porque remete ao trauma persistente do establishment norte-americano: a única derrota geopolítica incontornável dos EUA no hemisfério ocidental permanece sendo a permanência de um governo revolucionário a 150 quilômetros da Flórida. Estratégica porque Cuba é articuladora diplomática no Caribe, tem redes históricas com a Venezuela e mantém aproximações com China e Rússia em áreas sensíveis como telecomunicações, segurança e energia. Atacar Cuba é atacar o elo mais emblemático da multipolaridade regional.


Ao recolocar a ilha no alvo, os EUA tentam reposicionar a América Latina no mapa mental da segurança nacional. O enquadramento recente da situação cubana como ameaça “regional” — em vez de bilateral — é uma jogada calculada: ativa automaticamente o sistema interamericano, pressiona governos caribenhos, dá munição para pedidos de sanção e permite criar “coalizões ad hoc” para isolar Havana. Em bom português: abre a porta para operações indiretas, lawfare transfronteiriço, pressões econômicas e campanhas de desinformação com a chancela de “responsabilidade coletiva”.


Esse movimento se articula com uma estratégia mais ampla: transformar o Caribe em zona de contenção antecipada. Se o Golfo Pérsico foi, durante décadas, o laboratório da guerra contraterrorista e o Leste Europeu se tornou o laboratório das guerras híbridas contra a Rússia, agora é o Caribe que assume o papel de plataforma de experimentação contra a China, contra a Rússia e contra qualquer país latino-americano que resolva escapar do raio gravitacional de Washington. Cuba é o gatilho porque é o símbolo, mas o alvo final é muito maior: é a arquitetura multipolar que começa a emergir com a aproximação entre América do Sul, Caribe e BRICS.


O ponto crítico é que tudo isso ocorre enquanto os EUA precisam recriar coerência ideológica interna. O país vive polarização extrema, desgaste institucional e perda de hegemonia internacional. Nessas condições, a doutrina de “ameaças externas” sempre reaparece como instrumento de unificação doméstica. Cuba serve, então, como inimigo conveniente para produzir um arco narrativo interno: disciplinar eleições, coesionar opinião pública, justificar gastos militares e criar sensação de vigilância permanente. É o velho expediente do inimigo externo, reciclado para a era dos algoritmos e da guerra informacional.


No final, o retorno do regime change no Caribe não é apenas sobre Cuba. É sobre a mensagem enviada ao continente: a de que qualquer país que tentar abrir caminhos alternativos — seja pela via da multipolaridade, seja pela via da soberania energética, seja pela via da integração regional — será enquadrado primeiro no discurso, depois no comércio, depois no direito. Cuba é o aviso; o Caribe é o laboratório; a América do Sul é o objetivo estratégico.

O memorando jurídico dos barcos e a expansão perigosa do “terrorismo marítimo”



O memorando jurídico que enquadrou o incidente entre embarcações no Caribe como possível “ato de terrorismo” não é apenas um documento técnico: é uma mudança silenciosa na arquitetura legal da região. Ele funciona como uma espécie de ferramenta expansiva que, ao reinterpretar conflitos marítimos locais como ameaças globais, concede aos Estados Unidos um poder de intervenção que ultrapassa fronteiras, jurisdições e tratados internacionais. É, na prática, a transformação de um atrito náutico em justificativa para ações extraterritoriais — incluindo sanções imediatas, retaliações militares calibradas e imposição de corredores de segurança sob controle norte-americano.


A novidade não está na retórica, mas na engenharia jurídica. Desde o 11 de Setembro, os EUA vêm substituindo noções clássicas de soberania por categorias maleáveis como “território operacional” ou “zona de risco ampliado”. O memorando atualiza essa lógica para o contexto caribenho: qualquer incidente marítimo potencialmente vinculado a atores estatais ou paraestatais pode ser classificado como terrorismo, o que automaticamente aciona mecanismos internos como a IEEPA (que permite confiscar bens e bloquear transações) e dispositivos executivos que autorizam ações imediatas sem aprovação do Congresso. Em outras palavras: cria-se um atalho legal para intervir, punir, cercar e disciplinar governos.


