EUA: o Estado sob custódia algorítmica
- Rey Aragon
- 14 de ago.
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Atualizado: 15 de ago.

Palantir, Peter Thiel e a Captura Final do Poder Americano
Do Salão Oval aos servidores do Pentágono, o segundo mandato de Trump entregou as chaves do Estado norte-americano à Palantir de Peter Thiel. Um projeto tecnopolítico que mistura contrato e ideologia para transformar governo em cliente cativo e soberania em ativo privado.
O segundo mandato como ponto de não-retorno

Janeiro de 2025 não foi apenas a volta de Donald Trump ao Salão Oval. Foi a abertura de uma janela histórica para que um núcleo restrito de atores corporativos — com Peter Thiel no centro gravitacional — consolidasse um projeto de poder que vinha sendo arquitetado desde o período de descompressão política entre 2022 e 2024. Ao contrário de seu primeiro governo, marcado por impulsos erráticos, improvisos e confrontos diretos com a burocracia federal, o segundo mandato começou com um plano silencioso, preciso e tecnicamente viabilizado: transformar as infraestruturas críticas de dados e decisão do Estado norte-americano em extensões operacionais de uma única empresa, a Palantir Technologies.
O primeiro trimestre do novo governo mostrou que não se tratava mais de disputa por influência no topo — conselhos, reuniões privadas ou cargos estratégicos. A estratégia agora passava pela captura estrutural da máquina estatal por dentro, utilizando a tecnologia como mecanismo de bloqueio e dependência. Sob o discurso de eficiência, combate a desperdícios e aceleração da transformação digital, consolidou-se um modelo de governança onde sistemas proprietários, contratos bilionários e cadeias de dados integradas se tornaram mais poderosos do que qualquer decreto ou lei aprovada pelo Congresso.
Nesse arranjo, Trump fornece a cobertura política e a lógica executiva para acelerar contratações e derrubar entraves regulatórios. Thiel desenha a arquitetura ideológica e estratégica para ocupar, camada a camada, cada função sensível do Estado — da inteligência militar ao controle migratório, passando pela gestão administrativa interna. E a Palantir entrega o instrumento técnico, com software e serviços que, uma vez instalados, não podem ser substituídos sem um custo político, operacional e financeiro gigantesco.
A posse de 2025, portanto, não foi apenas um retorno ao poder para Trump. Foi o início de uma nova fase de governança algorítmica, na qual a linha entre Estado e corporação não é borrada por acidente ou negligência, mas apagada deliberadamente por um projeto político-tecnológico que encontrou no segundo mandato um campo livre de resistência institucional.

Da sobrevivência à hegemonia — A ascensão pós-2024

Em 2022, Donald Trump parecia politicamente acabado. Enredado em processos judiciais, sem mandato e enfrentando um Partido Republicano dividido, seu nome se tornara mais um fardo do que um ativo eleitoral. Ao mesmo tempo, no Congresso, um setor relevante do Partido Democrata — impulsionado por uma onda de indignação pública após escândalos de desinformação e abusos de dados — passava a convocar figuras como Mark Zuckerberg e outros líderes do Vale do Silício para audiências públicas. A narrativa dominante apontava para a necessidade de um marco regulatório que limitasse o poder das plataformas digitais e aumentasse a responsabilidade das big techs sobre conteúdos, dados e algoritmos.
Para Peter Thiel e o círculo ideológico que o acompanha, esse cenário era um alerta vermelho. A regulação das plataformas, sobretudo nas áreas de dados e inteligência artificial, ameaçava diretamente a liberdade de ação de empresas como a Palantir e comprometia o avanço do projeto tecnolibertário que vinham cultivando há anos. Mais do que uma pauta corporativa, tratava-se de uma questão existencial: sem acesso irrestrito a dados e sem a possibilidade de integrar sistemas governamentais de forma profunda e opaca, o plano de capturar o Estado por dentro perderia tração.
