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Tarifaço dos EUA: o truque do alívio seletivo que ameaça o Brasil

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    Rey Aragon
  • há 2 minutos
  • 16 min de leitura

Como Washington usa tarifas e recuos calculados para manter o Brasil dependente e travar seus setores mais estratégicos.


O recuo parcial de Trump sobre o tarifaço parece vitória, mas esconde uma armadilha: os EUA aliviam a pressão onde o custo político interno é alto e mantêm o garrote exatamente nos setores que poderiam impulsionar a reindustrialização e a soberania tecnológica do Brasil. Este artigo revela, com dados inéditos, como o alívio seletivo funciona como engenharia de dependência e parte de um plano maior de coerção na disputa geopolítica pelo Caribe e pela Venezuela.

O momento que precisa ser compreendido com mais clareza



Nas últimas semanas, a percepção geral no debate público foi de que a tensão entre Brasil e Estados Unidos teria diminuído. O governo americano retirou a sobretaxa de 40% sobre vários produtos agrícolas brasileiros, o agronegócio reagiu com alívio, e parte da cobertura tratou o gesto como sinal de distensão. A narrativa é simples: houve diálogo, houve recuo, a situação “melhorou”. Mas, quando observamos o conjunto das medidas adotadas desde abril, a realidade revela um arranjo mais complexo.


O tarifaço não foi um episódio isolado. Ele começou com uma tarifa-base de 10% sobre praticamente todas as importações e evoluiu para sobretaxas de 50% aplicadas de forma concentrada à pauta brasileira. Esse conjunto de medidas foi sustentado pelo argumento de “emergência nacional”, o que permitiu aos Estados Unidos usar tarifas como instrumento de pressão política direta. As justificativas se alinharam a críticas ao julgamento de Bolsonaro, ao papel do STF e às regras brasileiras de regulação das plataformas digitais. Tarifas e política interna brasileira passaram a caminhar na mesma frase.


Do lado brasileiro, a resposta foi calibrada. O governo aprovou uma Lei de Reciprocidade para ter meios legais de responder na mesma escala, mas Lula declarou que não pretende acionar retaliações de imediato. A razão é evidente: retaliações amplas poderiam impactar cadeias produtivas, empregos e setores industriais fortemente integrados ao mercado americano. Ao mesmo tempo, não retaliar mantém o país exposto a uma ferramenta de pressão que segue ativa. O governo tenta, portanto, equilibrar proteção econômica com defesa de soberania, sem agravar tensões num momento sensível.


Esse cenário econômico ocorre em paralelo a movimentos geopolíticos relevantes. Os Estados Unidos reforçaram sua presença militar no Caribe, ampliaram monitoramento de rotas energéticas e endureceram a retórica sobre a Venezuela. O Brasil, por sua vez, tem defendido soluções diplomáticas e a não intervenção, buscando evitar que a crise venezuelana seja pretexto para uma escalada regional. Quando colocamos comércio e geopolítica no mesmo quadro, percebe-se que as tarifas funcionam como parte de uma estratégia mais ampla de pressão — uma combinação de medidas econômicas, políticas e militares que se sobrepõem no mesmo momento histórico.


É nesse ambiente que o recuo parcial de Washington precisa ser lido. A retirada das sobretaxas sobre parte do agro reduz pressões internas nos EUA, ameniza efeitos sobre inflação de alimentos e acalma setores brasileiros influentes. Porém, o núcleo mais pesado das tarifas permanece exatamente onde o Brasil precisa ampliar competitividade: metalurgia, máquinas, químicos, bens intermediários e segmentos industriais de maior sofisticação. São áreas em que a substituição de mercados não é simples e onde a perda de competitividade tem efeitos duradouros.


