A nova guerra na América Latina não é por território, é por fluxos
- Rey Aragon
- há 3 minutos
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Como bloqueios invisíveis de energia, trabalho, mobilidade e informação estão redefinindo soberania, poder e conflito no continente — e por que o Brasil voltou a ser o eixo da estabilidade regional
A América Latina não vive uma sucessão de crises isoladas. Vive a consolidação de um novo regime de poder, no qual não é mais necessário derrubar governos para governar sociedades. Basta interromper fluxos vitais, modular o cotidiano e transformar a exceção em normalidade. Este artigo oferece uma chave inédita para compreender o presente histórico do continente, os conflitos que se acumulam sem explodir e o papel decisivo do Brasil e de Lula na contenção estratégica das tensões que atravessam o Sul Global.
Quando o controle dos fluxos substitui a tomada do Estado

Durante décadas, o poder político na América Latina foi analisado a partir de uma gramática relativamente estável: golpes de Estado, eleições disputadas, quarteladas, intervenções diretas. Essa gramática envelheceu. O que se consolida hoje no continente é um regime de poder que não precisa derrubar governos para governar sociedades. Ele opera em um plano mais profundo, material e silencioso: o controle dos fluxos que sustentam a vida social.
Energia, mobilidade, trabalho, segurança e informação deixaram de ser apenas políticas públicas e passaram a funcionar como alavancas de disciplinamento coletivo. Quando esses fluxos são interrompidos, encarecidos ou tornados instáveis, a sociedade inteira é empurrada para um estado permanente de vulnerabilidade. O cotidiano se desorganiza, a previsibilidade desaparece e a política passa a ser vivida como gestão do medo, não como escolha.
Esse deslocamento explica por que a exceção deixou de ser um momento extraordinário e passou a ser um modo normal de governo. Não se decreta o colapso; administra-se a escassez. Não se fecha o regime; esvazia-se sua capacidade de agir. A soberania formal permanece, mas a soberania material é corroída.
O controle dos fluxos, portanto, substitui a tomada do Estado porque é mais barato, mais eficaz e menos visível. Ele não produz mártires imediatos, mas produz sociedades cansadas, fragmentadas e politicamente desarmadas. É nesse terreno que o conflito contemporâneo se desloca — e é a partir dele que a América Latina precisa ser compreendida.

A América Latina como laboratório do poder por interdição

A América Latina não atravessa uma sequência caótica de crises nacionais desconectadas. Ela se converteu, nas últimas décadas, em um laboratório privilegiado de formas contemporâneas de dominação, onde o poder opera sem precisar assumir a forma clássica da ocupação, do golpe ou da ditadura explícita. O que se observa é a disseminação de um mesmo método, adaptado a contextos distintos, mas guiado por uma lógica comum: governar pela instabilidade administrada.
Nesse regime, a violência não aparece necessariamente como ruptura abrupta, mas como condição permanente do cotidiano. Rodovias tornam-se zonas de risco, o trabalho perde previsibilidade, a energia oscila, a segurança deixa de ser um direito e passa a ser um privilégio intermitente. As instituições continuam funcionando, eleições ocorrem, discursos democráticos são mantidos, mas a vida social se organiza sob a sensação constante de bloqueio, ameaça e exceção. Governa-se menos por decisões explícitas e mais pela incapacidade estrutural de garantir normalidade.
Essa é a marca do governo indireto. O poder não se afirma pela presença ostensiva, mas pela retirada seletiva. Retira-se proteção, retira-se investimento, retira-se previsibilidade. O Estado não é destruído; ele é esvaziado em seus pontos vitais. A consequência é uma sociedade politicamente paralisada, obrigada a negociar sua sobrevivência diária em vez de disputar projetos de futuro.
É por isso que a América Latina se torna central para compreender o presente histórico. Aqui, mais do que em qualquer outra região, a dominação se exerce sem nome, sem declaração formal de guerra e sem necessidade de ruptura institucional. O continente antecipa, em escala brutal, uma forma de poder que se expande globalmente: a substituição do governo político pela gestão estratégica da escassez e do colapso controlado.
Venezuela: o limite absoluto da barbárie imperial

