O “Domo de Ouro” como projeto hegemônico
- Redação
- há 42 minutos
- 6 min de leitura
Na coletiva em Washington, Trump anunciou o “Domo de Ouro”, sistema antimíssil orbital de 175 bilhões de dólares, exaltou o Alabama como reduto patriótico e atacou o Judiciário e a Venezuela, convertendo tecnologia em mito e economia em vingança

A coletiva de imprensa de 2 de setembro de 2025 em Washington, organizada por Donald Trump para anunciar a transferência do Comando Espacial dos Estados Unidos para Huntsville, Alabama, foi encenada como muito mais do que um ato administrativo. Naquele palco, o presidente estava cercado por Pete Hoekstra, secretário de Defesa, Troy Edward Meink, secretário da Força Aérea, Katie Britt, senadora pelo Alabama, Tommy Tuberville, senador pelo Alabama, JD Vance, vice-presidente dos EUA, Mike Rogers, deputado e presidente do Comitê de Serviços Armados da Câmara, Robert Aderholt, deputado pelo Alabama, e Dale Strong, deputado pelo Alabama. A presença desse grupo, todos ligados ao campo militar ou à representação política do Alabama, conferiu à cena um caráter de coro uníssono, em que política doméstica, defesa nacional e retórica econômica se fundiram em um projeto hegemônico político, econômico e simbólico.
Ao declarar que Huntsville passaria a ser conhecida como a “cidade foguete” e que a decisão geraria “mais de 30.000 trabalhos” e “bilhões de dólares de investimento”, Trump inscreveu a mudança territorial como ato fundacional. O Alabama, “povo maravilhoso, que trabalha duro e não faz joguinho”, foi premiado como reduto patriótico, enquanto o Colorado foi punido por ter, segundo ele, “eleições automaticamente fraudulentas” devido ao voto por correio. A cena performa uma moralidade: uns são merecedores, outros estão corrompidos.
A promessa de supremacia no espaço

No centro do anúncio, o “Domo de Ouro”. Trump descreveu-o como “do tipo que ninguém nunca viu antes”, um sistema antimíssil que integraria satélites, interceptadores, defesas móveis e lasers de energia dirigida, com custo estimado em 175 bilhões de dólares até 2029. “Nós teremos um domo de ouro, do tipo que ninguém nunca viu antes. E, por sinal, o Canadá ligou e eles querem ser parte disso”, afirmou, projetando o escudo como símbolo de supremacia tecnológica e instrumento de dependência internacional.
Hoekstra reforçou o enquadramento ao dizer que “quem quer que controle os céus irá controlar o futuro do combate”. Tuberville acrescentou que a decisão pouparia 480 milhões de dólares e traria sinergia com a NASA, o FBI e a SpaceX já presentes em Huntsville. Vance traduziu o sentido estratégico: “não dá para vencer a batalha do futuro a menos que você controle os céus”. Assim, a retórica conjuga cifras, metáforas e destinos para fixar a imagem de uma muralha celestial norte-americana.
A disputa interna sobre tarifas

A coletiva não foi apenas sobre mísseis ou satélites. Repetidamente, Trump inseriu a questão das tarifas comerciais como eixo da narrativa. Ele afirmou que “outros países usaram tarifas contra a gente por anos e nós nunca usamos”, insistindo que acordos anteriores eram “horríveis” e que os Estados Unidos haviam sofrido “bullying” por décadas. Segundo ele, foi sua política tarifária que atraiu “cerca de 17 trilhões de dólares em investimentos” e deu ao país a liderança em inteligência artificial.
Esse recurso à repetição não serve apenas como argumento. Funciona como mecanismo de sugestão, em que a mentira dita muitas vezes se converte em verdade emocional. A disputa comercial é encenada como drama coletivo, no qual o país assume o papel de criança humilhada que, de repente, encontra um protetor que promete vingança.
A criação de fantasmas no Judiciário

Ao longo da coletiva, Trump reiterou a ideia de que existe um inimigo interno, tribunais dominados por juízes de esquerda. Referiu-se a decisões que questionaram a legalidade de ações de sua administração como “vereditos muito assustadores” e culpou “cortes esquerdistas” por agir em defesa de “nações estrangeiras”.
Essa demonização do Judiciário não apenas reforça a ideia de perseguição, mas cria um clima de ameaça difusa que legitima a concentração de poder no líder. O que deveria ser espaço de mediação jurídica é reduzido a palco de conspiração, reforçando o apelo a uma autoridade suprema capaz de restaurar a ordem.
A Venezuela como fantasma externo