Foi nesse contexto que Thiel e seus aliados compreenderam que a figura de Trump, apesar de politicamente enfraquecida, ainda poderia servir como veículo — e, mais do que isso, como escudo — para impedir qualquer avanço regulatório de peso. A reabilitação política de Trump passou a ser tratada como um projeto estratégico de sobrevivência corporativa, com investimento calculado na reconstrução de sua imagem junto à base republicana e ao ecossistema de doadores.
Esse processo não foi público nem linear. Incluiu o fortalecimento de candidaturas trumpistas em eleições legislativas, a infiltração de quadros alinhados em comitês e think tanks, e a articulação com setores da mídia simpáticos ao MAGA 2.0. Thiel, com sua rede de fundos, fundações e empresas, manteve o protagonismo na engenharia dessa retomada. Trump, por sua vez, entrou em 2024 como candidato novamente viável, e sua vitória abriu o caminho para um segundo mandato que, desta vez, viria blindado contra pressões regulatórias e permeável à ocupação sistemática de suas estruturas administrativas.
Quando janeiro de 2025 chegou, a transição já estava preparada: nomeações-chave alinhadas, ambiente legislativo favorável e, sobretudo, uma arquitetura política pronta para acelerar a incorporação da Palantir como núcleo técnico de decisão e controle do Estado. O que começou como uma operação de resgate político em 2022 transformou-se, três anos depois, na coroação de um projeto de hegemonia tecnopolítica.

O salto financeiro — quando a receita vira poder

O segundo mandato de Trump não apenas abriu as portas da administração federal para a Palantir; ele escancarou os cofres. Entre janeiro e agosto de 2025, a empresa assinou e ampliou contratos de valor e alcance sem precedentes, consolidando uma presença que já não se restringe a nichos militares ou de inteligência, mas se espraia por todo o tecido operacional do Estado.
Logo nas primeiras semanas de governo, o Departamento de Defesa autorizou o aumento de US$ 795 milhões no teto do contrato do Maven Smart System, elevando-o para mais de US$ 1,3 bilhão. O programa, voltado para a aplicação de inteligência artificial em operações militares, passou a ter integração direta com comandos combatentes, transformando a Palantir em fornecedora padrão para a análise e a fusão de dados em cenários de combate. A mensagem era clara: a IA crítica do Pentágono tinha dono.
Pouco depois, o Exército consolidou dezenas de contratos dispersos em um único acordo-guarda-chuva com prazo de dez anos e valor potencial de até US$ 10 bilhões. A justificativa oficial era eliminar redundâncias e agilizar processos; na prática, esse arranjo fixou a Palantir como espinha dorsal da infraestrutura de dados e logística do Army, dificultando qualquer substituição futura sem um custo de transição astronômico.
O movimento se repetiu em áreas menos visíveis, mas igualmente estratégicas. Dois projetos de gestão de recursos humanos na Força Aérea e na Marinha, que consumiram cerca de US$ 800 milhões ao longo de 12 anos e nunca entregaram plenamente, foram colocados sob revisão. Entre as alternativas consideradas para substituir os sistemas falhos, estava a Palantir, competindo com Salesforce e Workday. Caso se concretize, será a primeira vez que a empresa assumirá funções administrativas centrais no Pentágono, ampliando seu alcance para além da esfera operacional.
No campo da segurança interna, o ICE (Immigration and Customs Enforcement) fechou um contrato de US$ 30 milhões para o chamado ImmigrationOS, uma plataforma para integrar e automatizar o ciclo completo de fiscalização migratória — da identificação à deportação. O protótipo deve ser entregue até setembro de 2025, com vigência do contrato até 2027. Essa integração não apenas reforça o poder do Departamento de Segurança Interna, como coloca dados sensíveis de milhões de imigrantes sob o controle de uma empresa privada com vínculos diretos com o núcleo político da Casa Branca.
