Complexo da Maré: a vítima da Arquitetura do Medo Ensaio sobre a financeirização da violência e da verdade
- Jeser Batista
- há 5 horas
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Por Jeser Batista
Há momentos em que o país parece acordar no mesmo pesadelo de sempre, porém com figurino novo. A terça-feira, 27 de outubro de 2025, foi um desses dias: o Rio de Janeiro amanheceu sitiado por sirenes e helicópteros. A operação no Complexo da Maré não foi apenas uma ação policial. Foi um roteiro. Um espetáculo pensado para produzir medo, e o medo é a mais rentável das emoções humanas.
A Maré é um território pobre e empobrecido, habitado em grande parte por pessoas negras, trabalhadoras sem direitos reconhecidos — os chamados uberizados, termo derivado da empresa Uber, que simboliza uma nova forma de exploração laboral: trabalhadores autônomos sem vínculo empregatício, sem proteção social e sem garantias trabalhistas. São pessoas que, embora sustentem o funcionamento da economia, são invisibilizadas e precarizadas por um discurso enganoso de autonomia.
Esse discurso — o da meritocracia — é parte de uma grande narrativa construída pelo poder econômico, que transforma a exploração em promessa de sucesso.
Esta situação coloca a população deste território em um contexto onde a perspectiva social, educacional e econômica não lhes favorece a compreensão da realidade objetiva. Quando a vida cotidiana é dominada pela sobrevivência, a emoção se torna a lente principal de leitura do mundo, e é justamente aí que o poder autoritário opera. Ele transforma a violência em espetáculo e a dor em instrumento de consenso, anestesiando a capacidade crítica e reforçando a crença de que há sempre um inimigo a ser destruído.
Essa comunidade, constantemente manipulada pelos discursos da elite financista, agrária e política, que são elites que ainda moldam o país e sua mídia, foi vítima de um novo espetáculo da repressão. Sob o pretexto de combater o tráfico de drogas, as forças de segurança executaram uma operação que o governo classificou como ação contra o “narcoterrorismo”. O termo, importado do vocabulário da guerra e da geopolítica, marca o início de uma nova narrativa: a construção do “inimigo interno” sob uma roupagem renovada, mais midiática e conveniente aos interesses de controle.
O problema de um evento como esse não se limita à violência material. Ele reside, sobretudo, na sua capacidade de produzir uma comoção emocional desproporcional, que paralisa o pensamento e molda a percepção coletiva. A operação na Maré não atua apenas com fuzis e blindados; atua também com símbolos, com medo, com o imaginário do “mal” a ser eliminado. Esse tipo de ação atinge diretamente pessoas que vivem em contextos precarizados, conforme ilustramos acima.
Essa engrenagem, que organiza o medo, a emoção e o controle simbólico, constitui o que podemos chamar de Arquitetura do Medo — o projeto deliberado de fabricar vulnerabilidade para justificar repressão e transformar o medo em instrumento de governabilidade e lucro.”
É preciso convidar as pessoas a um exercício de reflexão, fazer um retorno à capacidade de se flexionar sobre o próprio pensar.
Por que tantos enxergam esses eventos apenas pela emoção? Não é apenas pela condição material. É porque foram condicionadas a essa posição. Esse condicionamento é resultado de um sistema comunicacional e midiático de caráter fascista. Um sistema que age por decisão política deliberada de manipular consciências. O fascismo, em sua versão contemporânea, substitui o debate pela imposição: em vez de co-construir sentidos coletivos, impõe uma realidade fabricada e a distribui como verdade única. O evento na Maré foi uma peça dessa engrenagem, um ensaio de manipulação simbólica que reativa um velho recurso do autoritarismo: o medo como método de governo. Mas não se trata de um medo qualquer; trata-se da construção de um novo medo, redesenhado para a era digital, que precisa de imagens virais, manchetes rápidas e inimigos visíveis. Essa estratégia, repetida em diferentes territórios e eventos da extrema direita global, prepara emocionalmente as pessoas para aceitar a exceção como regra.
O Brasil vinha experimentando um breve, mas significativo período de tranquilidade. Depois de anos de tensão, ódio e manipulação, as pessoas começaram a respirar. O governo central conseguiu reorganizar a pauta política e reconquistar, pouco a pouco, a confiança popular. Curiosamente, essa fase de calmaria nasceu das próprias trapalhadas da família Bolsonaro no exterior. As investidas desastradas do clã nos Estados Unidos, as tentativas de influenciar o debate internacional contra o Brasil, as aproximações mal calculadas, as falas desastrosas que geraram sanções e boicotes, acabaram tendo um efeito oposto ao desejado: deram ao presidente Lula a oportunidade de se recolocar no centro da cena. As comparações se tornaram inevitáveis: de um lado, o caos e o ridículo; de outro, a sobriedade e a reconstrução da soberania. Mas, para a extrema direita, essa serenidade era improdutiva. A ausência de medo significava perda de controle da narrativa e do poder. E, sem crise, não há cliques, não há manchetes, não há mercado. Por isso, precisavam criar uma nova pauta, um novo medo, e o narcoterrorismo surgiu como o produto perfeito. Ele não é apenas um discurso político; é um modelo de negócio. A criação do medo movimenta toda uma cadeia: o medo vira audiência; a audiência vira dinheiro; e o dinheiro mantém viva a engrenagem da manipulação. O caos é a moeda central dessa economia. É assim que se financia o sistema que chamaremos, mais adiante, de Economia da Mentira.