O que temos hoje, portanto, não é o fim do tarifaço, mas a transformação dele. Uma reprogramação silenciosa que mantém a pressão sobre os segmentos estratégicos da economia brasileira, ao mesmo tempo que suaviza o impacto político imediato sobre o agronegócio e sobre a inflação americana. É um novo desenho, mais sutil, porém mais eficiente, adotado justamente no momento em que o Brasil tenta combinar desenvolvimento econômico, estabilidade interna e uma postura independente diante da intensificação das tensões no entorno da Venezuela.


Esse é o ponto de partida para o artigo: compreender o que mudou, o que permaneceu e por que o alívio seletivo não encerra o problema — apenas inaugura uma nova fase dele.


O tarifaço não acabou — ele mudou de forma



A leitura mais direta das últimas semanas sugere que a crise teria sido atenuada graças ao gesto de Washington em retirar a sobretaxa sobre dezenas de produtos agrícolas brasileiros. Esse movimento gerou a impressão de que o tarifaço estava sendo desmontado. Mas, ao olhar a estrutura completa das medidas ainda em vigor, o que vemos é uma mudança de configuração — não o fim do instrumento.


O tarifaço foi redesenhado para se tornar mais eficiente: o peso saiu da prateleira visível, onde o impacto político seria imediato, e permaneceu concentrado nos segmentos com maior relevância industrial. O alívio para o agro tem efeito claro — reduz tensão interna, melhora o clima político e ameniza custos para o consumidor americano — mas o coração do problema segue ativo. Os setores que permanecem sob sobretaxas são justamente aqueles em que o Brasil depende de estabilidade para avançar em produtividade e desenvolvimento tecnológico.


Essa distinção entre o que foi retirado e o que permanece é fundamental. Na parte agrícola, o Brasil tem alternativas de diversificação de mercados, ciclos de produção mais flexíveis e cadeias já consolidadas globalmente. Mas na parte industrial, a substituição de mercado é lenta, complexa e depende de investimentos que só se justificam no longo prazo. Ao manter a pressão justamente nesse ponto, os Estados Unidos preservam uma ferramenta que afeta a reindustrialização brasileira e cria incerteza permanente para empresas que operam em cadeias internacionais.


Outra característica desse novo formato é que ele permite a Washington alterar o ritmo da pressão sem provocar rupturas abruptas. A retirada parcial das tarifas reduz o desgaste imediato e dá ao governo americano espaço para combinar novos estímulos e punições conforme suas prioridades políticas. O resultado é um tarifaço mais discreto, porém mais adaptável, capaz de responder a movimentos do Brasil sem disparar alertas na opinião pública dos EUA.


O efeito prático desse redesenho é claro: o instrumento de coerção continua presente, mas agora opera com menor ruído e maior precisão. O gesto de alívio não desmonta o mecanismo; apenas o torna mais ordenado, mais seletivo e mais ajustado às áreas onde o impacto estratégico sobre o Brasil é mais profundo. E é justamente essa mudança silenciosa que exige uma leitura mais cuidadosa — porque o conflito não diminuiu, apenas se reorganizou.

O alívio seletivo: como Washington redesenhou a dependência brasileira



O recuo dos Estados Unidos sobre parte do tarifaço foi apresentado como gesto de distensão, mas o desenho da lista de produtos liberados revela algo mais preciso: o alívio não foi amplo, nem aleatório. Ele foi cirúrgico. Washington retirou a sobretaxa onde o impacto político interno seria mais alto — alimentos, café, carne, frutas, sucos — e manteve a pressão exatamente nos setores que estruturam a capacidade de desenvolvimento industrial brasileiro.


Ao observar essa divisão, fica evidente que o alívio seletivo funciona como uma forma de reorganizar a dependência. A agricultura brasileira tem vasta rede de compradores, ampla presença global e margens de substituição relativamente rápidas: se um mercado aperta, outro absorve. Já os setores industriais, especialmente os intensivos em metalurgia, químicos, máquinas, componentes e bens intermediários, dependem de previsibilidade de longo prazo, contratos estáveis e escalas de produção que não se reconfiguram da noite para o dia. São essas cadeias que foram mantidas sob sobretaxa — justamente as que definem a capacidade de um país de gerar valor, tecnologia e autonomia produtiva.


