Brasil sob tutela? Forças Armadas, soberania e a disputa de 1964 a 2025
- Rey Aragon

- 18 de ago.
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Um dossiê analítico sobre o papel das Forças Armadas, suas dependências externas e os cenários possíveis diante da ofensiva geopolítica dos EUA
Este artigo reconstrói, com base documental, a trajetória de intervenção política das Forças Armadas desde 1964 até hoje e mapeia as dependências externas que condicionam decisões estratégicas no Brasil, discutindo de forma prudente o papel atual dos militares diante de pressões externas e crises internas.
Introdução
Este artigo examina de forma direta e documentada o papel das Forças Armadas brasileiras na política e na defesa do país, do golpe de 1964 aos dias atuais. Reconstrói a trajetória de tutela e intervenção, identifica permanências e reencaixes institucionais após 1985, e descreve a arquitetura contemporânea de condicionamentos externos — tecnológicos, regulatórios, logísticos e doutrinários — que molda decisões sensíveis do Estado. O foco recai sobre como acordos, cadeias de suprimento, regimes de licença e rotinas de interoperabilidade (com destaque para a relação com os Estados Unidos) ampliaram capacidades, mas criaram dependências críticas, ao mesmo tempo em que a diversificação com Europa, China e parceiros do Sul Global introduziu novas oportunidades e fricções. A análise aborda o ciclo 2015–2022, o 8 de janeiro de 2023 e a recomposição institucional subsequente, mapeando riscos políticos (emprego interno elástico, tentações tutelares), tecnológicos (motores, sensores, software e criptografia sob licenças externas), orçamentários (ciclo de vida e estoques), cibernéticos (governança de chaves e telemetria) e informacionais (operações de influência). A partir desse diagnóstico, o texto projeta cenários 2025–2028 e oferece um plano de ação pragmático: clarificação legal do emprego interno; política industrial orientada a elos críticos com cláusulas de soberania; previsibilidade orçamentária e métricas públicas de disponibilidade; arquitetura cibernética segmentada sob controle nacional; e educação militar alinhada ao constitucionalismo democrático. O compromisso é jornalístico: diferenciar fatos de inferências e juízos, nomear fontes e limites, e informar o debate público com precisão e sobriedade.
Genealogia do golpismo (1964–1985)

A relação entre as Forças Armadas brasileiras e Washington não nasce em 1964. Desde o pós-Segunda Guerra, acordos de assistência militar enquadraram a modernização de material, doutrina e interoperabilidade no marco da Guerra Fria. O Acordo de Assistência Militar de 1952, promulgado em 1953, formalizou o fornecimento de equipamentos dos Estados Unidos em contrapartida por insumos estratégicos e só foi denunciado pelo Brasil em março de 1977, no contexto de atritos políticos ligados ao tema dos direitos humanos, com término de vigência em 1978.
No triênio 1962 a 1964, a política norte-americana para o Brasil passou da tentativa de contenção por meio de programas econômicos e apoios seletivos a governadores de oposição para a preparação de contingências abertas para o caso de ruptura institucional. Nos dias 30 e 31 de março de 1964, despachos de alto nível registram a decisão de deslocar uma força-tarefa naval rumo à costa brasileira, enviar navios-tanque com combustíveis e montar uma ponte aérea de munições, enquanto a Casa Branca acompanhava em tempo real o desenlace da crise. Essa preparação, conhecida como Operação Brother Sam, previa porta-aviões, destróieres e petroleiros, além de apoio logístico discreto, com chegada estimada a partir de 10 de abril.
A historiografia e os documentos desclassificados também evidenciam a fase pré-cinética de apoio externo. Houve financiamento político em 1962, sinalizações de reconhecimento imediato a um eventual governo militar e planejamento para entregas clandestinas de armamentos a grupos aliados. Em síntese, existia uma arquitetura diplomática para legitimar o novo regime, acoplada a planejamento operacional e suporte logístico que dispensou execução plena porque a deposição se consumou rapidamente por ação de atores domésticos.
Com a vitória do golpe, seguiu-se a institucionalização autoritária por atos de exceção, culminando no Ato Institucional nº 5 em dezembro de 1968, que permitiu fechar o Congresso, suspender o habeas corpus, cassar mandatos e intervir em estados e municípios. O AI-5 marca o endurecimento do regime, baseia a censura prévia, amplia os poderes do Executivo e só é revogado em 1978, já sob a retórica da distensão controlada.
Paralelamente, uma cooperação menos visível, mas decisiva, elevou a capacidade repressiva interna. O programa policial da USAID, por meio do Office of Public Safety, assessorou a modernização da Polícia Federal, estruturou a Academia Nacional de Polícia, o Instituto Nacional de Identificação e o de Criminalística, e treinou quadros estaduais ao longo dos anos 1960. No auge, em 1967, havia dezenas de assessores em campo. Após 1968, pressões políticas nos Estados Unidos e o desgaste de episódios como o sequestro do embaixador norte-americano no Rio aceleraram a redução do programa, encerrado no Brasil em 1972 e abolido globalmente pelo Congresso norte-americano em 1974.
A repressão no Brasil foi política de Estado, com cadeia de comando e método. A Comissão Nacional da Verdade, em seu relatório final de 2014, reconhece centenas de mortes e desaparecimentos e caracteriza as violações como sistemáticas e generalizadas, recomendando responsabilização penal e institucional. Trata-se de evidência oficial doméstica, sintetizada e cotejada com acervos documentais estrangeiros, que permite reconstruir padrões de violência, rotinas de inteligência e cadeias de decisão.
No plano regional, o Brasil não foi apenas receptor de influência. Tornou-se referência e vetor de difusão do chamado modelo brasileiro para vizinhos, especialmente após 1973 no Chile, quando a junta buscou apoio político e técnico em Brasília. Essa convergência desemboca na Operação Condor, formalizada em 1975, um mecanismo multinacional de troca de inteligência, vigilância e eliminação de opositores entre as ditaduras do Cone Sul, do qual o Brasil participou. Registros desclassificados demonstram a coordenação transnacional, a infraestrutura de comunicações da rede e o conhecimento prévio, por atores externos, de planos de assassinatos no exterior.
A face mais crua do período também aparece em documentação estrangeira. Um memorando do diretor da agência de inteligência norte-americana, em abril de 1974, registra que o presidente Ernesto Geisel decidiu manter a política de execuções sumárias de opositores considerados perigosos, sob controle do sistema de informações do Exército e com validação final do então general João Baptista Figueiredo. É uma peça primária que evidencia a o caráter deliberado da violência de Estado no coração do regime.
Mesmo em meio à distensão, a relação Brasil–Estados Unidos passou por choques. Em 1977, o governo Geisel denunciou o acordo militar de 1952 após atritos com Washington sobre direitos humanos. A decisão não rompeu a cooperação, mas sinalizou autonomia tática de Brasília ao custo de redesenhar canais de assistência e treinamento. A nota de denúncia foi oficializada por decreto e marca uma inflexão que antecede a transição política.
Ao final do ciclo, em 1985, resta um legado ambivalente. De um lado, a doutrina de segurança nacional foi internalizada, com efeitos duradouros na cultura institucional. De outro, as capacitações técnico-operacionais foram ampliadas, inclusive na área policial e de inteligência. A rede regional de colaboração repressiva deixou memórias institucionais que atravessaram a transição. O conjunto documental doméstico e estrangeiro permite reconstituir a engrenagem: decisão política no topo, arcabouço normativo de exceção, logística e apoio externos que, em momentos-chave, forneceram meios e legitimidade internacional ao regime.