Os reflexos no mercado foram imediatos. A receita da Palantir disparou, e o valor de mercado ultrapassou patamares históricos. Analistas de Wall Street, mesmo apontando para múltiplos considerados “insanos” — como P/L futuro acima de 200 vezes —, alimentaram a narrativa de que a empresa se tornou um ativo “inevitável” para quem aposta no crescimento da IA governamental. Essa valorização, por sua vez, retroalimenta o ciclo político: ações em alta fortalecem a imagem de eficiência e inevitabilidade, tornando qualquer tentativa de frear ou auditar a expansão da Palantir politicamente custosa.
Em 2025, a receita da empresa deixou de ser apenas um número em relatórios trimestrais; ela se converteu em instrumento de poder. Cada contrato fechado significa mais influência dentro das estruturas estatais e mais resistência a mudanças. O crescimento financeiro e a captura política, aqui, são duas faces da mesma moeda.
O cerco interno — ocupando a máquina estatal

Se em seu primeiro ciclo de expansão a Palantir se projetou como “o cérebro” de operações militares e de segurança, agora, no segundo mandato de Trump, ela começa a se tornar também a medula espinhal administrativa do Estado americano. Essa mudança qualitativa é o que transforma a empresa de fornecedora estratégica em operadora sistêmica — um estágio em que os dados não são apenas processados para missões específicas, mas passam a sustentar o funcionamento diário das engrenagens do governo.
O sinal mais claro dessa virada está nos bastidores do Pentágono. Depois de dominar projetos de inteligência de combate como o Maven e o TITAN, a Palantir entrou na disputa para substituir sistemas críticos de gestão de recursos humanos da Força Aérea e da Marinha, que há anos acumulam falhas e atrasos. Essa não é uma frente glamourizada, mas é nela que residem os dados de pessoal, folhas de pagamento, movimentações internas e logística de efetivos — ou seja, o sistema nervoso burocrático das Forças Armadas. Controlar essa camada significa ter acesso e capacidade de influenciar desde a alocação de quadros até a resposta a emergências.
Paralelamente, a Palantir está consolidando sua posição dentro do Departamento de Segurança Interna (DHS). O ImmigrationOS, contratado pelo ICE, não é um projeto isolado; ele está sendo desenvolvido para interoperar com plataformas de vigilância e enforcement já operadas pela empresa em outros contratos. Na prática, isso cria uma malha de dados unificada, onde informações sobre cidadãos, imigrantes, infrações e movimentações cruzam fronteiras institucionais sem passar por filtros públicos ou auditorias externas robustas.
A lógica do cerco também avança por meio de contratos “guarda-chuva” — como o acordo de até US$ 10 bilhões com o Exército — que funcionam como portas de entrada permanentes para novas demandas, sem necessidade de licitações complexas. Esse tipo de contrato é ideal para infiltração contínua: uma vez que a infraestrutura da Palantir está instalada e certificada, qualquer nova função ou módulo pode ser adicionado rapidamente, expandindo o alcance sem atrair atenção política ou midiática.
Além disso, a presença da Palantir começa a ser percebida em áreas de suporte civil e governamental, como gestão de desastres, planejamento urbano e monitoramento ambiental — sempre com a mesma lógica: oferecer soluções tecnológicas integradas, capturar os fluxos de dados e, uma vez estabelecida a dependência, tornar-se insubstituível. É um modelo que ecoa estratégias corporativas de outros setores, mas aqui aplicado ao coração do poder estatal.
Esse cerco interno é silencioso e metódico. Não há anúncio de “ocupação” nem ruptura explícita; há, sim, uma expansão em camadas, cada uma conectando mais profundamente a Palantir às funções vitais do Estado. O resultado é um cenário em que substituir a empresa não é apenas caro ou demorado — é politicamente impensável. E é justamente essa posição que Peter Thiel e seus estrategistas buscaram alcançar desde 2022: não estar apenas dentro do Estado, mas ser o Estado em suas funções mais críticas.
Thiel, o arquiteto invisível

Peter Thiel nunca precisou de um cargo no governo para exercer poder. Sua força não está na presença formal, mas na capacidade de construir arquiteturas invisíveis de influência que atravessam o setor privado, a política partidária e o próprio núcleo decisório do Estado. O segundo mandato de Trump é, em grande medida, a obra-prima dessa engenharia: um arranjo no qual o presidente é tanto beneficiário quanto prisioneiro de um projeto que Thiel vem cultivando desde a década passada, agora maduro e livre de amarras regulatórias.