Esse movimento é especialmente perigoso porque cria um precedente de elasticidade jurídica em uma região marcada por disputas históricas de fronteiras marítimas, narcotráfico, pesca ilegal e circulação de pequenas frotas armadas. Qualquer choque entre embarcações — antes entendido como conflito de baixa intensidade, resolvido por arbitragem, diplomacia ou tribunais internacionais — pode ser reinterpretado como ameaça ao “sistema internacional de comércio”, permitindo que os EUA se apresentem como árbitros, quando não como polícia marítima de fato. É a militarização de áreas civis sob o pretexto de proteger rotas estratégicas.


No plano geopolítico, o memorando abre um flanco para ingerências sucessivas no Caribe. Se um incidente é rotulado como terrorismo, cria-se a impressão de que o problema não é local, mas sistêmico — e, portanto, requer resposta “hemisférica”. Essa construção narrativa é familiar: foi usada no Afeganistão, no Iraque, no Chifre da África e, mais recentemente, na disputa pelo mar da China Meridional. Agora, reaparece a um passo do Brasil, justamente na zona onde Havana, Caracas e Pequim têm ampliado sua presença logística e diplomática. O conceito de “terrorismo marítimo” não surge para proteger civis; surge para proteger corredores geopolíticos contra o avanço de atores rivais.


Há também o componente de guerra jurídica. A qualificação de atos como terrorismo — mesmo quando se trata de choques militares convencionais ou conflitos entre guardas costeiras — cria uma camada adicional de vulnerabilidade para governos da região. Processos podem ser abertos em cortes norte-americanas; empresas podem ter bens congelados; oficiais podem ser impedidos de viajar; transações bancárias podem ser bloqueadas. Tudo isso com base em um único documento interpretativo, não em tratados multilaterais. Trata-se, portanto, de um mecanismo de lawfare transnacional, capaz de asfixiar diplomaticamente um governo sem a necessidade de um único soldado estadunidense no território.


No campo informacional, o memorando serve como munição para narrativas de “ameaça emergente” — um rótulo capaz de moldar percepções, orientar editoriais, influenciar organismos multilaterais e pressionar governos latino-americanos a adotar posições alinhadas. A lógica é perversa: se a imprensa internacional compra a narrativa, governos regionais passam a ser cobrados por “decisão” ou “omissão” diante de um suposto risco aos fluxos marítimos. E o que antes era um incidente localizado se transforma em argumento para militarização, sanções e enquadramento político.


O ponto é que o memorando não é sobre barcos. É sobre jurisdição. É sobre quem define o que é terrorismo. É sobre quem controla as rotas. Ele cria um poder de exceção permanente no Caribe — um dispositivo jurídico pronto para ser acionado conforme a conveniência estratégica. E, quando somado à pressão tarifária sobre o Brasil e à reativação do regime change em Cuba, revela o contorno completo da nova doutrina norte-americana para a região: coerção jurídica, intimidação militar, guerra narrativa e disciplina econômica operando como partes de uma mesma engrenagem.

Venezuela: alvo permanente de guerra híbrida e instrumento narrativo dos EUA no Caribe



A Venezuela não é — e nunca foi — uma ameaça militar ou territorial aos Estados Unidos ou aos seus vizinhos latino-americanos. Toda a construção de Caracas como “perigo hemisférico”, “foco de instabilidade” ou “narcoestado” nasce dentro do aparelho de segurança norte-americano, especialmente do complexo DEA–DoJ–SOUTHCOM, que desde os anos 2000 opera uma campanha sistemática de deslegitimação contra qualquer governo bolivariano. Esse rótulo, repetido à exaustão por think tanks, editoriais e diplomatas alinhados ao eixo de Miami, não descreve a realidade venezuelana — descreve apenas a necessidade imperial de justificar pressão, sanções e isolamento.


