top of page

Declaro, logo devasto: o PL da Devastação e a sabotagem do futuro digital no Nordeste

  • Foto do escritor: Sara Goes
    Sara Goes
  • 18 de jul.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 23 de jul.

O PL da Devastação legaliza a autolicença ambiental e ameaça o futuro digital do Nordeste ao sabotar o planejamento de datacenters sustentáveis e soberanos


1. A autolicença como nova motosserra

O apelido não é exagero. Chamado de PL da Devastação, o Projeto de Lei 2159 não moderniza o licenciamento ambiental, ele o desintegra. A substituição da análise técnica por autodeclarações transforma o licenciamento em um ato de fé. O empreendedor se compromete por meio de um clique, sem necessidade de vistoria prévia, sem estudo aprofundado e sem controle público efetivo. No papel, isso parece eficiência. Na prática, é a legalização do improviso com impacto irreversível sobre o território.

O dispositivo central do projeto, a chamada Licença por Adesão e Compromisso, cria um cenário onde a ausência de diagnóstico se torna critério. Ao classificar como dispensáveis os estudos de impacto para atividades rotuladas como de “baixo impacto”, o projeto abre margem para que obras de alto consumo energético e hídrico sejam liberadas sem qualquer avaliação técnica. No Nordeste, onde clima, solo e redes de infraestrutura exigem equilíbrio delicado, isso equivale a jogar dados com o futuro.

O estudo técnico “Infraestrutura Crítica e Soberania Digital”, publicado em junho de 2023, já alertava para o risco dessa lógica. Segundo o relatório, o funcionamento de um datacenter depende de um ecossistema físico e institucional robusto, que envolve clima, energia, água, segurança e logística. Com o PL da Devastação, esse ecossistema se torna invisível. A análise de impactos indiretos e cumulativos deixa de ser exigência. O que passa a valer é a aparência de conformidade digital, mesmo que a base territorial esteja vulnerável.

2. Datacenter não nasce de improviso

Datacenters são equipamentos complexos, exigem previsibilidade térmica, estabilidade energética e planejamento logístico integrado. No semiárido nordestino, onde a resiliência ambiental é decisiva, a supressão de exigências técnicas transforma a instalação desses empreendimentos em risco estrutural. A eliminação da obrigatoriedade de licenciamento para determinadas obras pode viabilizar projetos em áreas ambientalmente frágeis, sem que seus efeitos sobre aquíferos, microclimas ou comunidades sejam sequer conhecidos.

Empresas globais de tecnologia precisam seguir padrões rígidos de rastreabilidade ambiental e social. Por isso, têm preferido o Sul Global, justamente por sua fragilidade regulatória, pela facilidade de aprovar projetos sem estudos aprofundados e pela tolerância maior a impactos socioambientais. O estudo de 2023 foi direto nesse ponto. Para que o Nordeste se torne referência global em datacenters sustentáveis, é preciso coerência normativa, segurança jurídica e compromisso público com a sustentabilidade. O PL entrega o oposto. Substitui técnica por formulário, planejamento por velocidade e controle por confiança cega na boa vontade empresarial.

O Brasil se torna menos atrativo para projetos sérios e sustentáveis. E o Nordeste, que vinha avançando com propostas integradas de soberania digital, vê a porteira ser escancarada para empreendimentos que exploram recursos sem compromisso com o território. O que se vende como desburocratização é, na verdade, uma renúncia do Estado à sua função de mediador entre desenvolvimento e proteção. No caso dos datacenters, isso significa liberar a instalação irresponsável de estruturas de altíssimo consumo hídrico, sem planejamento, sem avaliação de impactos cumulativos e sem controle público. O licenciamento ambiental, mesmo enfraquecido, ainda é uma das últimas barreiras contra esse tipo de apropriação predatória. O PL da Devastação derruba essa barreira.

3. O Ceará planta onde o PL quer arrasar

Na contramão desse desmonte, o Ceará vem articulando um caminho próprio. O projeto de indicação da deputada Larissa Gaspar, que propõe a criação da Política Estadual de Soberania Digital, é uma resposta clara à lógica da autolicença. A proposta estabelece diretrizes para a territorialização da infraestrutura digital, o uso de energia limpa, o estímulo ao software livre e a participação popular na governança dos dados. O texto prevê ainda a criação de um fundo estadual para inovação e um conselho deliberativo com representação social e técnica.

Enquanto o PL da Devastação entrega o território à boa vontade empresarial, o projeto cearense reafirma que soberania digital é política pública, e que datacenters são organismos enraizados em redes de energia, conhecimento e justiça ambiental, não caixas isoladas que nascem por milagre, mas por escolha coletiva e projeto de futuro.

Esse contraste ganhou hoje uma dimensão ainda mais clara. Durante cerimônia realizada nesta sexta-feira, 18 de julho, em Missão Velha, o presidente Lula confirmou a liberação de recursos federais para a retomada das obras da Transnordestina e assinou a Medida Provisória nº 1307, que institui a Política Nacional de Infraestruturas Críticas de Estado. A MP reconhece que datacenters, cabos de energia, sistemas de conectividade e demais estruturas digitais são componentes estratégicos da soberania nacional e determina que sejam tratados com planejamento, controle público e integração federativa. Segundo o texto, cabe ao Estado garantir a segurança, a continuidade e a resiliência de infraestruturas críticas consideradas indispensáveis à prestação de serviços públicos essenciais e à preservação do interesse nacional.

E essa dimensão estratégica ganha contornos ainda mais urgentes com o alerta da jornalista Denise Assis, em sua coluna no Brasil 247, sobre o relatório do GSI. O documento revela que cerca de 97% do tráfego de dados do Brasil depende de 16 cabos submarinos, cuja extensão permitiria dar 35 voltas ao redor da Terra, e que esses sistemas estão expostos ao risco de ataques físicos especialmente nos pontos de aterragem, como em Fortaleza. É um lembrete de que a fragilidade normativa no licenciamento ambiental se conecta diretamente à vulnerabilidade da nossa conectividade e da segurança nacional.

Enquanto Lula reafirma que infraestrutura crítica não é assunto privado, é questão de Estado, o PL da Devastação tenta passar por cima de qualquer barreira técnica ou regulatória. A MP não só confronta sua lógica, como exige que o país planeje suas infraestruturas com inteligência territorial e responsabilidade coletiva. O Nordeste sabe que infraestrutura crítica exige mais que pressa. Exige compromisso, proteção estratégica e chão firme. Por isso, não cabe aceitar que a base do futuro seja uma terra arrasada.

Comments


pin-COMENTE.png
mantenha-se atualizado

Obrigado pelo envio!

  • linktree logo icon
  • Ícone do Instagram Branco
  • x logo
  • bluesky logo icon
  • Spotify
  • Ícone do Youtube Branco
  • linktree logo icon
  • x logo
  • bluesky logo icon
bottom of page