Quando Trump estava politicamente ferido em 2022, Thiel já enxergava além do horizonte imediato. Sabia que um novo governo democrata com apetite regulatório colocaria sob risco as bases do seu projeto tecnolibertário: a expansão irrestrita de empresas como a Palantir dentro da máquina estatal, o acesso privilegiado a dados sensíveis e a terceirização de funções soberanas para corporações alinhadas ideologicamente. Ao reconstruir a viabilidade política de Trump, Thiel não apenas salvou um aliado; ele garantiu a volta de um presidente moldável, disposto a trocar capital político por lealdade e infraestrutura de poder.
Essa manipulação é sofisticada. Thiel não atua na lógica do conselheiro que sugere políticas ou escreve discursos. Ele opera como engenheiro de contexto: financia campanhas legislativas estratégicas, coloca aliados em think tanks e conselhos, estimula redes de lobby, e garante que as portas certas no Congresso e no Executivo estejam abertas no momento preciso. Sua presença é difusa, mas seu efeito é concentrado — como um arquiteto que nunca aparece na obra, mas cujos traços estão em cada parede e cada corredor.
No caso da Palantir, Thiel é mais do que fundador e acionista. Ele é o garantidor político de que a empresa não apenas ganhará contratos, mas que poderá moldá-los a seu favor, criando estruturas de lock-in que tornam a substituição quase impossível. Ao cultivar relações com setores-chave do Partido Republicano, especialmente a ala MAGA, e ao injetar recursos em comitês e campanhas alinhadas, Thiel construiu um cinturão de proteção política em torno da Palantir. Esse cinturão garante que críticas ou tentativas de auditoria sejam neutralizadas antes de ganhar tração.
Sua visão vai além da vantagem corporativa imediata. No tecnolibertarismo que professa, o Estado ideal é mínimo em prerrogativas, mas máximo em dependência das soluções privadas certas — e essas soluções devem estar nas mãos de atores confiáveis ideologicamente. Em outras palavras, o Estado se torna uma plataforma de contratos para um seleto grupo de corporações e investidores, enquanto a esfera pública perde capacidade de ação autônoma.
No segundo mandato de Trump, essa filosofia não é mais uma teoria em círculos fechados; é prática de governo. Thiel conseguiu algo raro: moldar um presidente que, mesmo sendo uma figura carismática e dominante na retórica, age na estrutura como executor involuntário de um design alheio. E, no centro desse design, está a Palantir — não como empresa entre outras, mas como espinha dorsal algorítmica do Estado americano.
Tecnolibertarismo em ação — o Estado como startup

O tecnolibertarismo de Peter Thiel sempre pareceu, para quem observava de fora, uma mistura improvável de utopia de Vale do Silício com pragmatismo de investidor de risco. Uma doutrina que prega a minimização do Estado como agente executor e a maximização de sua função como cliente preferencial de corporações “confiáveis” — empresas que partilham a visão de que inovação e eficiência só florescem sem regulação, sem transparência excessiva e com controle total dos fluxos de dados.
No segundo mandato de Trump, essa filosofia deixou de ser um manifesto e passou a ser um manual de operação do governo. Em vez de criar novas estruturas públicas para gerir segurança, defesa, imigração ou administração, a Casa Branca e suas agências passaram a enxugar competências internas e substituir sistemas e quadros por contratos com fornecedores privados. No topo dessa cadeia de terceirização, a Palantir emergiu como a fornecedora preferencial — não apenas por suas capacidades técnicas, mas pela convergência ideológica com a elite tecnopolítica no poder.
A lógica aplicada é a mesma que Thiel defendeu em fóruns empresariais: tratar o governo como uma startup de grande escala, onde decisões são rápidas, ciclos de produto são curtos e métricas de sucesso se medem em eficiência operacional e valorização de mercado. Nesse modelo, políticas públicas viram “features”, ministérios e departamentos são “times” temporários, e cidadãos passam a ser, essencialmente, usuários de um serviço — cujo backend é gerido por empresas privadas.