Essa assimetria não é acidental. Ao aliviar o agro, os EUA reduzem pressões internas, evitam aumento da inflação alimentar e diminuem o desgaste político de tarifas amplas. Mas, ao preservar o peso sobre os setores industriais, mantêm um ponto de estrangulamento estratégico. É uma forma discreta de travar investimentos, desestimular inovação e limitar a competitividade brasileira em segmentos de maior valor agregado. O resultado é um efeito de reprimarização indireta: o Brasil tem acesso facilitado para vender o que vale menos e enfrenta obstáculos crescentes para consolidar o que vale mais.


Além disso, o alívio seletivo produz outro efeito relevante: reorganiza a política doméstica brasileira. Ao beneficiar setores com forte peso econômico e eleitoral, como carne e café, o gesto reduz tensões internas e diminui a pressão para uma resposta imediata da parte do governo. Ao mesmo tempo, deixa as cadeias industriais — que sustentam empregos mais qualificados e maior conteúdo tecnológico — expostas a um ambiente de incerteza. A mensagem implícita é clara: o equilíbrio entre conforto político e autonomia produtiva continua em disputa.


Em outras palavras, o alívio não desmonta o tarifaço. Ele apenas redefine suas prioridades. O que foi retirado reduz ruído. O que permaneceu concentra impacto. E, nessa combinação, os Estados Unidos criam uma forma de pressão menos visível, mas muito mais alinhada à sua lógica estratégica: desestimular qualquer movimento brasileiro de fortalecimento industrial enquanto mantêm as portas abertas para aquilo que não ameaça suas cadeias de valor. É a dependência atualizada para o século XXI — não mais imposta por grandes pacotes, mas moldada por pequenos ajustes que alteram, silenciosamente, o futuro produtivo de um país.

O algoritmo do cerco: economia, regulação digital e política interna no mesmo tabuleiro



Quando analisadas separadamente, as medidas recentes dos Estados Unidos — tarifas, recuos parciais, pressões sobre plataformas digitais e críticas ao sistema de justiça brasileiro — parecem pertencer a campos distintos. Mas, quando colocadas lado a lado, formam uma arquitetura coerente. Não se trata apenas de comércio. Tampouco é apenas disputa regulatória. É um modelo de pressão que combina economia, informação e política numa mesma engrenagem.


O tarifaço opera como eixo econômico desse mecanismo. Ele cria volatilidade calculada: ora aperta, ora alivia, sempre deixando claro que a normalidade depende de escolhas que o Brasil faça em áreas sensíveis para Washington. Ao mesmo tempo, o debate sobre regulação de plataformas digitais, que no Brasil avança em direção à responsabilização de empresas por conteúdo ilegal, é usado pelos Estados Unidos como argumento político. Pontos de atrito — moderação, remoção de discurso extremista, combate a redes coordenadas — são reinterpretados como ameaça à liberdade de expressão e aos interesses das big techs americanas. A crítica pública ao Brasil, nesse caso, não aparece isolada: ela reforça a ideia de que parte das tensões comerciais decorre de disputas regulatórias.


Há ainda o componente político interno. Quando dirigentes americanos questionam decisões da justiça brasileira ou insinuam perseguição a figuras da extrema-direita, isso não ocorre no vácuo. Esse discurso se articula com a lógica das tarifas, ampliando sua função de pressão: o recuo só avança onde existe conveniência política, enquanto a possibilidade de endurecimento permanece como sombra sobre decisões domésticas brasileiras. Assim, comércio e política são usados simultaneamente para criar um ambiente de incerteza que favorece a capacidade de barganha dos Estados Unidos.