A Venezuela ocupa um lugar singular no tabuleiro latino-americano porque ela revela, sem mediações, o ponto extremo da lógica de interdição. Ali, o poder imperial abandona qualquer verniz normativo e opera em sua forma mais crua: cerco total, asfixia econômica prolongada e naturalização da eliminação política como horizonte legítimo. Não se trata de pressão diplomática nem de disputa institucional, mas de guerra contra a possibilidade mesma de soberania.
Ao longo de anos, fluxos vitais foram sistematicamente bloqueados. Energia, finanças, comércio exterior, acesso a insumos básicos e capacidade de investimento foram transformados em armas. A sociedade venezuelana foi empurrada para um estado de desgaste contínuo, em que cada dia se converte em exercício de sobrevivência. Essa não é uma consequência colateral; é o próprio método. A interdição prolongada produz cansaço social, fragmentação interna e erosão da confiança coletiva, criando as condições para a rendição sem necessidade de ocupação militar direta.
É nesse contexto que a ameaça aberta à vida da liderança política deixa de ser um tabu e passa a circular como possibilidade concreta. Quando se cogita publicamente a eliminação física de um chefe de Estado, o que está em jogo não é apenas a Venezuela, mas o retorno explícito do assassinato político como instrumento aceitável da ordem internacional. O recado é inequívoco: governos que escapam ao controle dos fluxos dominantes podem ser destruídos não apenas economicamente, mas biologicamente.
A Venezuela, portanto, não é uma exceção patológica. Ela é o horizonte-limite do regime de interdição estratégica aplicado ao continente. O que ali aparece em sua forma mais brutal se manifesta, em versões moduladas, em outros países da região. Entender a Venezuela é compreender até onde esse método está disposto a ir — e por que impedir sua generalização se tornou uma questão de sobrevivência histórica para a América Latina.
China, rotas e infraestrutura: a ameaça real à hegemonia

A presença chinesa na América Latina explica, mais do que qualquer discurso ideológico, a intensificação recente das estratégias de interdição. O que está em disputa não é um alinhamento político formal, mas algo muito mais profundo: a reconfiguração material dos fluxos que sustentam o poder no continente. Ao investir em infraestrutura, energia, logística e financiamento de longo prazo, a China desloca o eixo histórico da dependência latino-americana, atingindo o núcleo da hegemonia exercida pelos Estados Unidos desde o pós-guerra.
Rotas comerciais sempre foram instrumentos de dominação. Durante décadas, a integração latino-americana esteve subordinada a corredores controlados direta ou indiretamente pelo Atlântico Norte, pelo sistema financeiro dolarizado e por gargalos logísticos externos. Projetos como a Ferrovia Bioceânica não são apenas obras de transporte: eles representam a possibilidade concreta de romper com esse regime de estrangulamento, conectando o continente ao Pacífico, à Ásia e a novos circuitos de valor sem mediação imperial.
É justamente por isso que esses projetos são tratados como ameaças estratégicas. Ao reduzir a dependência de portos, seguros, crédito e cadeias logísticas sob influência norte-americana, a infraestrutura financiada ou construída com participação chinesa enfraquece a principal arma do império contemporâneo: a capacidade de bloquear, punir e disciplinar economias inteiras sem disparar um único tiro. Quando as rotas se diversificam, a interdição perde eficácia.
A reação, portanto, não se dá no plano do debate público, mas no da sabotagem indireta. Instabilidade política, criminalização de projetos estratégicos, desinformação, pressão financeira e desorganização social tornam-se mecanismos para impedir que essas alternativas se consolidem. A disputa EUA–China, vista da América Latina, não é uma abstração geopolítica distante. Ela se materializa no asfalto das rodovias, nos trilhos inacabados, nos portos congestionados e na permanente ameaça de colapso. É ali, no controle das rotas, que a hegemonia começa a ruir — e é ali que o conflito se intensifica.

Os Estados Unidos como império em declínio coercitivo

O império norte-americano não está desaparecendo de forma abrupta, mas seu poder hegemônico está entrando em um processo de declínio que se manifesta, sobretudo, pela transformação da coerção direta em formas mais sutis e caóticas de controle. Ao longo das últimas décadas, os EUA perderam a capacidade de impor sua vontade por meio da coordenação internacional, mas mantiveram a capacidade de exercer coerção através da punição e da interdição estratégica. Essa transição explica boa parte da violência silenciosa que caracteriza as relações entre os Estados Unidos e a América Latina hoje.
A guerra no terreno da infraestrutura, em particular, evidencia essa mudança. Quando o império perde a capacidade de comandar as rotas comerciais ou de controlar o financiamento de grandes projetos regionais, ele recorre a um novo arsenal de ferramentas coercitivas. Essas incluem sanções econômicas, tarifas punitivas, a proliferação de narativas negativas, e até ações militares indiretas — todas operando não para destruir, mas para minar a confiança, desacelerar o desenvolvimento e manter a instabilidade controlada.
Os EUA sabem que não podem mais garantir sua liderança global com a força bruta do passado. O que restou, e o que ainda exerce poder, é a capacidade de fragmentar alianças, interromper fluxos vitais, e manter o continente latino-americano submisso por via do risco constante e da desconfiança criada ao redor de seus parceiros mais independentes. O império, portanto, não necessita mais da guerra aberta, pois exerce um controle indireto e contínuo, em um movimento estratégico de degradar a possibilidade de união e autonomia entre os países do Sul Global.
Esse declínio coercitivo é um dos maiores desafios da América Latina: como se manter soberana sem cair na tentação de responder ao império com as mesmas ferramentas brutais, como se o mesmo campo de disputa de guerra aberta ainda fosse possível. No entanto, os EUA, apesar de suas ações desestruturantes, continuam com o controle de muitos pontos críticos: as instituições financeiras globais, a vigilância tecnológica, e, em grande parte, a capacidade de regular o fluxo de informações.
Lula e o Brasil como força de contenção histórica