O que existe, de fato, é o oposto: a Venezuela é alvo de uma das mais prolongadas e devastadoras ofensivas econômicas e diplomáticas do século XXI. As sanções unilaterais impostas pelos EUA — classificadas por especialistas da ONU como formas de “cerco econômico” — destruíram a capacidade produtiva do país, bloquearam receitas, afetaram importações básicas e dificultaram até operações financeiras elementares. Não é exagero chamar esse bloqueio de covardia estratégica: ataca não um governo, mas uma população inteira, como forma de tentativa de estrangulamento político. Essa agressão continuada explica muito mais da crise venezuelana do que qualquer narrativa de incompetência, corrupção ou fantasia narcoterrorista produzida em Washington.


O discurso norte-americano que tenta converter Caracas em ameaça existe por um motivo simples: a Venezuela representa um projeto de soberania que desafia a lógica de submissão hemisférica. Desde Chávez, o bolivarianismo tentou construir integração energética, autonomia diplomática e articulação regional — e isso sempre foi intolerável para a estratégia estadunidense no Caribe. A demonização de Maduro não é pessoal: é estrutural. Ela não mira o indivíduo, mas o que ele simboliza no projeto político venezuelano — a recusa a aceitar tutelas externas.


Nesse tabuleiro, a Venezuela funciona como peça instrumental da narrativa dos EUA. Washington precisa de um “inimigo próximo” para justificar operações militares, exercícios navais, expansão jurídica da noção de “terrorismo” e presença permanente no Caribe. Assim como Cuba serve de gatilho histórico, Caracas serve de pretexto contemporâneo. É a fabricação de uma ameaça para produzir consenso interno e legitimar coerção externa. O objetivo não é conter um perigo real — é expandir margem de manobra militar e diplomática em uma região estratégica onde China e Rússia avançam em comércio, energia e infraestrutura.


Ao contrário das caricaturas difundidas no Norte Global, a Venezuela não exporta instabilidade; ela resiste a uma ofensiva imperial. Não ameaça vizinhos; tenta sobreviver a um bloqueio que teria derrubado governos inteiros em outras partes do mundo. Não pratica agressão; é agredida continuamente por medidas unilaterais, sabotagens econômicas e ingerências políticas — de operações psicológicas a tentativas de golpes mal disfarçadas. E é justamente essa resistência que transforma Caracas em espinho na garganta da estratégia norte-americana.


No panorama maior traçado pelo artigo — Caribe militarizado, terrorismo marítimo inflado, comércio convertido em arma e pressão sobre o Brasil — a Venezuela ocupa um lugar funcional: é a justificativa pronta para os EUA transformarem exceção em norma. Maduro não ameaça os EUA; os EUA usam Maduro como ameaça fictícia para justificar sua própria presença. Não é Caracas que produz insegurança regional; é a narrativa sobre Caracas que habilita ingerência, vigilância e disciplinamento econômico no hemisfério.


Assim, a Venezuela aparece não como agente do caos, mas como um exemplo claro de como a guerra híbrida opera no século XXI: destrói economias, fabrica inimigos, manipula percepções e cria o ambiente ideal para ações unilaterais. E ao mesmo tempo, revela a assimetria brutal da disputa: enquanto a Venezuela resiste, os EUA ampliam o tabuleiro. É nesse contexto que o Brasil precisa compreender o Caribe, porque o mesmo mecanismo narrativo usado contra Havana e Caracas está sendo adaptado agora para enquadrar Brasília.


O tarifaço seletivo contra o Brasil: comércio como coleira política



As tarifas impostas pelos Estados Unidos ao Brasil — cirúrgicas, direcionadas e politicamente coreografadas — não são uma política comercial. São um recado. O comércio virou a forma mais eficiente de coerção do século XXI porque não exige tanques, não provoca comoção internacional e, sobretudo, não dispara alarmes imediatos de violação soberana. Funciona como uma coleira silenciosa: aperta sem dar a impressão de estrangular. E, quando aplicada de maneira seletiva, como no caso brasileiro, ela comunica duas mensagens distintas: disciplinamento e intimidação.