O resultado é um algoritmo simples na forma e sofisticado no efeito: decisões econômicas pressionam a política; decisões políticas influenciam o comércio; tensões regulatórias aparecem como justificativa para manter a volatilidade. Tudo opera de forma conectada, como camadas distintas de uma mesma estratégia. Para o Brasil, isso significa lidar com uma pressão multidimensional: a economia sente o impacto das tarifas; as instituições enfrentam questionamentos externos; e o ambiente regulatório se transforma em terreno de disputa geopolítica. É um cerco silencioso, feito de pequenas peças que, somadas, moldam a margem real de ação do país.


Caribe, Venezuela e o cerco de rotas: o tabuleiro oculto



O tarifaço não pode ser compreendido sem olhar para o entorno regional. Nos últimos meses, os Estados Unidos intensificaram sua presença militar no Caribe, ampliaram monitoramento de rotas marítimas e elevaram o tom sobre a Venezuela. Esse movimento não é paralelo ao conflito comercial — ele é parte do mesmo tabuleiro. Quando um país controla rotas, portos e cadeias de energia na sua periferia estratégica, ele amplia a capacidade de condicionar o comportamento de seus vizinhos por meios indiretos. Tarifas e projeção militar, nesse caso, são instrumentos que se reforçam mutuamente.


A Venezuela ocupa posição central nessa equação. Além de suas reservas de petróleo e gás, o país é corredor logístico para toda a fachada norte da América do Sul. Uma pressão militar ampliada ou um bloqueio parcial no Caribe altera fluxos comerciais, encarece o transporte, aumenta o risco de seguros e afeta rotas por onde circulam cargas brasileiras. Quando Washington intensifica operações navais e sinaliza disposição para endurecer sua postura, cria um ambiente em que qualquer país da região — inclusive o Brasil — precisa levar em conta não apenas a tarifa aplicada à sua mercadoria, mas também a rota por onde essa mercadoria será escoada.


É nesse contexto que a diplomacia brasileira se move com cautela. O governo tem reiterado que rejeita qualquer aventura militar na Venezuela e que defende soluções políticas e negociadas. Essa posição não é apenas ideológica; ela é estratégica. Uma escalada militar na fronteira norte alteraria cadeias logísticas, aumentaria custos de exportação e ampliaria o poder de barganha dos Estados Unidos sobre toda a região. O Brasil busca evitar esse cenário porque sabe que a pressão comercial não pode ser isolada da pressão territorial e energética.


Ao mesmo tempo, o gesto americano de aliviar parte das tarifas logo após conversas diretas com Brasília mostra que o comércio faz parte da negociação mais ampla sobre o Caribe e a Venezuela. Ao retirar sobretaxas sobre alimentos, Washington reduz desgaste interno, melhora a percepção diplomática e abre espaço para cobrar, de forma implícita, maior alinhamento em temas regionais. O recuo sobre o agro, nesse sentido, não é apenas econômico: ele também libera o terreno para que os Estados Unidos exerçam influência política num momento de tensão crescente.


O que se desenha, portanto, é um ambiente em que tarifas, logística, diplomacia e movimentação militar se entrelaçam. A pressão comercial ganha profundidade quando combinada à incerteza regional; a presença militar ganha alcance quando reforçada por instrumentos econômicos. O Caribe e a Venezuela funcionam como extensão do tarifaço — não porque substituam o comércio, mas porque ampliam seu impacto. E isso exige do Brasil uma leitura que vá além do preço da tarifa: é preciso entender a arquitetura territorial que condiciona por onde, quando e a que custo o país consegue circular sua própria produção.

O dilema de Lula: respirar sem ceder



No centro desse tabuleiro está um governo que precisa, ao mesmo tempo, proteger empregos, conter pressões inflacionárias, preservar margem de manobra diplomática e defender a soberania institucional do país. O dilema é concreto: qualquer reação impulsiva ao tarifaço pode desencadear retaliações em cadeia, afetar exportações sensíveis e gerar instabilidade interna; qualquer passividade excessiva abre espaço para que a pressão econômica se consolide como ferramenta permanente de disciplinamento. Entre esses dois extremos, o Brasil vem tentando construir uma linha de atuação que combine firmeza e prudência.