Transição e permanências (1985–2002)

A redemocratização não apagou de imediato as heranças autoritárias. A Constituição de 1988 redefiniu o lugar das Forças Armadas sob controle civil e subordinadas ao presidente, mas também cristalizou ambiguidades interpretativas sobre o papel interno das tropas ao consagrar a garantia da lei e da ordem como hipótese de emprego. Ao lado da anistia de 1979, isso produziu um paradoxo: o novo regime exigia profissionalismo e distanciamento da política, enquanto mantinha frestas jurídicas e culturais para a tutela. Nos anos 1990, sucessivas operações de emprego interno em grandes centros sinalizaram a elasticidade desse dispositivo, mesmo quando justificadas por crises de segurança pública ou grandes eventos.
A reconfiguração institucional do setor avançou em marcos relevantes. A criação do Ministério da Defesa buscou unificar a autoridade civil sobre Marinha, Exército e Aeronáutica, e a Política de Defesa Nacional estabeleceu um horizonte doutrinário comum. O Sistema Brasileiro de Inteligência foi instituído para substituir estruturas herdadas da ditadura por um arranjo legalmente demarcado, ainda que com tensões entre cultura de sigilo e controle democrático. No plano tecnológico, o projeto de vigilância da Amazônia se impôs como símbolo da inserção em cadeias de alta tecnologia, com fornecimento estrangeiro em sensores, redes e integração de sistemas. Esse arranjo inaugurou uma gramática de dependências técnicas e contratuais que reapareceria em programas posteriores.
A cooperação com os Estados Unidos manteve-se ativa, mas sem a densidade política da Guerra Fria. Pelos corredores de treinamento, missões de assistência e programas de intercâmbio, persistiram canais de socialização doutrinária e de interoperabilidade, enquanto a agenda hemisférica de combate ao narcotráfico funcionou como moldura para exercícios e coordenação de fronteiras. A ideia de “normalização” pós-Guerra Fria, no entanto, conviveu com a lenta sedimentação de uma cultura de missões internas e com a permanência de redes de sociabilidade entre elites civis e militares, que voltariam a pesar quando a política entrasse em novo ciclo de conflito.
Reordenação do campo de defesa (2003–2014)

A partir de 2003, o Estado brasileiro passou a articular uma estratégia de autonomia na área de defesa que combinou diplomacia ativa com reindustrialização do setor. A atualização da Política de Defesa e a aprovação da Estratégia Nacional de Defesa, seguida pela publicação do Livro Branco, reorganizaram objetivos, capacidades e prioridades, com ênfase em três eixos tecnológicos de longo prazo: nuclear, espacial e cibernético. Essa arquitetura conceitual deu lastro a programas industriais que reposicionaram o país no mapa de fornecedores e integradores.
No mar, o programa de submarinos com a França consolidou a transferência de tecnologia e a construção de infraestrutura naval dedicada, ao mesmo tempo em que ancorou uma aposta estratégica no futuro submarino de propulsão nuclear. Na aviação, o programa de helicópteros de médio porte com fabricação no país e offsets associados elevou a escala e a complexidade da base industrial. No transporte tático, o desenvolvimento de uma aeronave nacional de nova geração integrou cadeias globais de motores, aviônicos e certificação, abrindo mercados e, simultaneamente, introduzindo condicionantes regulatórios externos. No Exército, o início do sistema integrado de monitoramento de fronteiras e a renovação de viaturas sinalizaram uma agenda de comando e controle distribuído e de consciência situacional de largo espectro. Em todos esses casos, a retórica de autonomia caminhou junto com contratos que contêm cláusulas de propriedade intelectual, restrições de reexportação e dependência de sobressalentes e software.
No plano diplomático-militar, a liderança brasileira na missão de estabilização no Haiti inaugurou um ciclo de projeção expedicionária sob mandato das Nações Unidas. A experiência consolidou capacidades de comando, logística e operações urbanas, além de dar visibilidade à força combinada e às relações com parceiros ocidentais. Em paralelo, aprofundou-se a cooperação Sul–Sul, com exercícios navais trilaterais e iniciativas de padronização modesta com países do hemisfério Sul, compondo um mosaico de interlocutores que incluía Índia, África do Sul e parceiros regionais.
O relacionamento com os Estados Unidos, nesse período, combinou pragmatismo e fricções. A tentativa frustrada de viabilizar comercialmente o centro de lançamentos no Maranhão no início da década anterior deixara cicatrizes políticas, e esporádicas divergências em temas de soberania e governança global produziam atritos. Em 2013, revelações sobre espionagem contra autoridades e empresas brasileiras geraram forte desgaste e cancelamento de uma visita de Estado, com repercussões simbólicas no campo da confiança estratégica. Ainda assim, canais operacionais permaneceram abertos, com exercícios, missões e diálogo continuado entre ministérios e comandos.
A decisão de selecionar um caça de origem sueca ao final desse ciclo ilustra a estratégia de diversificação. O programa foi estruturado com transferência de tecnologia e integração local de aviônicos de empresa instalada no Brasil, mas depende de um motor de origem norte-americana e de cadeias de fornecimento reguladas por regimes de exportação ocidentais. Esse é o desenho típico da autonomia possível no capitalismo tecnológico contemporâneo: incorpora conhecimento, abre capacidade de engenharia e integração e, ao mesmo tempo, mantém travas de propriedade intelectual e de licenciamento sobre componentes críticos. O resultado é ambivalente do ponto de vista soberano e decisivo do ponto de vista operacional.
Tutela, lawfare e crise prolongada (2015–2022)

O ciclo que se abre em 2015 recoloca a tutela militar como variável política. A crise econômica e a escalada de conflito institucional estimulam leituras expansivas sobre a missão das Forças Armadas no interior da ordem doméstica. A interpretação elástica da garantia da lei e da ordem, o emprego recorrente de operações em grandes centros e a reemergência de vozes fardadas no debate público reaproximam a instituição do jogo político. No plano simbólico, a presença de oficiais da ativa e da reserva em cargos civis de alta visibilidade naturaliza uma participação que a Constituição pretendia excepcional. No plano discursivo, manifestações públicas de comandantes às vésperas de decisões sensíveis contribuem para criar constrangimentos informais sobre atores civis. É nesse ambiente que floresce a linguagem de tutela, com apelos à autoridade militar como suposto poder moderador, uma construção sem base constitucional que fricciona o princípio do controle civil.
A dimensão jurídico-política da crise produz um terreno fértil para o lawfare. A sobreposição entre processos criminais de grande impacto, vazamentos seletivos, interação midiática e temporalidades judiciais assimétricas desloca o embate político para arenas judiciais e para o ecossistema informacional. A instituição militar não é a protagonista formal desse processo, mas parte de seus quadros aproxima-se do debate público por meio de declarações, cargos e articulações. O resultado é uma ambiência na qual a fronteira entre defesa e política volta a se embaralhar. A cultura organizacional internalizada desde os anos da doutrina de segurança nacional reaparece como repertório, agora reembalada pela gramática contemporânea de combate à corrupção, ordem pública e crise das instituições.
Enquanto isso, no plano externo, o Brasil aprofunda a arquitetura de cooperação militar com os Estados Unidos e parceiros europeus. O acordo de cooperação em defesa está em vigor, o status de aliado principal extra-OTAN é concedido e o instrumento de pesquisa, desenvolvimento, testes e avaliação é ratificado pelo Congresso brasileiro. Intercâmbios, exercícios e aquisições avançam, com ganhos de capacidade operacional e custos soberanos embutidos na dependência de cadeias tecnológicas reguladas por terceiros. A mesma década que assiste ao adensamento dessa malha é também a que presencia a expansão de um ecossistema digital de desinformação, no qual atores civis e militares são alvo e, pontualmente, vetor. A percepção difusa de crise e a circulação de narrativas de ruptura funcionam como pano de fundo para a eleição de 2018 e para as tensões acumuladas até 2022.