Disciplinamento porque pune o movimento do Brasil em direção a uma estratégia de autonomia tecnológica, energética e diplomática. Em 2025, o país passa a projetar uma agenda multipolar com peso real: está no BRICS ampliado, articula posições fortes sobre Palestina, defende regulamentação global de plataformas, negocia infraestrutura com a China e tenta reindustrializar setores estratégicos. Para Washington, tudo isso significa perda de influência em um país-chave do hemisfério, capaz de irradiar políticas independentes. As tarifas funcionam, assim, como tentativa de conter essa expansão: ao atingir setores com impacto interno imediato — aço, tecnologia, manufatura, agroexportação — os EUA pressionam para que a política externa brasileira volte ao trilho previsível do alinhamento.


Intimidação porque o tarifaço não afeta todos. Ele mira produtos e indústrias que têm capacidade de gerar ruído político doméstico. Mira governadores, mira empresários, mira cadeias produtivas essenciais. Mira justamente onde dói e produz reação interna. É coerção de dentro para fora: os EUA não tentam mudar diretamente a política externa brasileira, mas estimular pressões internas para que o país pareça “ingovernável” caso insista em sua agenda soberana. É a engenharia do desgaste: o objetivo não é derrubar Lula, mas dificultar sua capacidade de avançar.


O tarifaço também opera como mensagem para o continente. Como a nova doutrina de coerção norte-americana está sendo testada no Caribe, a punição ao Brasil serve de alerta para outros países que tentam ampliar sua autonomia — especialmente México, Colômbia e Argentina sob governos progressistas. Ao modular as tarifas, Washington mostra que pode premiar ou punir com precisão milimétrica, conforme a disposição de cada governo de se manter dentro das linhas aceitáveis do jogo geopolítico hemisférico. É a versão econômica da velha Doutrina Monroe, agora aplicada com algoritmos, rastreamento de cadeias de valor e lobby corporativo.


O movimento fica ainda mais nítido quando visto em conjunto com o memorando de “terrorismo marítimo” e com o retorno da retórica de regime change em Cuba. Trata-se de uma matriz comum: criar instabilidade calculada para justificar intervenção ampliada. No caso do comércio, a intervenção se dá sem armas, mas com impacto real na soberania. Tarifas não são apenas tarifas; são instrumentos de guerra econômica. Ao impor barreiras seletivas, os EUA não estão disputando mercado — estão disputando hegemonia sobre a política externa brasileira.


Há também outro elemento essencial: o tarifaço seleciona setores nos quais o Brasil vinha diversificando parcerias com China, Índia ou União Europeia. Ao atingir setores onde o país poderia ganhar independência tecnológica e industrial, Washington tenta bloquear alternativas. É como se dissesse: “soberania, só até onde permitirmos”. O comércio deixa de ser interdependência e passa a ser mecanismo de tutela.


Para completar, existe a camada psicológica: tarifas criam sensação de vulnerabilidade. Forçam governos a responder rapidamente, produzem impacto nas notícias, geram ansiedade em mercados e moldam expectativas negativas. Em um ambiente de guerra híbrida, expectativas são armas. O tarifaço funciona, assim, como ataque econômico e como operação psicológica. E a mensagem é clara: se o Brasil insistir em liderar uma alternativa multipolar na região, o custo será crescente.


Mas a questão central é outra: o tarifaço não é isolado. Ele faz parte de um tabuleiro em que Cuba é o gatilho, a Venezuela é o pretexto fabricado, o memorando marítimo é o dispositivo jurídico, e o Caribe é o laboratório. O Brasil, maior economia e maior democracia do hemisfério sul, é o destino final dessa engrenagem. O tarifaço é, portanto, mais do que uma punição — é um teste. Querem saber até onde o Brasil está disposto a sustentar sua autonomia.

A posição de Lula e a encruzilhada estratégica brasileira



O Brasil entrou em 2025 ocupando uma posição singular na geopolítica mundial: é simultaneamente um polo de estabilidade regional, um articulador diplomático global e o principal alvo indireto da nova doutrina de coerção dos Estados Unidos no hemisfério. Lula, com sua política externa altiva e ativa retomada em escala ampliada, tornou-se um obstáculo estratégico para Washington justamente porque opera em duas frentes que os EUA não conseguem controlar: a recomposição do multilateralismo e a defesa pública da soberania informacional e energética. É neste contexto que a pressão tarifária, o alarme no Caribe e o retorno do regime change precisam ser lidos: como parte de uma operação maior para testar os limites da autonomia brasileira.