A aprovação da Lei de Reciprocidade deixou claro que o país não aceita, em tese, a lógica da punição unilateral. Ao criar um instrumento jurídico que permite responder na mesma escala, o Brasil envia um recado: tem meios para contra-atacar se for necessário. Ao mesmo tempo, o fato de Lula adiar o uso pleno dessa lei indica outra dimensão do cálculo. O governo sabe que uma guerra de tarifas em larga escala prejudicaria justamente os setores que mais precisam de previsibilidade, além de oferecer munição para quem aposta no caos econômico como ferramenta de desgaste político.


Esse equilíbrio aparece também na forma como o Brasil tem se posicionado em relação à Venezuela e ao Caribe. A recusa a apoiar aventuras militares e a insistência em saídas negociadas não significam alinhamento automático a qualquer governo, mas uma tentativa de evitar que a região seja arrastada para uma dinâmica de conflito que ampliaria a capacidade de pressão dos Estados Unidos sobre toda a América do Sul. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro mantém canais abertos com Washington e insiste na via diplomática para reduzir tensões comerciais, evitando transformar o conflito em ruptura.


Há, ainda, uma dimensão interna desse dilema. O alívio seletivo sobre o agro ajuda a neutralizar parte das pressões de um setor historicamente influente, mas deixa em segundo plano as cadeias industriais que continuam expostas às sobretaxas. O governo precisa falar com esses dois mundos ao mesmo tempo: tranquilizar produtores que viram uma melhora imediata no acesso ao mercado americano e, ao mesmo tempo, sinalizar para a indústria que a agenda de reindustrialização continua sendo prioridade, mesmo em ambiente adverso. Fazer isso sem transformar o tarifaço em disputa partidária de curto prazo é parte da dificuldade.


No fundo, o dilema de Lula não é entre reagir ou aceitar; é entre reagir de um modo que fortaleça a posição estrutural do Brasil ou de um modo que apenas produza barulho. Por isso a resposta tem sido gradual, cuidadosa e, muitas vezes, incompreendida por quem espera gestos dramáticos. Em vez de um choque frontal, o governo tenta construir, passo a passo, condições para reduzir a vulnerabilidade de longo prazo — diversificando parceiros, reforçando a integração regional, impulsionando políticas industriais e defendendo, no plano internacional, limites para o uso arbitrário de tarifas e sanções. É uma escolha de tempo longo num cenário em que quase tudo empurra para o improviso.

Por que o debate público ainda não captou o tabuleiro completo



A maior dificuldade para entender o tarifaço — e seus desdobramentos no Caribe, na regulação digital e na política brasileira — não está na falta de informação, mas na maneira como ela é organizada. A imprensa cobre tarifas como economia. Movimentação militar como defesa. Disputas regulatórias como tecnologia. Choques diplomáticos como política externa. Cada tema aparece isolado, como se pertencesse a caixas estanques. E, quando as peças são tratadas separadamente, o desenho estratégico por trás delas se perde.


O tarifaço, por exemplo, foi amplamente noticiado como uma decisão comercial agressiva que depois teria sido parcialmente corrigida. A retirada das sobretaxas sobre parte do agro reforçou essa impressão. Mas a permanência das tarifas sobre setores industriais — e o momento em que isso ocorre — raramente é conectada ao debate sobre reindustrialização e política de desenvolvimento no Brasil. De forma semelhante, as pressões sobre o STF e as críticas à regulação das plataformas digitais costumam ser apresentadas como episódios políticos independentes, embora reforcem a mesma lógica de condicionamento externo.


O mesmo vale para o Caribe e a Venezuela. A intensificação da presença militar norte-americana aparece nas manchetes, mas quase nunca é articulada com o impacto que isso tem sobre rotas comerciais, cadeias energéticas e capacidade de barganha dos Estados Unidos na região. Assim, cada elemento do tabuleiro é visível, mas a relação entre eles permanece difusa. Falta a costura — e é justamente essa costura que define o sentido do conflito.