O período se encerra com sinais claros de corrosão das cercas entre quartéis e política. Relatórios, depoimentos e documentos públicos indicam pressões, omissões e interferências incompatíveis com o profissionalismo apolítico exigido de uma força republicana. Ao mesmo tempo, é inegável a existência de segmentos institucionalistas que resistem à politização e defendem a separação de esferas. O quadro é heterogêneo, mas a tendência de reentrada militar na política está demonstrada, e ela se dá menos por tanques nas ruas e mais por gestos, silêncios, cargos, tweets e pareceres que pesam sobre decisões civis.
Os ataques de 8 de janeiro e a recomposição institucional (2023–2025)

Os ataques às sedes dos três poderes em 8 de janeiro de 2023 expõem a fase aguda do entrelaçamento entre crise política, radicalização informacional e ambiguidades na relação entre Forças Armadas e poder civil. A investigação conduzida por órgãos de controle, Judiciário e comissões parlamentares identifica falhas graves de comando e controle, omissões culposas e condutas dolosas de agentes públicos e privados. A análise do dispositivo de proteção de Brasília revela vulnerabilidades de planejamento, de cadeia de comando e de integração interagências que não são aceitáveis em um Estado democrático. No plano simbólico, a cena de vandalismo contra o núcleo da institucionalidade nacional marca uma linha vermelha. No plano prático, ela catalisa medidas administrativas, trocas de comando, processos disciplinares e ações penais que buscam restabelecer a autoridade civil sobre todos os órgãos do Estado, inclusive sobre frações da máquina de segurança que se desviaram de suas funções.
A resposta do sistema político se organiza em três frentes. A primeira é jurídica e disciplinar, com responsabilização de envolvidos, correção de normativas e revisão de rotinas de emprego de forças. A segunda é organizacional, com reforço do controle civil no Ministério da Defesa, clarificação de competências entre Forças Armadas, forças policiais e órgãos de inteligência, e barreiras mais rígidas à ocupação política de postos técnicos por militares da ativa. A terceira é cognitiva e informacional, com medidas para conter redes de desinformação, aperfeiçoar a comunicação pública e proteger o processo eleitoral de ataques especulativos. O conjunto é ainda incompleto e objeto de disputa, mas aponta na direção correta: reconduzir as Forças Armadas à sua missão constitucional, separar Defesa de Política e reconstituir a confiança entre instituições.
No plano externo, a recomposição institucional convive com a manutenção da malha de cooperação internacional. Exercícios, missões e projetos de P e D seguem adiante, ao mesmo tempo em que o Brasil sinaliza multivetorialidade com parceiros europeus e asiáticos. A presença de tropas estrangeiras em exercícios no território nacional, inclusive de países em competição estratégica entre si, confere visibilidade à estratégia de equilíbrio. Essa exibição de autonomia relativa só é sustentável se ancorada em governança legal sólida e em capacidade de absorver, domesticar e certificar tecnologias críticas. Sem isso, a multivetorialidade vira retórica e as alavancas regulatórias externas continuam definindo prazos, disponibilidade de peças, chaves de software e cursos de ação.
A principal lição dos anos recentes é inequívoca. Quando a política degrada e o ecossistema informacional é capturado por operações de manipulação, a a tentação tutelar reaparece. A contenção desse impulso não depende apenas de decretos e discursos. Exige um arranjo robusto de controle civil, transparência orçamentária, educação militar comprometida com o constitucionalismo democrático, cadeias logísticas menos vulneráveis a vetos externos e uma doutrina de defesa da legalidade que inclua a defesa da esfera pública informacional. O restabelecimento da normalidade democrática após 8 de janeiro não é um ponto de chegada, é um processo de longo prazo que precisa ser mantido com rigor.
Arquitetura contemporânea de dependências e condicionamentos externos

A malha que condiciona as decisões de defesa do Brasil hoje é composta por quatro camadas entrelaçadas: a camada jurídico-institucional, que define o que pode ser trocado e em que termos; a camada regulatória-tecnológica, que controla componentes, software e chaves criptográficas; a camada industrial-logística, que determina prazos, custos e disponibilidade de sobressalentes; e a camada operacional-doutrinária, que socializa procedimentos, táticas e linguagens comuns. Somadas, essas camadas criam uma interdependência assimétrica que amplia capacidades mas também impõe limites de soberania em cenários de crise.
Na camada jurídico-institucional, destacam-se os instrumentos que estruturam a cooperação com os Estados Unidos: o acordo de cooperação em defesa vigente desde meados da década de 2010, o status de aliado principal extra-OTAN concedido no fim da década de 2010 e o acordo de pesquisa, desenvolvimento, testes e avaliação ratificado no início dos anos 2020. Esses instrumentos organizam intercâmbios, proteção de informações classificadas, projetos de P&D e roteiros de exercícios. Em paralelo, o acordo de salvaguardas tecnológicas para uso do centro de lançamentos no Maranhão assegura a proteção de tecnologias sensíveis de origem estrangeira. Na prática, são arcabouços que abrem portas para capacitação, certificação e inserção industrial, mas submetem atividades a cláusulas de confidencialidade, auditorias de uso final e consentimentos prévios de terceiros em casos de reexportação, integração de novos armamentos ou mudanças de configuração.
A camada regulatória-tecnológica é o coração do condicionamento. Regimes de controle de exportação, como as regras que protegem tecnologia e software de origem norte-americana, alcançam motores, módulos de aviônica, enlaces de dados, criptografia embarcada e pacotes de manutenção. Isso significa que plataformas nascidas de programas de diversificação — por exemplo, um caça de projeto sueco ou um transporte tático desenvolvido no país — carregam núcleos críticos provenientes de cadeias reguladas por Washington e aliados. Em termos concretos, um motor turbofan, um radar de missão, um computador de voo ou um conjunto de chaves criptográficas pode depender de licenças periódicas, verificações de usuário final e limites explícitos de integração de armas e sensores de terceiros. Em cenários de atrito internacional, essas torneiras podem ser parcialmente fechadas por atrasos, indeferimentos de licença, reprogramações de software ou restrições de assistência técnica.
Na camada industrial-logística, o desenho contemporâneo da base de defesa brasileira é híbrido: há produção local relevante e transferência de tecnologia em hélices do ecossistema aeroespacial, na construção naval e em sistemas terrestres, mas elos decisivos permanecem externos. O ciclo de vida de uma fragata moderna, de um helicóptero multimissão, de um caça de quarta-geração avançada ou de uma viatura blindada 4×4 exige cadeias de suprimento multinacionais, com catálogos de peças, certificações, firmware e updates que não são plenamente controlados pelo usuário final. Os prazos de “grounding” por falta de sobressalente, a necessidade de enviar módulos para “overhaul” no exterior e a dependência de bancos de teste e bancadas proprietárias são pontos de estrangulamento previsíveis. Por isso, mesmo quando há offset e produção no país, os gargalos tendem a residir nos módulos de maior valor tecnológico agregado e nos elementos de software e criptografia.