A posição de Lula incomoda porque rompe a lógica binária que domina a política externa norte-americana. O Brasil não se submete, não confronta gratuitamente e não se isola. Faz movimentos independentes, constrói pontes, amplia alianças, defende a Palestina em fóruns internacionais, aproxima-se de China, Índia e África do Sul, negocia com a Europa e dialoga com os EUA quando necessário. Essa capacidade de navegar multiplicidades transforma Lula em ator multipolar antes mesmo da consolidação institucional do BRICS ampliado. Washington sabe: nenhum outro país do hemisfério tem capacidade de legitimar, sustentar e materializar um polo diplomático alternativo. Por isso, é o Brasil que precisa ser contido — não pela força militar, mas pelo custo político.


A encruzilhada brasileira se abre porque o país é forçado a gerenciar simultaneamente três pressões: a escalada jurídica no Caribe, o tarifaço seletivo e o jogo narrativo que tenta transformar a região em zona de risco. Lula sabe que qualquer passo em falso pode ser explorado pelos EUA como prova de incompetência, radicalismo ou isolamento. Ao mesmo tempo, sabe que recuar significaria enfraquecer não apenas sua política externa, mas o próprio projeto de autonomia que o Brasil constrói desde 2003 e que volta a ganhar tração após a reconstrução democrática pós-bolsonarismo.


O ponto mais delicado é que a coerção norte-americana tem alvo externo e interno. Externo porque tenta bloquear iniciativas estruturantes — como a liderança brasileira na regulação de plataformas, a proposta de zona de paz no Atlântico Sul, a articulação com África e Caribe e a defesa de uma governança global mais justa. Interno porque afeta setores produtivos estratégicos, cria ruído político, alimenta mídia adversária e estimula tensões econômicas capazes de corroer confiança. A operação é pensada para afetar a governabilidade, não apenas a diplomacia.


Lula responde com uma combinação rara: firmeza e prudência. Não recua da defesa do multipolarismo, mantém diálogo institucional com todos os polos globais e, ao mesmo tempo, evita escaladas retóricas que possam ser usadas como gatilho para novas punições. É uma estratégia sofisticada, porque protege o projeto político interno enquanto resguarda a autonomia externa. Ao defender a integração sul-americana, revitalizar a CELAC e buscar aproximação com o Caribe, o Brasil tenta transformar a região em amortecedor estratégico contra a doutrina de contenção dos EUA.


A encruzilhada é histórica porque Lula aposta em algo que nenhum outro líder do hemisfério tentou desde os anos 1970: transformar o Brasil em um ator capaz de definir regras, e não apenas obedecê-las. Isso exige um tripé complexo — estabilidade institucional, política externa ativa e coordenação regional — justamente o que o tarifaço e as narrativas de insegurança tentam fragilizar. O país está diante de um teste que vai além da economia: trata-se de medir até onde o Brasil consegue sustentar soberania enquanto mantém um modelo democrático vibrante e um projeto de desenvolvimento nacional.


O que está em jogo não é apenas a reação brasileira ao tarifaço, nem à pressão no Caribe. É a definição de qual papel o Brasil terá no mundo pós-unipolar. Se será um país disciplinado que opera dentro das expectativas de Washington ou um construtor de alternativas. Lula escolheu a segunda via — e o preço dessa escolha é justamente a encruzilhada que agora se coloca: manter a zona de paz latino-americana como princípio ativo ou permitir que ela seja corroída pelas engrenagens da coerção híbrida dos EUA.