No epicentro das tensões geopolíticas e econômicas que atravessam a América Latina e o mundo, o Brasil sob a liderança de Lula surge não como um ator que se opõe diretamente ao imperialismo dos Estados Unidos ou à crescente influência da China, mas como um mediador estratégico e equilibrado. Lula não se vê como um herói revolucionário que desafia as grandes potências, mas como um operador que sabe que a verdadeira soberania latino-americana hoje exige mais do que declarações retóricas: exige equilíbrio, inteligência e contenção estratégica.
Ao contrário de outras lideranças regionais, que podem ser tentadas a confrontar os EUA ou a China de forma direta e aberta, Lula tem se destacado pela habilidade em criar pontes entre potências conflitantes. Sua habilidade de manobrar com destreza entre os interesses dos Estados Unidos e da China, enquanto mantém a autonomia do Brasil, é um exemplo claro de maturidade política. Em sua recente conversa com Trump, Lula não apenas resgatou o Brasil da órbita de um confronto direto com o império norte-americano, mas também abriu espaço para uma reaproximação estratégica, algo vital para garantir a continuidade do desenvolvimento econômico e a estabilidade política da América Latina.
A genialidade política de Lula está justamente em compreender que o Brasil, como potência regional, deve ser o estabilizador e não o instigador de conflitos. Ele não propõe uma política de isolamento, mas de cooperação equilibrada, onde as disputas de hegemonia são refreadas pela busca de benefícios concretos para todos os países do continente. Seu papel de liderança no Sul Global, portanto, não é mais o de apenas resistir à imposição do poder imperial, mas de redefinir as regras de engajamento geopolítico, assegurando que o continente tenha espaço para se desenvolver de forma soberana sem ser engolido pelas grandes potências.
Lula também percebe que a interdição estratégica de fluxos é uma realidade que não pode ser ignorada. A batalha por infraestrutura, energia, rotas comerciais e informações é uma das maiores arenas de disputa internacional hoje, e o Brasil, com sua vasta extensão territorial e recursos estratégicos, tem o poder de atuar como uma âncora de estabilidade na América Latina, enquanto também impede que o continente seja dilacerado por forças externas. Sua política externa, portanto, é profundamente pragmática, voltada para a criação de alternativas autônomas de desenvolvimento, mas sempre dentro de uma lógica de equilíbrio multipolar.
Soberania, ou a escolha entre integração e destruição

A América Latina chegou a um ponto em que a soberania já não pode ser confundida com retórica, símbolos nacionais ou autonomia formal de governos. O que está em jogo é algo mais profundo e decisivo: a capacidade concreta de controlar os fluxos que sustentam a vida social. Onde a energia falha, as rotas são bloqueadas, o trabalho é precarizado, a segurança se dissolve e a informação é capturada, não há autodeterminação possível, apenas administração da sobrevivência.
O continente se encontra, portanto, diante de uma encruzilhada histórica. De um lado, a continuidade do regime de interdição estratégica, que promete estabilidade aparente ao custo da fragmentação permanente, da violência difusa e da submissão estrutural a interesses externos. De outro, a construção lenta, difícil e conflitiva de integração soberana, baseada em infraestrutura própria, diversificação de rotas, cooperação regional e capacidade política de conter escaladas imperiais. Essa escolha não é abstrata. Ela se manifesta diariamente nos portos congestionados, nos projetos sabotados, nas sanções normalizadas e nas ameaças explícitas à vida de lideranças que ousam sair da linha.
É nesse cenário que o papel do Brasil ganha dimensão histórica. Ao atuar como força de contenção, mediação e equilíbrio, Lula não oferece um caminho heroico ou espetacular, mas algo mais raro e mais necessário: tempo histórico. Tempo para que o continente não seja empurrado para a destruição, tempo para que alternativas materiais amadureçam, tempo para que a soberania deixe de ser promessa e se torne prática. A disputa em curso não é apenas geopolítica; é civilizatória. E, como toda disputa desse tipo, ela não será vencida por gestos simbólicos, mas pela capacidade de organizar a realidade. É isso que está em jogo na América Latina hoje.