Essa visão molda a arquitetura de contratos. O acordo-guarda-chuva do Exército, por exemplo, não é apenas um documento jurídico; ele é uma API política que permite adicionar novas funções ao sistema Palantir sem passar por escrutínio legislativo ou licitação convencional. O ImmigrationOS, do ICE, não é apenas uma ferramenta de enforcement migratório; ele é a implementação prática de um produto mínimo viável (MVP) que, uma vez validado, pode ser escalado para outras áreas de vigilância civil.
O resultado é um Estado que já não se percebe como detentor da infraestrutura crítica, mas como cliente recorrente. E aqui está o ponto central do tecnolibertarismo aplicado: a dependência não é um efeito colateral, mas um objetivo de design. Ao centralizar dados, padronizar protocolos e construir lock-ins contratuais, a Palantir garante que qualquer tentativa futura de “recuperar” funções para a esfera pública seja onerosa, lenta e politicamente desgastante.
Ao contrário do discurso tradicional neoliberal, que promete reduzir o Estado para liberar o mercado, o tecnolibertarismo de Thiel cria um Estado mínimo em prerrogativas, mas máximo em dependência. Ele não desaparece; ele se transforma num cliente cativo de um oligopólio privado, e sua soberania passa a ser medida pela estabilidade dos contratos e pela confiança ideológica nos fornecedores.
No tabuleiro de 2025, essa filosofia não é periférica: ela é a cola que une Trump, Thiel, a Palantir e o ecossistema MAGA 2.0 em um projeto único. Um projeto onde o Estado funciona como vitrine de eficiência para investidores e como laboratório de poder para corporações que, na prática, governam sem precisar de mandato.
O mercado como legitimador do golpe interno

Se a política fornece a cobertura e a ideologia define a estratégia, é o mercado que transforma o avanço da Palantir sobre o Estado em um fato consumado. Wall Street, sempre ávida por histórias de crescimento exponencial e margens protegidas, encontrou no segundo mandato de Trump e na ascensão da Palantir um enredo perfeito: contratos bilionários garantidos por uma relação simbiótica com o governo mais amigável ao setor desde Reagan, sustentados por barreiras de entrada tão altas que a concorrência beira o simbólico.
O reflexo foi imediato. Desde janeiro de 2025, as ações da Palantir dispararam para níveis históricos, impulsionadas por anúncios de expansão de contratos como o Maven Smart System, o acordo-guarda-chuva de até US$ 10 bilhões com o Exército e o ImmigrationOS do ICE. Analistas que antes alertavam para o risco de supervalorização passaram a suavizar o tom, usando termos como “crescimento inevitável” e “posição única de mercado” para justificar múltiplos que ultrapassam 200 vezes o lucro projetado. O recado implícito: não importa o quão caro esteja o papel, essa é uma aposta segura porque o cliente é o próprio Estado.
Essa legitimação financeira cumpre duas funções essenciais para o projeto de Thiel. Primeiro, cria um efeito de consenso: investidores institucionais, fundos de pensão e fundos soberanos entram no papel não apenas pelo potencial de retorno, mas para não ficar de fora do ciclo de valorização. Isso amplia a base de acionistas e, por consequência, a rede de atores com interesse direto na manutenção da relação Palantir–governo. Segundo, reforça a narrativa de que a empresa é indispensável, tornando qualquer tentativa de auditoria ou regulação um risco não apenas político, mas econômico.
O mercado, nesse contexto, atua como um amplificador ideológico. Relatórios otimistas de bancos de investimento e casas de análise ecoam nos noticiários financeiros, que por sua vez influenciam a opinião pública e o debate político. Ao vestir a captura do Estado com o verniz de “história de sucesso empresarial”, o sistema financeiro ajuda a blindar a Palantir contra críticas, apresentando sua expansão não como um problema democrático, mas como um exemplo de eficiência e inovação.