A camada operacional-doutrinária materializa o condicionamento no cotidiano. Exercícios combinados e intercâmbios com parceiros tradicionais criam interoperabilidade útil — em comunicações, procedimentos de comando e controle, coordenação de fogos, operações aerotransportadas e selva —, mas também sedimentam um léxico tático, padrões de reporte e rotinas de certificação alinhados a escolas externas. Isso não é um problema em si; ao contrário, entrega proficiência e padrões medidos. O custo soberano aparece quando a lógica de interoperabilidade passa a orientar aquisições e priorizações orçamentárias em função da compatibilidade com ecossistemas de um só polo, reduzindo margens para integrar sensores, armas ou enlaces de outros fornecedores. O mesmo raciocínio vale para o campo cibernético: capacitações e doutrina importadas são valiosas, mas precisam ser domesticadas em arquiteturas de rede segmentadas, com governança nacional sobre chaves, logs, telemetria e resposta a incidentes.
Há, ainda, condicionamentos específicos no domínio espacial. O uso de infraestrutura de lançamentos com tecnologia estrangeira, a participação em programas de observação da Terra e os acordos de compartilhamento de consciência situacional espacial ampliam a inserção do país em cadeias críticas, mas implicam obrigações de proteção de informação e limites de acesso de terceiros. O benefício operacional — dados, efemérides, rastreio de detritos, janelas de lançamento — é inegável; a contrapartida é o cuidado redobrado com segmentação de uso civil-militar, contratos de dados e compatibilidades regulatórias.
Por fim, o canal financeiro-procedimental também importa: aquisições via programas governamentais do país fornecedor oferecem preço, treinamento e prazos competitivos, porém amarram cronogramas a cartas de oferta e aceitação, inspeções e relatórios que reforçam os mecanismos de compliance e de verificação de uso final. Programas de educação e treinamento internacional, por sua vez, fortalecem redes profissionais duradouras e facilitam a adoção de técnicas, táticas e procedimentos. O desafio é equilibrar esses ganhos com a construção de uma massa crítica doméstica de ensino superior militar, engenharia de sistemas e certificação independente.
O resultado das quatro camadas é ambivalente: o Brasil elevou seu patamar de capacidade por meio de acordos, programas e cooperação, mas paga esse avanço com graus distintos de heteronomia regulatória e técnica. O problema estratégico não é a cooperação em si; é a ausência de um plano de substituição progressiva de conteúdo sensível, de estoques regulados para crises, de cláusulas contratuais que protejam o usuário final e de uma governança que imponha, desde a origem, interoperabilidade “aberta” em enlaces, dados e integração de sensores. Sem isso, a autonomia permanece retórica e a margem de manobra do poder civil fica vulnerável justamente quando mais precisa de liberdade para decidir.
Diversificação e competição de influências: China, Europa e Sul Global

A política de defesa brasileira no presente opera sob uma lógica de multivetorialidade: ampliar o leque de parceiros para elevar capacidades, reduzir assimetrias e aumentar margem de manobra do poder civil. Essa escolha não elimina dependências estruturais, mas as torna negociáveis. O resultado é um tabuleiro competitivo em que Estados Unidos, China e atores europeus disputam acesso, interoperabilidade e posição em cadeias de valor de alto conteúdo tecnológico.
Com a China, o núcleo mais consistente está no campo espacial e científico, com programas de observação da Terra de uso civil e potencial dual. Ao redor desse eixo, a diplomacia militar avançou por meio de visitas navais, intercâmbios e participação em exercícios no território brasileiro, o que sinaliza ambição de Pequim em ocupar lugares de prestígio na agenda de defesa do país sem, até aqui, substituir a densidade operacional que o Brasil mantém com parceiros ocidentais. Em tecnologias de informação e comunicação, fóruns do Sul Global discutem segurança de TIC e resposta a incidentes, mas a tradução desses compromissos em arquitetura de rede de uso militar exige segmentação rígida entre camadas civil e de missão, governança de chaves e telemetria controlada nacionalmente. O ganho estratégico com a China está no aprendizado tecnológico e na diversificação simbólica; o risco é o atrito regulatório com sistemas de controle ocidentais quando houver interseção sensível.
A Europa ocupa o espaço de parceira industrial estruturante. Submarinos com transferência de tecnologia, fragatas com integração local e helicópteros montados no Brasil consolidaram uma base de produção com efeitos de derrame sobre engenharia, certificação e cadeia de fornecedores. Esses programas vêm acompanhados de offsets, treinamento e acesso a documentação técnica, mas preservam para o fornecedor a propriedade intelectual dos módulos de maior valor, os regimes de atualização de software e, por vezes, a decisão sobre reexportações. Em termos soberanos, isso cria autonomia funcional em tempos normais e dependência crítica em cenários de fricção, quando licenças, sobressalentes e assistência técnica podem se tornar variáveis de poder.
A relação com Suécia e Israel é exemplar do equilíbrio entre ganho de know-how e travas estratégicas. No caça, a transferência de tecnologia criou massa crítica em integração de aviônicos e sistemas de missão, fortalecendo a engenharia local e a capacidade de teste e certificação. Contudo, o núcleo propulsivo depende de cadeia norte-americana sujeita a licenças e controles. Em sensores, displays e computadores de missão, a presença de fornecedores israelenses de alta performance aumenta a disponibilidade de soluções de ponta, mas amarra a evolução do sistema a calendários de atualização, padrões proprietários e condicionantes de integração de armas de terceiros.
A cooperação Sul–Sul materializa-se em exercícios navais trilaterais, missões combinadas e intercâmbios técnicos com Índia e África do Sul. Essa trilha amplia repertório, oferece cenários de adestramento realistas no Atlântico Sul e cria redes de oficiais que compartilham desafios semelhantes de modernização, custos e autonomia. O ganho é político e operacional; o limite é industrial, pois a maior parte do conteúdo crítico continua ancorada em ecossistemas ocidentais.
Parcerias com a Rússia e outros atores sancionados permanecem, por desenho, periféricas. O custo potencial de sanções secundárias em um ambiente de cadeias fortemente conectadas a componentes ocidentais desaconselha movimentos que possam acionar vetos regulatórios. O Brasil tem evitado essa colisão, priorizando trilhas que preservem certificações internacionais, acesso a peças e linhas de crédito.
A competição de influências se acirra no plano doutrinário-operacional. Exercícios combinados com múltiplos parceiros elevam a proficiência, mas também consolidam léxicos táticos, enlaces de dados e protocolos de comando e controle alinhados a escolas específicas. O nó estratégico está na arquitetura: quanto mais aberta, modular e documentada for a integração de sensores e armas, maior a liberdade para combinar fornecedores sem incorrer em penalidades técnicas. Isso vale para comunicações seguras, criptografia, softwares embarcados e ferramentas de apoio à decisão. A ausência de padrões abertos e de documentação plena cria aprisionamento tecnológico disfarçado de interoperabilidade.
Reduzir vulnerabilidades nesse ambiente competitivo requer cláusulas contratuais que antecipem o conflito. É preciso exigir direito de integração de terceiro desde a origem, acesso auditável a interfaces de software e dados, depósito em escrow de documentação crítica, estoques regulados de sobressalentes para crises e cronogramas de atualização com garantias de suporte mínimo independentemente de flutuações políticas. No plano industrial, a prioridade deve recair sobre elos de alto valor: propulsão, radares e eletrônica de missão, materiais compósitos, criptografia e bancos de teste. No plano cibernético, a condição de possibilidade da multivetorialidade é uma governança nacional dura de chaves, logs, telemetria e resposta a incidentes, com segmentação física e lógica entre redes de treino, de ensaio e de operação.
