Troppo vero! O retrato da administração Trump <parte 2>
- Sara Goes
- há 6 minutos
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O retrato político vive de um pacto de fingimento entre poder e câmera. Aqui, esse acordo é rompido para expor carne, falha e medo por trás da autoridade
A carne como evidência
O retrato político opera geralmente sob um contrato de invisibilidade mútua. O fotógrafo finge que o político é um herói e o político finge que a câmera não existe. Christopher Anderson rompeu esse contrato.
O retrato político opera geralmente sob um contrato de invisibilidade mútua. O fotógrafo finge que o político é um herói e o político finge que a câmera não existe. Christopher Anderson rompeu esse contrato.
Sua estética, marcada pela proximidade invasiva, pela textura granulada e por uma crueza emocional, colide frontalmente com a tradição polida e estática de publicações como a Vanity Fair, historicamente definida pelo perfeccionismo de Annie Leibovitz. No entanto, é justamente essa capacidade de extrair o visceral e o íntimo que o tornou indispensável mesmo nesses espaços, à medida que a estética editorial passou a demandar menos encenação e mais verdade.

Essa busca pelo "real" fundamenta sua recusa ao rótulo de fotojornalista. Mesmo integrando os quadros da Magnum, agência célebre pela cobertura de grandes eventos globais, Anderson argumenta que a função do repórter de notícias não lhe cabe. "O termo fotojornalista tem vários significados, mas refere-se, sobretudo, àquele que reporta as notícias. Não creio que seja essa a minha função", declarou em entrevista a Bruno Bayley, da VICE. Para ele, a fotografia documental não serve à isenção, mas à experiência pessoal; não se trata de reportar fatos, mas de comentar a realidade e assumir a subjetividade do olhar.
Essa postura é deliberada, pois Anderson nunca almejou a neutralidade. "Não tinha a pretensão de objetividade. Fotografava dando sempre a minha opinião e queria que as pessoas soubessem que estava a dar o meu ponto de vista", explica. Essa visão de mundo não nasceu em uma sala de aula, já que ele não teve formação acadêmica formal, mas foi forjada no trauma.

Nascido no Canadá e criado no Texas, sua carreira começou em zonas de conflito, mas sofreu uma transformação radical em 1999. A bordo do Believe in God, um precário barco de madeira, ele tentou documentar a travessia de refugiados haitianos rumo aos EUA. O naufrágio no Caribe, que o deixou à deriva junto aos passageiros, rendeu-lhe a Robert Capa Gold Medal, mas, mais importante, enterrou a ilusão do fotógrafo como um observador distante. Ali, entre a vida e a morte, a velha metáfora da "mosca na parede" ruiu. Ele compreendeu, enfim, que sua presença e suas emoções não eram ruído, mas parte inseparável da imagem.
Ao utilizar uma iluminação dura e desprezar uma preparação minuciosa do cenário, ele tratou a classe política não como celebridades mas como espécimes biológicos sob tensão.
No retrato de Karoline Leavitt a câmera não perdoou. Ela revelou os poros obstruídos e os supostos pontos de injeção nos lábios. Isso não é apenas uma escolha técnica. É um argumento semiótico. Ao mostrar a construção artificial da beleza da porta-voz Anderson sugere a artificialidade das narrativas que ela constrói. A "beleza" aqui falha em esconder a engenharia por trás dela.
Da mesma forma o retrato de JD Vance não busca a dignidade do cargo. A imagem captura o suor, a vermelhidão da pele e a claustrofobia de um rosto que parece não caber no enquadramento. Vance não é apresentado como um estadista estoico. Ele aparece como um corpo reagindo fisiologicamente ao estresse e ao medo. Bakhtin chamaria isso de "realismo grotesco" onde o foco nas protuberâncias e fluidos corporais serve para rebaixar o que é abstrato e elevado ao nível da terra.