Essa convergência entre poder político, ideologia tecnolibertária e validação de mercado cria um círculo quase hermético. O Estado contrata, a empresa entrega, o mercado premia — e o prêmio reforça a posição da empresa para garantir novos contratos. No final, o que se constrói não é apenas uma corporação dominante, mas um regime de dependência mútua, onde o destino financeiro de investidores e a arquitetura de poder de Thiel estão entrelaçados na mesma narrativa.
Consequências geopolíticas

A fusão entre Palantir e aparelho de Estado sob Trump 2.0 não é apenas doméstica. Ela reconfigura a hierarquia do poder global pela via menos vistosa e mais duradoura: padrões técnicos, dependências contratuais, interoperabilidade e jurisdição sobre dados. O primeiro efeito é a consolidação de um eixo normativo anglo-americano que empacota software, doutrina de emprego e regras de compartilhamento de informação num único kit. A OTAN deixa de ser só aliança militar e vira consórcio de dados operacionais. Quem compra a pilha Palantir importa também a gramática decisória das operações, desde o nível tático de fusão de sensores até as métricas administrativas do back-office de defesa. Isso cria aderência política de alto atrito: não é só substituir fornecedor, é reescrever a forma de decidir.
O segundo efeito é a exportação do modelo de governança por contrato. Washington passa a fazer diplomacia de procurement, convertendo memorandos de cooperação em roteiros de adoção tecnológica. Missões conjuntas, exercícios e centros de excelência viram esteiras de padronização de APIs e processos. A interoperabilidade, no papel, promete eficiência; na prática, produz assimetria. O país que controla a camada de decisão controla a cadência do conjunto, porque comanda versões, roadmaps e chaves de integração. Em crises, a capacidade de acelerar, degradar ou condicionar serviços confere poder de veto informal sobre as operações de aliados.
O terceiro efeito repousa no regime jurídico-informacional. Ao transformar dados soberanos em insumo de plataformas privadas regidas por contratos sob jurisdição dos EUA, a Casa Branca instala uma extraterritorialidade discreta. Cloud acts, ordens executivas e acordos de cooperação criminal criam rotas de acesso a registros que, embora armazenados fora do território americano, obedecem a ordens de cortes americanas ou cláusulas de auditoria. Na prática, dados militares, policiais e administrativos de países parceiros podem ficar subordinados a litígios, sanções e barganhas políticas que nada têm a ver com o interesse local. A promessa de segurança vira penhor geopolítico.
O quarto efeito tangencia a competição sistêmica com a China. Enquanto Pequim escalou uma fusão civil-militar integrada ao seu parque industrial, Washington, pela via Palantir, dobra a aposta num consórcio público-privado que terceiriza a engenharia de decisão e concentra o valor na camada de software. O choque não é apenas de poder bruto, mas de forma. A batalha deixa de ser só por chips e passa a ser por quem dita o ciclo de OODA do planeta. Quem dita o ciclo de observação, orientação, decisão e ação, dita o tempo da guerra, da política migratória, da proteção de infraestruturas críticas e da resposta a desastres. A vantagem informacional se transforma em vantagem diplomática.
O quinto efeito é a pressão sobre o Sul Global. O pacote chega com três promessas e um custo. Promete combate a crime organizado transnacional, gestão de fronteiras e salto de eficiência administrativa. Entrega um upgrade real de capacidade, especialmente em países com lacunas de TI pública. O custo é a soberania condicional. Adoção da pilha implica abrir telemetria, logs e metadados a auditorias cruzadas e, no limite, aceitar alinhamento normativo que pode colidir com políticas internas de proteção de dados e direitos civis. Quem recusa o pacote enfrenta a retórica de que está escolhendo a ineficiência ou a cumplicidade com ilícitos. É a nova diplomacia da conformidade: ou você converge para o padrão, ou será tratado como desvio.