Os sinais de pressão externa tendem a aparecer como “ruídos técnicos”: atrasos em licenças, reprogramações de software que postergam certificações, redução de convites para exercícios e recados informais sobre compatibilidades de sistemas. Monitorar esses indicadores e precificar seus efeitos no planejamento plurianual é parte do trabalho de Estado. A multivetorialidade só produz autonomia real quando é sustentada por governança jurídica, arquitetura técnica aberta, disciplina logística e uma estratégia de comunicação que explique ao público por que diversidade de parceiros não significa ambiguidade de princípios, e por que controle civil e soberania tecnológica são condições para qualquer cooperação que se pretenda de alto nível.
Mapa interno das Forças Armadas hoje

As Forças Armadas brasileiras são uma instituição de Estado com missão constitucional definida, cadeia de comando centralizada no Presidente da República por meio do Ministério da Defesa e culturas organizacionais distintas entre Marinha, Exército e Aeronáutica. Essa arquitetura formal convive com legados históricos, incentivos corporativos e redes de socialização profissional que moldam visões de mundo e atitudes políticas. O controle civil efetivo não depende apenas da letra da Constituição, mas de como esses vetores se combinam no cotidiano: currículos de formação, critérios de promoção, distribuição de poder entre comandos, vínculos com fornecedores e hábitos operacionais internalizados ao longo de décadas.
A Marinha preserva forte ethos de Estado-maior, com cultura técnica e de engenharia naval orientada por programas estratégicos de longo prazo. A lógica de programa, típica da construção naval, favorece planejamento plurianual, contratos complexos, relacionamentos duradouros com estaleiros e integradores e um senso de continuidade que tende a amortecer solavancos conjunturais. A prioridade histórica em negação do uso do mar, proteção de infraestruturas críticas e presença no Atlântico Sul convive com a ambição tecnológica do submarino de propulsão nuclear e com a renovação de escoltas, o que reforça a centralidade da relação com a indústria e com cadeias internacionais de sensores, armas e sistemas. Essa centralidade cria disciplina institucional, mas também pontos de condicionamento externo e, por consequência, necessidade de governança civil altamente qualificada sobre contratos, cronogramas e salvaguardas.
O Exército, por sua vez, combina amplitude territorial, capilaridade administrativa e cultura operacional marcada pela experiência em operações internas e fronteiriças. Essa capilaridade o torna o ramo mais exposto a demandas políticas e sociais de curto prazo e explica a força de repertórios como garantia da lei e da ordem, defesa da infraestrutura crítica e presença em faixas sensíveis do território. O núcleo duro de planejamento operacional e educação superior militar convive com uma sociologia mais heterogênea nos níveis intermediários de comando, onde trajetórias profissionais, redes de camaradagem e experiências em operações de grande visibilidade moldam percepções sobre papel institucional. O resultado é uma instituição com alto profissionalismo técnico nas áreas de Estado-maior e, simultaneamente, com zonas de fricção mais porosas a discursos de tutela quando a crise política desorganiza o sistema civil.
A Força Aérea opera na fronteira tecnológica da integração de plataformas, sensores e enlaces, com cultura de engenharia de sistemas e de certificação aeronáutica que a aproxima de ecossistemas industriais de alta intensidade de conhecimento. Essa proximidade estimula visão tecnocrática e meritocrática, com foco em disponibilidade, segurança de voo e interoperabilidade. Em termos organizacionais, a FAB depende de cadeias internacionais de motores, aviônicos e software mais do que as demais, o que reforça a necessidade de planejamento regulatório e de políticas de mitigação de risco de fornecedores. No plano da cultura institucional, isso tende a produzir uma atitude pragmática frente à cooperação externa e uma sensibilidade mais aguda para prazos, peças e certificações, com implicações diretas para a forma como o alto comando lê cenários de atrito internacional.
A educação militar superior é um vetor silencioso e decisivo. Academias, escolas de comando e Estado-maior e instituições de altos estudos funcionam como filtros de socialização e como usinas de doutrina. A matriz curricular, as bibliografias, as visitas e intercâmbios e os critérios de avaliação de desempenho definem o léxico de planejamento, as lentes analíticas e as referências normativas que acompanharão os oficiais por toda a carreira. Quando essas matrizes se atualizam para incorporar governança democrática, direito constitucional aplicado à defesa, economia política da indústria e proteção da esfera pública informacional, reduzem-se os incentivos à tutela e ampliam-se as competências para dialogar com o poder civil. Quando permanecem ancoradas em paradigmas marcados por ameaças internas indistintas, abrem-se brechas para confusões conceituais sobre missão, inimigo e emprego do instrumento militar.
Os incentivos corporativos e o desenho de carreiras também condicionam atitudes. Promoções por merecimento, cursos de altos estudos, critérios de antiguidade e experiências chave em comandos operacionais definem quem ascende. Sistemas de remuneração, previdência e benefícios influenciam coesão e percepção de status. Regras claras e previsíveis, aderentes a desempenho, reforçam o ethos profissional; zonas cinzentas, interferências políticas ou uso recorrente de militares em funções civis fora da excepcionalidade constitucional distorcem incentivos e embaralham as fronteiras entre defesa e governo. O mesmo vale para a ocupação de cargos civis estratégicos por oficiais da ativa: quanto mais frequente e prolongada, maior o risco de confusão de papéis e de erosão da neutralidade institucional.
Há clivagens internas que importam para o diagnóstico. Em todas as Forças existem segmentos institucionalistas que defendem com convicção a submissão ao poder civil, o foco em capacidades e a separação estrita entre política e defesa. Há também correntes ideológicas minoritárias, mais propensas a ler crises políticas como convites à arbitragem fardada. Entre esses polos, um grupo corporativista pragmático tende a seguir o fluxo dominante, reagindo a incentivos de carreira, prestígio e orçamento. A reserva e a ativa formam ecossistemas interligados, mas com comportamentos distintos: a reserva, livre das amarras da disciplina funcional, participa mais do debate público e, às vezes, empurra as bordas do aceitável; a ativa precisa ser protegida desse transbordamento por regras claras e comando firme.
As interfaces com outros órgãos do Estado constituem outro eixo sensível. Operações interagências com polícias, órgãos de inteligência e agências civis exigem doutrina de coordenação que preserve a primazia civil e a especificidade de cada missão. Onde faltam protocolos, multiplicam-se improvisos e zonas cinzentas. A governança de informações, de comunicações seguras e de ciberdefesa requer segmentação técnica e regras de acesso, com logs, trilhas de auditoria e liderança civil capaz de arbitrar conflitos entre sigilo operacional e transparência republicana. No campo informacional, a instituição precisa conciliar presença institucional responsável com neutralidade política, evitando a captura de canais oficiais por agendas de ocasião.
A relação com a indústria e com fornecedores estrangeiros transversaliza as Forças. A maturidade na gestão de programas, a capacidade de especificar requisitos com cláusulas de soberania, a disciplina logística e a competência para administrar contratos complexos distinguem comandos mais robustos daqueles vulneráveis a atrasos, sobrepreços e dependências não mapeadas. A profissionalização dessa interface não é detalhe administrativo: é proteção estratégica contra alavancas externas de veto regulatório e contra dinâmicas internas de captura por interesses de curto prazo. Lideranças com domínio técnico, jurídico e orçamentário reduzem riscos e ampliam a margem de manobra do Estado.