Conclusão: o Caribe como centro do tabuleiro e a última fronteira da soberania



Tudo o que se viu nos últimos meses — o retorno explícito da lógica de regime change em Cuba, o memorando jurídico que transforma incidentes marítimos em “terrorismo”, a demonização sistemática da Venezuela, o tarifaço seletivo contra o Brasil e a disputa narrativa em torno da segurança regional — converge para uma única constatação: o Caribe se tornou o novo centro geopolítico do hemisfério. E não por acaso. É o ponto onde se cruzam as rotas energéticas, os corredores marítimos estratégicos, a presença diplomática da China, a projeção militar dos EUA e a tentativa do Brasil de articular uma zona de paz que não seja só uma frase de cúpula, mas uma política concreta de contenção da coerção norte-americana.


O Caribe virou laboratório porque reúne todos os elementos que compõem a nova doutrina híbrida de Washington: elasticidade jurídica, guerra informacional, pressão econômica e disciplinamento político. É ali que os EUA testam até onde podem expandir o conceito de terrorismo sem reação internacional; até onde podem transformar comércio em arma sem custo reputacional; até onde conseguem instrumentalizar tensões regionais para justificar presença militar; até onde conseguem isolar governos que ousam buscar autonomia. Cuba é o caso-modelo. Venezuela, o pretexto maleável. Brasil, o alvo estratégico. Nenhum desses movimentos é isolado — todos pertencem à mesma engrenagem.


O ponto crítico é que o uso expansivo da palavra “terrorismo” cria uma categoria de exceção permanente. Quando qualquer disputa marítima, protesto, atrito fronteiriço ou ação militar convencional pode ser reinterpretado como ameaça global, a soberania deixa de ser um princípio jurídico e passa a ser uma variável negociável. Essa é a ruptura central. O terrorismo, antes aplicado ao Oriente Médio, agora é moldado para caber no Caribe — e, com esse movimento, os EUA abrem uma porta que poderá ser usada contra qualquer país que busque rotas fora do alinhamento.


Ao mesmo tempo, transformar comércio em instrumento disciplinar corrói silenciosamente a autonomia dos países latino-americanos. Tarifas seletivas não são políticas de mercado; são mecanismos de condicionamento comportamental. Enviam sinais, moldam decisões, criam medos. Funcionam como pressão psicológica de alta precisão. O tarifaço contra o Brasil foi concebido não para proteger indústrias norte-americanas, mas para testar a resiliência do maior país da região e medir o quão longe Lula está disposto a ir no projeto multipolar.


Nesse ambiente, o Brasil enfrenta seu maior desafio diplomático desde a redemocratização: sustentar a promessa de que a América Latina é, sim, uma zona de paz — não como mantra, mas como linha vermelha real. Isso significa, na prática, recusar a militarização do Caribe, enfrentar a retórica inflada de terrorismo, desarmar a agenda de regime change e resistir à instrumentalização econômica do comércio. Significa, também, articular uma coalizão regional capaz de neutralizar a lógica da intervenção preventiva. Trata-se de um teste existencial: ou a América Latina consolida sua soberania coletiva, ou continuará sendo administrada como periferia estratégica dos EUA.


O que está em jogo, portanto, não é apenas a reação a tarifas, incidentes marítimos ou discursos inflamados. É a definição do lugar do Brasil — e da região — no mundo que emerge. Se o século XX foi marcado pela intervenção direta e pelos golpes militares, o século XXI inaugura uma forma mais sofisticada de controle: o regime de exceção jurídico-econômico, no qual o inimigo muda, mas a doutrina permanece. A diferença é que agora há alternativas reais: BRICS, integração sul-americana, multipolaridade financeira, soberania digital, governança global em disputa.


No centro desse tabuleiro, o Caribe funciona como a primeira grande batalha simbólica e concreta da nova ordem. Quem controlar sua narrativa, sua geografia jurídica e seus fluxos comerciais terá vantagem no redesenho do hemisfério. Os EUA querem restabelecer sua autoridade histórica; China e Rússia querem abrir portas; Venezuela quer sobreviver; Cuba quer não ser esmagada; e o Brasil quer, finalmente, ser sujeito e não objeto na geopolítica global.


E é por isso que a conclusão é simples e brutal: a zona de paz deixou de ser discurso e passou a ser trincheira. A linha vermelha está traçada no mar do Caribe — mas os impactos cairão aqui. O teste é agora, e o Brasil não pode piscar.


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