O sexto efeito emerge no mercado europeu. A União Europeia oscila entre a tentação da eficiência e a aversão regulatória a dependências críticas. Setores de defesa e interior pressionam por interoperabilidade com os EUA e OTAN, enquanto a regulação de IA, privacidade e compras públicas tenta colocar diques. O resultado provável é uma paisagem híbrida: adoções setoriais, cláusulas de localização de dados, exigências de chaves de criptografia sob custódia local e tentativas de criar camadas de abstração para reduzir lock-in. Mesmo assim, se a pilha Palantir dominar a semântica dos dados operacionais, a Europa pode tornar-se cliente de alto valor, mas de baixa autonomia.
O sétimo efeito é a doutrina do espelho. Adversários estratégicos observam a captura algorítmica do Estado americano e deduzem duas linhas de ação: 1) negar sensores, saturar pipelines e produzir ruído em larga escala para degradar os modelos de decisão do adversário; 2) replicar o modelo de plataforma estatal com fornecedores domésticos, criando jardins murados informacionais e zonas de exclusão de padrões. Isso acelera a fragmentação da internet prática em arquipélagos de plataformas soberanas, onde interoperar vira concessão política, não atributo técnico.
Por fim, o oitavo efeito toca a economia política do conhecimento. À medida que a Palantir codifica práticas administrativas e operacionais em produtos, a experiência do Estado migra para o repositório privado. O know-how que deveria circular por carreiras de Estado e universidades passa a residir em bases proprietárias, documentação fechada e contratos de confidencialidade. Em uma década, o risco é inversão estrutural: Estados incapazes de ensinar a si mesmos como funcionar sem licenças de terceiros. Essa é a forma mais sutil e mais profunda de subordinação geopolítica.
Riscos democráticos e soberania informacional

A captura algorítmica do Estado sob a pilha Palantir atinge o centro de gravidade da democracia: a possibilidade de escrutínio público, a reversibilidade de decisões e a preservação do interesse coletivo diante de incentivos privados. O primeiro risco é de opacidade institucional. Quando funções críticas de governo são executadas por sistemas proprietários que não admitem auditoria plena, a accountability migra do espaço público para o contrato. O controle social e parlamentar passa a disputar cláusulas de confidencialidade e segredos comerciais. O resultado é um déficit de transparência que enfraquece o direito de saber, inclusive em políticas que afetam diretamente liberdades civis, como imigração, segurança pública e vigilância ambiental.
O segundo risco é o congelamento de políticas públicas por lock-in tecnológico. A democracia se funda na alternância de poder e na capacidade de corrigir rumos. Mas um Estado cuja tomada de decisão depende de um fornecedor único perde a plasticidade. A reversão de um programa deixa de ser uma escolha política e torna-se um problema de engenharia e orçamento. Em ciclos eleitorais, isso inibe mudanças legítimas de orientação e transforma o voto em plebiscito sobre contratos que o eleitorado não conhece. A soberania se desloca do parlamento para roadmaps de produto definidos por conselhos de acionistas.
O terceiro risco é o desvio de finalidade por efeito de função ampliada. Plataformas concebidas para fusão de dados em defesa passam a operar em imigração, depois em gestão administrativa e, adiante, em políticas sociais. A cada salto de domínio, herdam-se premissas, métricas e vieses de outra área. Isto contamina decisões com racionalidades inadequadas, como aplicar lógica de alvo e ameaça em contextos de serviços públicos. O resultado é um Estado que trata cidadãos como entidades suspeitas e administra direitos como exceções condicionadas por pontuações algorítmicas.
O quarto risco é a erosão do devido processo legal. Modelos de decisão opacos e não contestáveis reduzem o contraditório a um ritual formal, porque a parte afetada não tem acesso à regra efetiva que operou contra si. Sem rastreabilidade compreensível, a cadeia de causalidade desaparece. Isso abre espaço para discriminações estatísticas, erros sistêmicos e injustiças de massa que não encontram remédio jurídico tempestivo. O tempo da informação, que decide em segundos, derrota o tempo da justiça, que decide em anos.