A verdade como ofensa na História da Arte
A reação visceral da equipe de Trump e do público online espelha quase perfeitamente incidentes históricos onde a verdade visual foi recebida como um insulto.
O Papa Inocêncio X e a Maldição de Velázquez (1650)


Ao pintar o Papa Inocêncio X, Diego Velázquez recusou a idealização divina. O pontífice esperava ver a majestade de seu cargo; recebeu um homem desconfiado, tenso, de olhar astuto e pele avermelhada. Ao ver a obra, o Papa não pôde negar a semelhança, mas lamentou que fosse “troppo vero”, verdadeiro demais. A pintura permanece como testemunho de que a autoridade pode ser ameaçada pela simples exposição de sua aparência humana.
O contraste se torna evidente quando observamos o retrato de Dom Sebastião de Morra, realizado por Velázquez entre 1643 e 1644. Velázquez não distribui a verdade visual de maneira igual. Ele retira do Papa a idealização que o cargo exige e concede ao anão da corte uma dignidade que a ordem social lhe negava. No primeiro caso, expõe a fragilidade do poder; no segundo, recusa a redução do corpo marginalizado à caricatura.
A Família de Carlos IV e a Ironia de Goya (1800)

Francisco de Goya levou essa subversão ao coração da monarquia espanhola. Como Pintor da Câmara ele criou um retrato coletivo que críticos posteriores descreveriam como "o padeiro da esquina e sua família depois de ganharem na loteria". A Rainha Maria Luísa ocupa o centro com uma expressão vacua e braços gordos enquanto o Rei Carlos IV olha para o vazio com ar distraído. Goya não precisou caricaturar. Ele apenas pintou o que viu: uma aristocracia em decadência genética e moral vestida com as melhores sedas que o dinheiro podia comprar. A cegueira da família real foi tamanha que eles aceitaram o quadro sem perceber a crítica brutal contida naquelas faces vazias.
O Buldogue Sem Dentes: Churchill por Sutherland (1954)

O Parlamento britânico cometeu o erro de encomendar ao modernista Graham Sutherland um retrato para os 80 anos de Winston Churchill. Sutherland pintou o que viu: um homem velho, curvado pelo peso da história e do tempo, sentado de pernas abertas. Churchill odiou a obra. Ele declarou publicamente que a pintura o fazia parecer um "retardado" no vaso sanitário. A imagem ameaçava o mito do "Leão-da-Berbária" que venceu a guerra. A rejeição foi tão violenta que Clementine Churchill, sua esposa, destruiu a tela e a queimou. A obra hoje existe apenas em fotografias, um fantasma que prova que a vaidade do poder não tolera o espelho da velhice.
O jeca texano: LBJ por Peter Hurd (1967)

Lyndon B. Johnson queria ser lembrado como um estadista pacificador. Peter Hurd no entanto pintou o político texano gordinho, de orelhas grandes e expressão difícil e cansada. Johnson, famoso por seu temperamento, rejeitou a obra e o quadro foi banido da Casa Branca. A recusa de Johnson em aceitar suas próprias feições rudes revela o desejo do político de controlar não apenas a política mas a própria biologia.
A Rainha está nua: Elizabeth II por Lucian Freud (2001)

Lucian Freud aplicou sua técnica de tinta em relevo e análise clínica à rainha britânica. O resultado foi um retrato minúsculo onde a coroa parece pesar toneladas sobre uma cabeça de traços quase masculinos e expressão severa. Críticos conservadores disseram que ela parecia um jogador de rúgbi que sofreu um derrame. Outros viram ali a honestidade suprema: não a rainha dos cartões postais mas a mulher idosa que carregou o dever por décadas. Freud retirou o glamour para revelar a resistência da matéria humana.
A sombra do vestido azul: Bill Clinton por Nelson Shanks (2006)

Nelson Shanks inseriu a subversão de forma codificada. O retrato parece tradicional à primeira vista. Clinton está posado confiantemente. No entanto uma sombra cai sobre a lareira ao fundo. Anos depois Shanks revelou o segredo: ele pintou a sombra usando um manequim com um vestido azul. A sombra representa Monica Lewinsky e o escândalo que definiu a presidência. Clinton é retratado como um homem assombrado por seus erros. Anderson faz algo similar com Stephen Miller ao usar sombras profundas para sugerir maquinação e vilania de filme Noir.
A facada que virou tiro no pé: Bolsonaro por João Menna (2023)