Em meio às falas sobre Huntsville e o Domo de Ouro, Trump inseriu outro elemento narrativo, a Venezuela. Segundo ele, “temos muitas drogas que estão entrando país adentro” e “essas aí vieram da Venezuela, e elas vêm muito da Venezuela”. Acrescentou ainda que, instantes antes da coletiva, militares norte-americanos haviam afundado “um barco carregando drogas”.
No mesmo dia, confirmou à imprensa que 11 supostos narcotraficantes venezuelanos foram mortos no ataque ao barco. O episódio foi narrado como demonstração de força imediata: “tem mais de onde aquilo veio”. Aqui, o inimigo externo aparece como projeção de todos os males, conectando insegurança doméstica e hostilidade estrangeira. Essa lógica é típica da construção de bodes expiatórios: ao deslocar a culpa, concentra-se o medo em figuras reconhecíveis e manejáveis.
A ruptura com o Tratado do Espaço Exterior

O discurso de Trump também expôs uma contradição com o Tratado do Espaço Exterior de 1967, assinado pelos Estados Unidos. O artigo III estabelece que todas as atividades espaciais devem ocorrer “em conformidade com o direito internacional, no interesse da manutenção da paz e da segurança internacionais”. Já o artigo IV proíbe explicitamente “a colocação em órbita de qualquer objeto portador de armas nucleares ou de qualquer outro tipo de armas de destruição em massa, bem como o estabelecimento de bases, instalações e fortificações militares” no espaço.
Ao apresentar o Domo de Ouro como escudo orbital de múltiplas camadas com satélites, interceptadores e armas de energia dirigida, Trump rompe com a lógica pacífica do tratado e aproxima os EUA de uma militarização formal do espaço. Quando o presidente afirmou que o sistema deixaria o país “disparado os número um no espaço” e que os rivais “não têm ninguém nem perto”, enunciou uma ruptura não apenas técnica, mas jurídica, a substituição do princípio de cooperação internacional pela supremacia armada unilateral.
O infantilismo político e o narcisismo coletivo

A coletiva também revelou traços de um infantilismo político que oscila entre vitimização e grandiosidade. Ao apresentar os EUA como país que por décadas “sofreu bullying” e, ao mesmo tempo, como potência destinada a liderar o espaço “por centenas de anos”, Trump dramatiza uma dependência afetiva que exige do público fidelidade incondicional. O líder se coloca como pai protetor, capaz de oferecer segurança absoluta, e exige que a massa infantilizada aceite sua autoridade como condição de sobrevivência.
Esse apelo não é casual. Ao mobilizar ressentimentos, medos e fantasias de proteção, a retórica transforma a política em teatro emocional. A promessa do Domo de Ouro não é apenas técnica ou militar, mas funciona como objeto de devoção, espécie de talismã contra a angústia coletiva.
Entre o simbólico e o estratégico

A coletiva apresentou, em camadas sobrepostas, os pilares desse projeto hegemônico. No plano político, a premiação do Alabama é também punição ao Colorado e à gestão Biden, enquadrada como obstrutora. No plano econômico, tarifas e reindustrialização militar são exaltadas como fontes de investimento e de liderança em inteligência artificial. No plano institucional, tribunais “esquerdistas” são transformados em inimigos internos, produzindo uma narrativa de traição que justifica o ataque ao Judiciário. No plano simbólico, a fusão entre cidade foguete, Força Espacial, Domo de Ouro e combate ao narcotráfico venezuelano cria uma alegoria de muralha celestial contra ameaças difusas.
Trump repetiu que “isso vai ajudar a América a defender e dominar as altas fronteiras” e que Huntsville será o centro dessa missão “por centenas de anos”. O exagero, a hipérbole e a teatralidade transformam a coletiva em ato semiótico: cada frase, um símbolo de resgate, cada número, um mito de abundância, cada inimigo citado, um espantalho que reforça a necessidade do escudo.
Considerações finais

O Domo de Ouro emerge como mais do que um sistema de defesa, é a tentativa de cristalizar uma hegemonia duradoura, onde política eleitoral, contratos bilionários, tarifação protecionista e narrativa nacionalista convergem. O discurso transforma tecnologia em mito, economia em vingança e território em altar patriótico. Ao insistir que sem tarifas o país viraria “terceiro mundo”, que cortes “esquerdistas” atuam contra a nação, que a Venezuela é inimigo constante e que o tratado internacional não limita mais a ação americana, Trump estrutura uma gramática que mistura ressentimento e grandiosidade.
A coletiva de 2 de setembro mostra que o projeto não é apenas militar, mas simbólico: um escudo no céu, uma muralha narrativa na terra e um dispositivo de poder destinado a ordenar aliados, domesticar rivais, punir inimigos e projetar o mito americano “por centenas de anos”.
Comentários