O quinto risco é a extraterritorialidade silenciosa sobre dados e operações. Dados de cidadãos e de infraestrutura crítica passam a existir sob regimes contratuais que obedecem a ordens administrativas e judiciais estrangeiras. Mesmo com nuvens soberanas e data centers locais, camadas de suporte, telemetria e logs podem estar submetidas a jurisdições externas. Em crises políticas ou comerciais, isso vira alavanca de pressão. A soberania informacional se torna condicional à vontade de terceiros.
O sexto risco é a desprofissionalização do Estado. Quando o conhecimento operativo migra para repositórios privados, a administração perde memória institucional. Carreiras públicas deixam de dominar processos fim a fim e tornam-se mediadoras de tickets com fornecedores. Em uma década, instala-se dependência cognitiva. O Estado já não sabe como funciona sem o software que o explica a si mesmo.
O sétimo risco é a captura regulatória por narrativa de inevitabilidade. A valorização de mercado e a reputação de eficiência criam um consenso que neutraliza iniciativas de auditoria e competição. Parlamentares e órgãos de controle são lembrados do custo de ruptura, de supostos impactos em segurança nacional e de reações negativas do mercado. A democracia é induzida a escolher sempre a continuidade.
Mitigar esse conjunto exige medidas que restituam reversibilidade, transparência e poder público sobre a infraestrutura decisória. A primeira é instituir auditabilidade técnica obrigatória por terceiros independentes com mandato legal e acesso ao código e aos artefatos de treinamento e configuração, acompanhada de relatórios públicos substantivos. A segunda é impor portabilidade real de dados e modelos com padrões abertos, documentação completa de esquemas e taxonomias e obrigação de exportar pesos, prompts, regras e pipelines em formatos interoperáveis quando houver interesse público devidamente fundamentado. A terceira é criar cláusulas de saída cronometradas em todos os contratos estratégicos, prevendo períodos de transição, escrow de código e chaves, transferência assistida de conhecimento e penalidades automáticas por obstrução.
A quarta medida é estabelecer conselhos de governança algorítmica com poder deliberativo, integrando parlamento, tribunais de contas, controladorias, defensores públicos e sociedade civil qualificada, com competência para suspender implementações que violem princípios de legalidade, necessidade, proporcionalidade e não discriminação. A quinta é regionalizar a infraestrutura de decisão crítica com exigências de soberania dura, que combinam localização de dados, chaves sob custódia estatal, proibição de acesso remoto não autorizado e logs imutáveis sujeitos a auditoria judicial. A sexta é reverter a desprofissionalização com programas de carreira e formação continuada em engenharia de dados pública, devendo cada órgão deter equipes capazes de operar e substituir módulos críticos sem dependência absoluta de fornecedores.
A sétima é criar um regime jurídico específico para decisões algorítmicas do Estado, que reconheça o direito de explicação compreensível, garanta priorização processual para casos que envolvam automação de alto impacto e estabeleça responsabilidade objetiva por danos causados por erros sistêmicos. A oitava é promover competição estrutural com compras modulares, incentivo a soluções open source auditáveis e sandboxes públicos onde empresas comprovem segurança, desempenho e não discriminação antes de acessar bases sensíveis. A nona é submeter todo compartilhamento transfronteiriço de dados a avaliação soberana de impacto, com possibilidade real de veto e obrigação de informar parceiros internacionais sobre limitações impostas por leis de proteção de dados e direitos humanos.
Por fim, é decisivo reequilibrar a narrativa. A democracia não é inimiga de eficiência. O que se propõe é eficiência com governança, segurança com controle externo, tecnologia com reversibilidade. O Estado que retoma a direção informacional não se opõe à inovação. Ele a doméstica ao interesse público, reconquistando o direito de decidir sobre si.

Como foi comentado no texto, nos governos Trump (em especial Trump-II), a Palantir ampliou bastante o seu valor de mercado. No último dia 13 de agosto de 2025, alcançou a soma de US$ 437 bilhões, próximo a 1/2 US$ trilhão, já começando a se inserir entre as gigantes corporações americanas de tecnologia. Dados do ranking online Infinite Market Cap.
Por: Roberto Moraes.