O retrato que emerge é o de uma instituição heterogênea, com ilhas de excelência técnica e doutrinária, bolsões de conservadorismo político e uma maioria que reage a incentivos e exemplos vindos do topo. Em contextos de normalidade democrática e comando civil exercido com clareza, a inércia é favorável ao profissionalismo. Em cenários de crise, ambiguidade e vacilo institucional, brotam interpretações maximalistas de missão. Por isso, o mapa interno das Forças Armadas só pode ser lido junto com o mapa externo de dependências tecnológicas e de pressões geopolíticas: as duas cartografias se reforçam. Onde há governança civil competente, educação militar atualizada, contratos blindados por cláusulas de soberania e doutrina de emprego estritamente constitucional, a tradição profissional fala mais alto. Onde faltam esses pilares, as zonas cinzentas se alargam e a tentação tutelares volta a rondar.
Diagnóstico: onde está o risco real

O risco político imediato reside na elasticidade do emprego interno e na sobrevivência de uma cultura de tutela que reaparece quando o sistema civil entra em crise. A interpretação abusiva do papel constitucional das Forças Armadas como suposto poder moderador, somada ao uso reiterado de operações de garantia da lei e da ordem para problemas ordinários de segurança pública, desloca a fronteira entre defesa e governo. Esse deslizamento muda incentivos: quanto mais a política civil convoca militares para arbitragens extraconstitucionais ou para tarefas que não exigem instrumento militar, maior a probabilidade de que segmentos fardados se percebam como árbitros, e não como executores de diretrizes legítimas.
O risco jurídico-institucional deriva de lacunas normativas e de práticas administrativas que corroem o controle civil efetivo. Ambiguidades em leis infraconstitucionais, ausência de protocolos vinculantes para emprego interno e nomeações que misturam ativa e funções civis estratégicas produzem zonas cinzentas. Sem regras claras de incompatibilidade, quarentena e limites de atuação pública de oficiais em postos civis, abre-se espaço para conflitos de interesse, dupla lealdade e captura de agendas setoriais por visões corporativas.
No plano tecnológico-logístico, o risco é estrutural: reside nos núcleos críticos de plataformas que dependem de licenças, software, chaves criptográficas e sobressalentes controlados por terceiros. Em um caça avançado, o motor, certos módulos de aviônica e a integração de armamentos obedecem a regimes regulatórios externos; em um transporte tático, a propulsão e cadeias de certificação de segurança de voo; em uma fragata moderna, os mísseis, radares e sistemas de combate; em helicópteros multimissão, a suíte de missão e partes do pacote de manutenção. Em cenário de atrito, atrasos ou negativas de licença, reprogramações de software e restrições de assistência técnica podem imobilizar frações relevantes da força, com impacto imediato na prontidão e na dissuasão.
O risco orçamentário-fiscal manifesta-se na descontinuidade de financiamentos plurianuais e na subestimação do custo do ciclo de vida. Programas estratégicos de alto conteúdo tecnológico exigem previsibilidade de fluxo financeiro, contratos de suporte de longo prazo e estoques regulados de itens críticos. Cortes abruptos, contingenciamentos e reprogramações frequentes desestruturam cronogramas, elevam custos unitários e degradam disponibilidade. A ausência de métricas públicas de disponibilidade média, tempos de reparo e percentuais de canibalização encobre a erosão operacional até que crises revelem gargalos.
O risco informacional-cibernético é duplo: por fora, operações de influência e campanhas coordenadas degradam a confiança pública e pressionam instituições; por dentro, dependências de soluções proprietárias e governança frouxa de chaves, logs e telemetria expõem redes de missão a interferências e atrasos de correção. Quando doutrina e capacitação cibernética são importadas sem as domesticar em arquitetura segmentada e sob controle nacional, a interoperabilidade vira vetor de vulnerabilidade. A ausência de exercícios regulares de mesa e de campo para incidentes cibernéticos multiplica a chance de surpresa adversa.
O risco de doutrina e educação emerge quando currículos e bibliografias não atualizam a cultura institucional para o constitucionalismo democrático, o controle civil e a proteção da esfera pública informacional. Matrizes formativas centradas em ameaças internas difusas e em narrativas de “inimigo interno” induzem confusões sobre missão e emprego do instrumento militar. Sem revisão de referências, avaliação crítica de tradições e abertura a escolas civis de pensamento, a socialização profissional pode naturalizar a tutela como solução.
O risco de captura industrial e contratual aparece quando o Estado especifica mal, negocia pior e fiscaliza pouco. Interfaces opacas com fornecedores, ausência de cláusulas de soberania (direito de integração de terceiro, acesso a interfaces, depósito de documentação crítica, limites a geo-bloqueios de software), cronogramas de atualização sem garantias e estoques não regulados geram aprisionamento tecnológico. Em paralelo, ciclos de portas giratórias entre cargos públicos e fornecedores — sem regras duras de transparência e quarentena — distorcem prioridades e aumentam a probabilidade de sobrepreço, atraso e escolha subótima.
O risco de comando e disciplina surge quando fronteiras entre ativa e reserva se dissolvem no debate público, e quando manifestações políticas abertas de oficiais em atividade não enfrentam resposta administrativa proporcional. A coesão de tropa e a neutralidade institucional dependem de sinais claros vindos do topo: tolerância com indisciplina pública e politização nas redes sociais corrói a autoridade do comando e contamina níveis intermediários.
O risco interagências decorre de cooperação sem doutrina com polícias, órgãos de inteligência e autoridades civis. Sem protocolos de comando e controle, regras de engajamento e trilhas de auditoria definidas, decisões dispersam-se, responsabilidades se diluem e improvisos ocupam o lugar de planejamento. Em crises, essa arquitetura frágil se parte nos pontos de emenda.
O risco geopolítico-exógeno se materializa quando disputas entre potências atravessam cadeias de fornecimento e regimes de licença. Pressões regulatórias, condicionais em exercícios e treinamentos e critérios políticos para acesso a dados e capacidades de parceiros podem reduzir, de um ciclo para outro, a prontidão em domínios-chave. Em paralelo, movimentos internos que sinalizem flerte com parceiros sancionados ativam mecanismos automáticos de veto que transbordam para sistemas com conteúdo de múltiplas origens.
Há, por fim, um risco sistêmico: a simultaneidade. A combinação de tensão política doméstica, choque fiscal, atraso regulatório externo e incidente cibernético pode produzir um “momento de travamento” em que prontidão, comunicação e legitimidade se degradam ao mesmo tempo. A mitigação desse risco exige redundância deliberada: governança jurídica clara, estoques regulados, arquitetura técnica aberta, contratos com salvaguardas, educação atualizada e comando civil exercido com autoridade. Sem isso, o sistema continua navegando com uma margem de erro pequena demais para o tamanho do país e do desafio.
Cenários prospectivos (2025–2028)

A trajetória das relações entre Forças Armadas, Estado brasileiro e potências externas pode seguir quatro trilhas principais até 2028, com combinações entre si. O primeiro cenário é o de continuidade com contenção. Nele, o controle civil se consolida por meio de regras claras sobre emprego interno, quarentenas entre ativa e cargos civis, transparência orçamentária e revisão curricular no ensino superior militar. A cooperação internacional permanece ativa e multivetorial, porém condicionada por cláusulas de soberania em contratos, segmentação cibernética e direito de integração de terceiros em sistemas críticos. A prontidão melhora com estoques regulados, planejamento plurianual realista e métricas públicas de disponibilidade. Os custos políticos diminuem porque a instituição passa a responder menos a incentivos conjunturais e mais a rotinas profissionais estabilizadas. Trata-se de uma normalização virtuosa que exige disciplina institucional do lado militar e liderança técnica persistente do lado civil.