Por que trazer a palavra narcoterrorismo para o centro da análise? Porque ela é, antes de tudo, uma metalinguagem da violência. Uma palavra que existe para justificar a própria violência. Enquanto o governo central tenta desestruturar a arquitetura econômico-financeira do crime, o estado do Rio de Janeiro e seu governo voltam-se contra a população mais vulnerável dessa suposta cadeia “narcoterrorista”. O termo reaparece agora como peça de um roteiro ensaiado. Ele surgiu porque a extrema direita precisava de uma nova pauta política, um novo medo a ser vendido. Há cerca de trinta dias, começou a circular o mesmo vocabulário: narcoestado, narcotraficantes, narcoterrorismo, violência. Essa campanha linguística não nasceu do acaso: ela foi pensada para substituir a ausência de crise. Depois das trapalhadas diplomáticas da família Bolsonaro nos Estados Unidos — que resultaram em constrangimentos públicos e boicotes —, o governo Lula conseguiu ocupar um espaço político inesperado: o de defensor da soberania. As barbeiragens da família, em vez de enfraquecer o país, acabaram fortalecendo o governo central, que passou a disputar de novo o afeto e a confiança da população. Isso era péssimo para a extrema direita. Por isso, o narcoterrorismo foi a pauta perfeita. Ele permitiu reinstalar o medo, reabrir o noticiário do caos e recolocar o Brasil no clima de tensão emocional que sempre favorece o discurso autoritário. Era necessário destruir o sossego , e o medo é a ferramenta mais eficiente para isso.
O termo narcoterrorismo ganha ainda mais força porque se alinha ao cenário internacional. Enquanto o Brasil tenta se reequilibrar, os Estados Unidos conduzem operações navais no mar do Caribe e da América Central sob o pretexto de vigiar o narcoterrorismo. Essa coincidência geopolítica não é neutra: historicamente, o termo tem servido de justificativa para intervenções estadunidenses em países latino-americanos. (veja nosso artigo falando das Intervenções americanas na américa do sul) Cria-se, assim, uma dupla camada de medo: o medo interno: o da guerra nas comunidades, e o medo externo: o medo da intervenção estrangeira. É a Arquitetura do Medo em escala ampliada: a convergência entre o medo doméstico e o medo global, entre o caos midiático e o lucro político. E quem dá palco a tudo isso? A mídia hegemônica e as redes sociais.
A mídia hegemônica reproduz, sem pudor, as pautas irracionais e manipuladoras da extrema direita. O desequilíbrio emocional do país é sua maior fonte de lucro. A audiência é o produto; o medo é matéria prima. O ciclo é simples: atacar o governo federal garante visibilidade; visibilidade atrai anunciantes; anunciantes pagam para que o pânico continue. A mídia vende o caos para quem lucra com o caos. Nas redes digitais, o processo é ainda mais sofisticado. O medo foi transformado em ativo financeiro. Cada clique, cada compartilhamento, cada indignação vira lucro através da publicidade e do engajamento. A mentira, quando dá lucro, é reproduzida em escala industrial. Assim, a grande mídia e as plataformas digitais se unem num mesmo sistema de rentabilidade emocional: manter as pessoas em estado de confusão permanente. A segurança pública, nesse modelo, continua tratada como espetáculo metafísico. Combate-se a violência com violência porque isso gera audiência, e a audiência é o novo nome do poder.
Tudo isso forma a estrutura do que chamamos aqui de Economia da Mentira: um sistema que transforma desinformação em mercadoria e ignorância em lucro. A verdade, nesse modelo, não tem valor de troca, apenas o escândalo tem. A mentira é o novo petróleo: move o debate público e enriquece quem controla as refinarias do discurso, mídias, plataformas, partidos e agentes do caos. As plataformas vendem visibilidade; a mídia vende credibilidade; os políticos vendem medo. Juntos, constroem um mercado autorreferente, onde cada fake news rende dividendos e cada crise aumenta o faturamento. O medo, o ódio e a histeria são as commodities da política contemporânea. A Economia da Mentira não apenas distorce a percepção da realidade: ela a substitui. O cidadão vira consumidor de narrativas, a informação vira espetáculo, e a mentira vira modelo de negócio.
Por agora, vamos parar por aqui. Mas voltaremos. Este texto é o início de uma série de reflexões que vai revelar a teia por trás da Economia da Mentira. Preste atenção aos nossos próximos movimentos: vamos mostrar como essa estrutura está entranhada na política da extrema direita, nas conexões financeiras do narcotráfico e nas redes de poder que transformam o fascismo em mercadoria. O fascismo é um grande negócio — e é por isso que ele ainda resiste. Nossa tarefa é desmontar o que o financia. “Derrubar o fascismo não é apenas uma questão moral ou ideológica — é uma tarefa econômica: quebrar o fluxo de capital que alimenta a mentira.”. E é isso que vamos fazer.






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