João Menna se define como especialista em marca pessoal, vende consultorias nas redes sociais e atua como um coach motivacional de extrema direita, com forte influência pentecostal e alinhamento explícito ao trumpismo. Essa posição atravessa sua prática fotográfica. A imagem não busca ambiguidade nem complexidade. Funciona como construção simbólica, transformando o corpo político em produto, fé e performance, mais próxima da propaganda devocional do que do retrato crítico.
A fotografia mostra Jair Bolsonaro em ambiente fechado, sob iluminação dura e enquadramento frontal, enfatizando o desgaste físico e a cicatriz. O corpo aparece como prova e argumento, não como problema a ser interrogado.
O próprio João Menna afirma que o retrato foi totalmente pensado desde 2019 como imagem de marca. Seu desejo inicial era fotografar Donald Trump e, diante da impossibilidade, Bolsonaro surge como alternativa dentro do mesmo imaginário político. Não se trata de um projeto nacional, mas de um ícone alinhado ao trumpismo, com pretensão internacional.
Menna insiste que o centro da imagem é o símbolo da facada. A cicatriz funciona como narrativa heroica, enquadrada nos termos da chamada jornada do herói. Nada é espontâneo. O acesso ao corpo de Bolsonaro resulta de negociações com a família e de alinhamento ideológico explícito. O retrato nasce da adesão, não da observação.
A repercussão confirma a operação. A imagem circulou amplamente, gerou memes e críticas, mas foi apropriada pelo bolsonarismo como símbolo de martírio e resistência. A fragilidade vira capital simbólico. A foto do corpo em decadência marcou o início do fim de Bolsonaro.
O terror da alta resolução
O ensaio de Christopher Anderson se inscreve numa disputa antiga entre a vaidade do poder e o olhar implacável do retrato. Desde o troppo vero de Velázquez ao pintar o Papa Inocêncio X, passando pelo deboche de Goya, pela rejeição furiosa do Churchill de Sutherland e pelo banimento do Lyndon Johnson de Peter Hurd, o padrão se repete: quando a imagem deixa de idealizar, ela passa a ser tratada como afronta.
A diferença, em 2025, é o contexto tecnológico. Vivemos sob o regime da suavização algorítmica, da pele alisada e do rosto corrigido antes mesmo de ser visto. Estamos desacostumados à textura real do corpo humano.
Quando Anderson mostra Susie Wiles pequena demais para o espaço que ocupa, J.D. Vance suando sob luzes duras, Stephen Miller em closes que achatam o rosto, Marco Rubio deslocado no fundo do quadro ou Karoline Leavitt exposta à proximidade excessiva, ele reincide nesse mesmo gesto histórico. O velho pecado do troppo vero. A recusa em embelezar rompe o pacto visual que sustenta a autoridade.
Como lembra Umberto Eco, o poder precisa de signos estabilizados para funcionar. O autoritarismo teme a ambiguidade e rejeita a interpretação aberta. A alta resolução de Anderson faz o contrário. Ela devolve ruído ao signo, complexidade ao rosto e humanidade ao mito, como fizeram Freud ao despir o glamour da monarquia britânica e Shanks ao transformar o escândalo de Clinton em sombra persistente.
O choque que essas imagens produzem não é medo da feiura. É o medo de perder a aura. É o desconforto de reconhecer que, por trás da autoridade, há carne perecível, suor, fadiga, procedimentos mal disfarçados e ansiedade. A imagem deixa de ser emblema e volta a ser corpo.
O verdadeiro susto não está no rosto fotografado, mas no que ele permite ler. Quando o retrato rompe o regime do signo controlado, o político retorna à sua condição mais incômoda: humano, falho e interpretável. Para um poder que depende da imagem como fé, isso sempre foi intolerável.
Bibliografia
ANDERSON, Christopher. Stump. Espanha: RM Verlag, 2014.
BAKHTIN, Mikhail. Rabelais and His World. Bloomington: Indiana University Press, 1984.
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Referências jornalísticas e críticas citadas
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ARTREVIEW. The Distended Forms of Grotesque Satire. Acesso em: 18 dez. 2025. Disponível em: https://artreview.com/the-distended-forms-of-grotesque-satire/
THE PHOTOGRAPHIC JOURNAL. Christopher Anderson – Interview. Acesso em: 18 dez. 2025. Disponível em: https://thephotographicjournal.com/interviews/christopher-anderson/
TIMES OF INDIA. “Didn’t put injection sites on her”: Photographer Christopher Anderson on viral Vanity Fair portraits. Acesso em: 18 dez. 2025. Disponível em: https://timesofindia.indiatimes.com/world/us/i-didnt-put-the-injection-sites-on-her-photographer-christopher-anderson-opens-up-about-viral-vanity-fair-portraits-all-about-him/articleshow/126054309.cms
YAHOO NEWS CANADA. Vanity Fair portraits of White House leaders hoped to cut through political theater. Instead they drew snickers online. Acesso em: 18 dez. 2025. Disponível em: https://ca.news.yahoo.com/vanity-fair-portraits-white-house-202613134.html




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