O segundo cenário é o de estresse e barganha. A pressão fiscal e ruídos regulatórios externos atrasam licenças e sobressalentes, forçando escolhas difíceis entre prontidão e investimento. A resposta do Estado aposta em substituição tecnológica incremental e em renegociação de cronogramas com fornecedores para mitigar a dependência, enquanto busca contrapesos diplomáticos com Europa e Ásia. As Forças Armadas, pressionadas por disponibilidade e prazos, elevam a interlocução técnica com o Executivo e o Legislativo para proteger programas essenciais. Há risco de captura contratual e de adiamentos que corroem capacidades, mas a governança civil ainda segura a linha, evitando que demandas operacionais escorram para a arena política. Se a barganha entrega transferências de conhecimento em elos críticos e salva programas estruturantes, o estresse pode se converter em avanço de médio prazo; se falha, abre portas para improvisos e para o retorno de soluções de curto prazo com alto custo soberano.
O terceiro cenário é o de fricção aberta. Uma combinação de crise política doméstica, choques informacionais e endurecimento regulatório externo aciona simultaneamente atrasos de licença, restrições a exercícios e convites internacionais, e ruídos na interlocução entre comandos e governo. No plano interno, reaparecem interpretações maximalistas sobre papéis constitucionais, pedidos de emprego interno expandido e discursos tutelares em setores da reserva. No plano técnico, incidentes cibernéticos e descontinuidades de suporte ampliam a sensação de vulnerabilidade. Sem resposta coordenada, a narrativa de “excepcionalidade” se autoprofetiza e o sistema tende a normalizar improvisos. A travessia exige clareza pública do poder civil, medidas de contenção jurídica, reforço de estoques críticos e diplomacia de crise para reabrir calendários de certificação e assistência técnica. Se o Estado vacila, a fricção vira erosão institucional.
O quarto cenário é o de ruptura virtuosa. Ele ocorre quando o Estado transforma a janela de crise em reforma estrutural. A legislação explicita limites e condições do emprego interno, a governança de defesa passa a operar com planejamento de capacidades, portfólios e auditoria independente, e os contratos priorizam conteúdo nacional em elos de maior valor agregado, com depósito de documentação crítica em escrow, acesso a interfaces de software, cronogramas de atualização garantidos e direito de integração de terceiros. No ciberespaço, a arquitetura migra para segmentação física e lógica sob chaves e telemetria nacionais, com exercícios regulares de mesa e de campo e protocolos interagências vinculantes. A educação militar incorpora constitucionalismo, economia política da indústria, defesa cognitiva e ética republicana aplicada. A diplomacia de defesa, por sua vez, consolida multivetorialidade responsável, pactuando salvaguardas com todos os parceiros. O resultado é elevação sustentada da autonomia e redução das zonas cinzentas entre defesa e política.
Para distinguir essas trilhas com antecedência, convém monitorar indicadores de alerta precoce. No campo político-institucional, sinais são a reiteração de convites a operações de garantia da lei e da ordem para crises ordinárias, manifestações públicas ambíguas de autoridades fardadas em momentos decisivos, prazos de quarentena frouxos entre ativa e cargos civis sensíveis e expansão de funções administrativas civis ocupadas por militares sem excepcionalidade justificada. No domínio tecnológico-logístico, devem ser acompanhados os tempos médios de emissão de licenças externas, taxas de disponibilidade de frotas críticas, níveis de estoques de sobressalentes com prazos de validade, percentuais de canibalização de componentes e a regularidade de updates de software e chaves criptográficas. No ciber, contam índices de incidentes, tempos de detecção e resposta, cobertura de logs, auditorias independentes e grau de soberania sobre chaves e telemetria. No informacional, importa rastrear a densidade de campanhas coordenadas, alinhamento entre mensagens institucionais e normativas, e a presença de conteúdos tutelares em ecossistemas próximos à reserva e a níveis intermediários.
Os pontos de decisão do Estado, entre 2025 e 2028, concentram-se em cinco frentes. Primeiro, o marco jurídico do emprego interno, com delimitação inequívoca de hipóteses, cadeia de comando, regras de engajamento e trilhas de auditoria. Segundo, a política industrial de defesa, priorizando elos de alto valor e cláusulas de soberania em contratos novos e em aditivos de contratos antigos. Terceiro, a governança orçamentária, com previsibilidade plurianual, métricas públicas de disponibilidade e programas de suporte baseados em desempenho. Quarto, a arquitetura cibernética e de comunicações seguras, com segmentação, certificação nacional e exercícios de crise. Quinto, a educação e socialização profissional, atualizando currículos, bibliografias e avaliações para blindar a cultura institucional contra recaídas tutelares e alinhar a formação a uma ética republicana aplicada. Se essas decisões forem tomadas com consistência, o país tende ao cenário de continuidade com contenção ou mesmo à ruptura virtuosa. Se forem adiadas ou tratadas de forma errática, a tendência é deslizar para estresse permanente e, em momentos de choque, para fricção aberta.
Plano de ação: medidas estratégicas para o Estado brasileiro

A consolidação do controle civil e a redução de vulnerabilidades exigem um plano de ação integrando direito, indústria, orçamento, cibergovernança, diplomacia de defesa, educação militar e coordenação interagências. O objetivo não é romper cooperações úteis, mas subordinar todas elas a cláusulas de soberania que preservem a capacidade de decisão do poder civil em cenários de atrito.
No eixo jurídico-institucional, é imprescindível clarificar em lei complementar as hipóteses, limites e procedimentos do emprego interno, com cadeia de comando explícita, regras de engajamento, requisitos de proporcionalidade e trilha de auditoria obrigatória. A garantia da lei e da ordem deve ser excepcionalíssima, subsidiária e temporária, acionada apenas quando esgotadas as capacidades civis e com plano de desmobilização definido desde a origem. Regras de incompatibilidade e quarentena precisam separar a ativa de cargos civis estratégicos, com prazos mínimos e vedações claras a atuação político-partidária. Um código de conduta específico deve enquadrar manifestações públicas de oficiais em atividade, preservando a neutralidade institucional. No Ministério da Defesa, uma corregedoria com autonomia funcional e uma auditoria interna de alto nível devem acompanhar, em tempo real, emprego interno, contratos sensíveis e fluxos de informação classificada. A atualização regular do Livro Branco, com status normativo, amarra diretrizes, capacidades e métricas de execução ao planejamento plurianual.
No eixo industrial-tecnológico, a diretriz é autonomia seletiva. O Estado deve mapear, programa a programa, o conteúdo regulado por terceiros (motores, radares, aviônicos, criptografia, software embarcado, bancos de teste) e aprovar planos de substituição progressiva onde viáveis. Todo novo contrato estratégico precisa incorporar: direito de integração de terceiros desde a origem; acesso documentado a interfaces de software e dados; depósito em escrow de documentação crítica e chaves de compilação; cronograma de atualização garantido, com penalidades por descumprimento; e cláusulas de suporte mínimo por tempo determinado, independentemente de flutuações políticas. Prioridades de nacionalização devem mirar elos de maior valor agregado — propulsão e materiais avançados, eletrônica de missão, sensores e guerra eletrônica, criptografia e certificação —, combinando encomenda tecnológica, parcerias acadêmicas e linhas estáveis de P&D. Ao mesmo tempo, é necessário estabelecer uma política de arquitetura aberta em enlaces de dados e integração de sensores e armas, para reduzir aprisionamento tecnológico travestido de “interoperabilidade”.