Esse tipo de fragmentação não é casual. É uma característica do debate contemporâneo, acelerado, segmentado e dominado por ciclos curtos de atenção. Ela faz com que instrumentos de pressão sutis — como o alívio seletivo das tarifas — pareçam gestos generosos, quando na verdade fazem parte de uma estratégia maior. E também faz com que sinais de coerção geopolítica se diluam em meio a disputas narrativas rápidas, dificultando a compreensão de como economia, segurança e política estão entrelaçadas.


Quando observamos o quadro em conjunto, o conflito deixa de parecer uma série de eventos desconexos e passa a se revelar como uma arquitetura integrada. O tarifaço é uma peça. A regulação digital é outra. A pressão sobre instituições brasileiras, outra. A movimentação no Caribe, outra. Cada uma opera em seu campo específico, mas todas apontam para a mesma direção: ampliar a capacidade de influência dos Estados Unidos num momento em que o Brasil busca fortalecer sua autonomia produtiva e sua voz regional.


Reconhecer essa dinâmica não é adotar um tom alarmista, nem supor intenções ocultas em cada gesto diplomático. É, simplesmente, considerar o quadro inteiro. Porque, quando o conflito é multidimensional, a análise também precisa ser. E compreender essa totalidade é o passo necessário para saber onde estão os riscos — e onde estão as escolhas reais — para o país.

O risco estrutural: como o Brasil pode perder o século XXI sem perceber



Quando olhamos o tarifaço apenas pelo impacto imediato — custos, porcentagens, reação do agro, oscilações no comércio — a disputa parece administrável. Mas o efeito profundo das sobretaxas, sobretudo nas cadeias industriais, aponta para um problema maior: o risco de o Brasil entrar nas próximas décadas com sua autonomia produtiva comprometida. O país já convive com uma industrialização tardia, marcada por vulnerabilidades estruturais; quando tarifas calibradas atingem justamente os setores de maior valor agregado, esses pontos fracos deixam de ser desafios internos e passam a ser condicionados por decisões externas.


Essa pressão funciona como um desincentivo quase invisível. Projetos industriais que dependem de previsibilidade de exportação, acordos de longo prazo e escala tecnológica ficam mais difíceis de justificar quando o maior mercado do hemisfério pode, a qualquer momento, impor uma sobretaxa de 50% a um componente essencial. Empresas que analisam investimentos de longo prazo levam isso em conta. Polos industriais, já afetados por competição global, ficam ainda mais vulneráveis quando convivem com instabilidade tarifária. Assim, o tarifaço não apenas afeta o presente; ele contamina o futuro.


Há também o risco da reprimarização permanente. O alívio seletivo reforça o caminho mais fácil — exportar comida, café e proteína — ao mesmo tempo em que dificulta o movimento mais estratégico — consolidar cadeias industriais complexas. Esse padrão se reforça com o tempo: setores primários ganham estabilidade; setores industriais perdem tração. E, conforme a estrutura produtiva se acomoda nessa divisão, o país se torna mais dependente dos mercados que compram o que vale menos e menos capaz de competir nos setores que determinam a soberania tecnológica no século XXI.


Do ponto de vista geopolítico, essa fragilidade econômica amplia a vulnerabilidade em outras frentes. Um país com menor capacidade industrial depende mais de tecnologia estrangeira, tem menor poder de barganha em negociações internacionais e enfrenta mais dificuldades para impor limites a pressões externas. Em contextos de tensão regional, como o que envolve o Caribe e a Venezuela, essa vulnerabilidade se torna ainda mais sensível: quem controla logística, energia e tecnologia controla também o ritmo da economia e a margem de manobra política de seus parceiros.


Nada disso significa que o Brasil esteja condenado a um futuro de dependência. Mas significa que, sem uma leitura clara da arquitetura do tarifaço e de seus efeitos prolongados, o país corre o risco de negociar apenas o curto prazo, enquanto perde a disputa estrutural. O século XXI está sendo moldado agora — nas decisões comerciais, regulatórias e diplomáticas que parecem pequenas, mas acumulam força estratégica com o tempo. E é justamente por isso que tomar consciência desse cenário é fundamental: a janela de autonomia não se fecha num gesto dramático, mas em movimentos graduais que, quando percebidos tarde demais, deixam pouco espaço para reversão.

O caminho da autonomia: o que o Brasil pode fazer agora



Se o tarifaço mudou de forma e se tornou um instrumento mais silencioso de pressão, a resposta brasileira também precisa operar em múltiplas frentes. Não se trata de buscar uma solução imediata, nem de transformar a disputa comercial em confronto diplomático. O desafio real é construir, passo a passo, um conjunto de proteções estruturais que reduzam a vulnerabilidade externa e ampliem a capacidade do país de decidir seu próprio caminho, mesmo diante de pressões de curto prazo.


O primeiro eixo é produtivo. A reindustrialização não pode depender exclusivamente do humor de parceiros externos, nem de ciclos de commodities. Para avançar, precisa de instrumentos internos robustos: financiamento público de longo prazo, estímulo à inovação, fortalecimento das cadeias de fornecedores e políticas que protejam setores estratégicos enquanto ganham escala e competitividade. Cada ponto de previsibilidade que o país cria internamente diminui o efeito das tarifas externas. Cada elo industrial fortalecido reduz a capacidade de arbitragem de quem usa comércio como mecanismo de coerção.


O segundo eixo é regional. A América do Sul só terá peso real se agir de forma coordenada diante de disputas comerciais e pressões geopolíticas. Isso vale para tarifas, mas vale principalmente para logística. Rotas alternativas, integração de portos, acordos alfandegários mais eficientes e investimentos conjuntos em infraestrutura reduzem a dependência de corredores controlados por potências externas. A estabilidade no entorno, especialmente na Venezuela e no Caribe, também é parte disso: um ambiente de menor tensão diminui a capacidade de qualquer país externo usar o território como ponto de pressão indireta.


O terceiro eixo é tecnológico e informacional. A soberania do século XXI depende de desenvolver e controlar infraestrutura digital, dados, comunicação e ferramentas críticas de produção tecnológica. Países com autonomia nessa área conseguem negociar melhor, resistir a pressões regulatórias externas e evitar que seus próprios marcos legais sejam usados como justificativa para medidas comerciais adversas. No caso brasileiro, isso significa avançar simultaneamente em regulamentação democrática das plataformas, fortalecimento da indústria de tecnologia nacional e investimentos em pesquisa científica e inovação.


Por fim, há o eixo diplomático. A resposta mais eficaz ao tarifaço não é sempre a mais barulhenta, mas a mais consistente. O Brasil precisa continuar dialogando, acionando mecanismos multilaterais quando necessário, e construindo consensos internacionais que limitem o uso arbitrário de tarifas e sanções como ferramentas políticas. Reforçar o peso do país em blocos como Mercosul, BRICS e G20 aumenta sua capacidade de influenciar normas globais. E manter clareza sobre seus princípios — defesa da paz, da legalidade internacional e da autonomia de cada nação — dá solidez à sua posição.


A soma desses movimentos não elimina a pressão externa, mas muda o terreno onde ela opera. Em vez de reagir apenas aos ciclos curtos de volatilidade, o Brasil passa a reorganizar sua estrutura de poder para o longo prazo. Essa é a verdadeira disputa. Não se trata apenas de tarifas ou listas de produtos, mas de como um país se prepara para enfrentar um século em que comércio, tecnologia e geopolítica estão cada vez mais entrelaçados. A autonomia não nasce de um gesto isolado; nasce de uma estratégia que reconhece o cenário, compreende a lógica do conflito e constrói, peça por peça, as condições para atravessá-lo com segurança.


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