No eixo orçamentário-logístico, a prontidão depende de previsibilidade. Programas estratégicos precisam de contratos de suporte baseados em desempenho, com metas públicas de disponibilidade, tempos médios de reparo e níveis mínimos de estoque por família de sobressalentes. Estoques regulados para contingências devem ser dimensionados por cenários e por dias de operação, com gestão de validade e rotatividade. O planejamento deve cobrir todo o ciclo de vida das plataformas — aquisição, operação, modernização e desativação —, incorporando custos de software e criptografia, bancadas e ferramental. Na execução, a transparência é antídoto contra erosão silenciosa: publicar painéis trimestrais de disponibilidade por frota crítica, com justificativas técnicas e planos de correção, impõe disciplina a fornecedores e à própria administração. Mecanismos de revisão independente (red team orçamentário) reduzem riscos de sobrepreço e escolhas subótimas.
No eixo cibernético e informacional, a condição de possibilidade da multivetorialidade é a soberania de chaves e telemetria. Redes de missão, de teste e administrativas devem ser segmentadas física e logicamente, com gestão nacional de chaves, registros e alertas. Centros de operações de segurança e equipes de resposta a incidentes necessitam de doutrina própria, exercícios de mesa e de campo regulares, simulações de degradação de enlaces e planos de contingência para perda temporária de suporte de fornecedores. Protocolos de aquisição de software e hardware críticos devem prever inspeção de código, logs e cadeia de suprimentos. No ambiente informacional, é preciso institucionalizar uma doutrina de defesa da esfera pública: comunicação institucional técnica, transparente e não partidarizada; monitoramento de integridade informacional em processos eleitorais e eventos sensíveis; e capacitação de porta-vozes para neutralizar, com fatos e serenidade, narrativas tutelares e desinformação.
No eixo diplomacia de defesa, vale a multivetorialidade responsável. A cooperação com Estados Unidos, Europa e China deve ser mantida e negociada com salvaguardas: cláusulas de não ingerência, proteção recíproca de informação, limites de acesso a instalações sensíveis e compromissos explícitos de respeito a decisões soberanas de integração de terceiros. Em paralelo, diversificar exercícios e formação com parceiros do Sul Global amplia repertório sem romper cadeias críticas. A chave está na coerência: todos os acordos passam a conter o mesmo pacote de garantias técnicas e jurídicas que blindam o usuário final e explicitam o direito do Brasil de combinar tecnologias e parceiros conforme o interesse nacional.
No eixo educação e socialização profissional, a atualização curricular é uma política de Estado. Academias, escolas de comando e Estado-maior e instituições de altos estudos devem incorporar, de forma obrigatória, constitucionalismo democrático aplicado à defesa, economia política da indústria, governança de riscos tecnológicos, defesa cibernética e proteção da esfera pública informacional. A abertura a professores civis, a avaliação por pares externos e a presença de estudos de caso nacionais recentes reduzem anacronismos e naturalizações tutelares. Critérios de promoção que valorizem desempenho técnico, comando em unidades operacionais, experiência interagências e domínio de gestão de programas desestimulam carreiras baseadas em capital político.
No eixo interagências, a coordenação precisa de norma e de prática. Empregos conjuntos com polícias e órgãos civis devem obedecer a doutrinas de comando e controle, regras de engajamento, protocolos de uso da força e trilhas de auditoria que preservem a primazia civil. Estruturas de gestão de crises — salas de situação, comitês de coordenação e centros de operações — devem operar com procedimentos padronizados, exercícios periódicos e avaliação pós-ação com lições aprendidas e correções mandatórias.
Por fim, o plano requer métricas e governança. Indicadores-chave — disponibilidade por frota crítica, tempos de licenças externas, níveis de estoques, taxa de canibalização, incidentes cibernéticos e tempos de resposta, cumprimento de cronogramas contratuais, número de exercícios interagências e de auditorias concluídas — precisam ser acompanhados por um comitê interministerial sob liderança civil, com relatórios públicos e capacidade de decisão sobre correções de rota. Sem métricas, a retórica de soberania vira ritual; com métricas, ela se transforma em política pública aferível.
Pontos contestados e estado do debate

O papel externo no golpe de 1964. Há consenso documental sobre preparo logístico-diplomático e sinalizações de reconhecimento imediato do novo regime. A controvérsia legítima é o peso relativo desses vetores frente às dinâmicas domésticas: crise política, divisão de elites, ação de governadores e articulação de cúpulas militares. Este artigo descreve o que é demonstrável e separa inferências de interpretação.
Financiamento político e guerra psicológica pré-1964. É robusta a existência de aparelhos empresariais e campanhas antijanguistas; permanece em disputa a extensão, a rota e a natureza do financiamento externo a institutos e movimentos. O texto registra os achados, indica lacunas e evita extrapolações causais além do que as fontes permitem.
Repressão, assistência policial e coordenação regional. A assistência policial estrangeira e a participação brasileira em coordenação repressiva no Cone Sul estão bem documentadas; pontos de divergência concentram-se no grau de centralidade de cada ator nacional e na periodização fina de certas operações. Mantém-se a distinção entre conhecimento externo, facilitação e autoria.
Anistia e responsabilização. O alcance da Lei de Anistia e sua compatibilidade com deveres internacionais seguem debatidos. O artigo conserva a linha dos atos oficiais e decisões judiciais, indicando controvérsias jurídicas e suas consequências práticas para memória, verdade e justiça.
2015–2022: tutela e lawfare. Há disputa interpretativa sobre o que constitui tutela, interferência indevida ou mera expressão institucional. O texto adota critérios restritivos: posição de autoridade, temporalidade de manifestações, efeito prático sobre decisões civis e aderência a normas.
8 de janeiro de 2023. Atribuições de responsabilidade variam conforme o recorte investigativo. O artigo utiliza peças oficiais, cronologias verificadas e decisões judiciais, sinalizando onde há versões em disputa e onde há achados consolidados.
China, Europa e multivetorialidade. Divergem leituras sobre se a presença chinesa em exercícios e a cooperação espacial criam dependência estratégica ou apenas diversificam parceiros. O artigo descreve ganhos, limites e condicionantes regulatórios sem aderir a narrativas maximalistas.
Acordos e salvaguardas tecnológicas. Debate-se se instrumentos vigentes limitam soberania ou habilitam capacidade. O texto evidencia cláusulas, obrigações e salvaguardas, distinguindo condicionantes técnicos de ingerência política.
Como o artigo trata controvérsias. Aplicação de padrões probatórios explícitos; separação entre fatos, inferências e juízos; apresentação de objeções fortes e justificativa da interpretação adotada quando necessário; indicação de lacunas e de agenda de apuração complementar.
Conclusão

A trajetória reconstruída mostra que o padrão de tutela militar no Brasil tem raízes históricas, reconfigura-se em diferentes conjunturas e hoje convive com uma arquitetura densa de dependências tecnológicas, regulatórias e logísticas. O aumento de capacidades por meio de cooperação internacional andou junto de condicionantes que reduzem margens de manobra em cenários de atrito. Em momentos de crise política e degradação informacional, reaparecem interpretações abusivas do papel constitucional das Forças Armadas e convites à excepcionalidade.
O caminho institucionalmente seguro combina controle civil firme e competente, clareza jurídica sobre emprego interno, governança técnica de contratos e redes, política industrial orientada a elos críticos e educação militar alinhada ao constitucionalismo democrático. Multivetorialidade sem salvaguardas produz vulnerabilidade; com salvaguardas, produz autonomia relativa. O país tem condições de reduzir zonas cinzentas com disciplina, método e transparência, ancorando cooperação externa em cláusulas de soberania e alinhando incentivos internos ao profissionalismo. O essencial é retirar da ambiguidade as fronteiras entre defesa e política, e proteger, com rotinas e métricas, a capacidade do poder civil de decidir em qualquer cenário.
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