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Gerrymandering digital: como as redes manipulam eleições no Brasil

  • Foto do escritor: Rey Aragon
    Rey Aragon
  • há 5 horas
  • 19 min de leitura

A engenharia algorítmica que cria “distritos mentais”, molda emoções, reorganiza o eleitorado em bolhas comportamentais e ameaça a soberania democrática brasileira.


Este artigo revela como as plataformas digitais constroem “distritos eleitorais invisíveis” baseados em dados emocionais, traços psicológicos e padrões comportamentais, modulando a opinião pública com precisão cirúrgica. Um alerta urgente ao TSE, ao Congresso e à sociedade: a manipulação algorítmica já opera como crime eleitoral de novo tipo — capaz de decidir narrativas, comportamentos e resultados em 2026.

A Eleição Invisível



A eleição brasileira de 2026 já começou — e ela não está acontecendo no território físico, mas no território cognitivo. Enquanto o debate público olha para pesquisas, candidatos e alianças partidárias, a disputa real se desenrola em outra camada da realidade: a arquitetura invisível das plataformas digitais, onde algoritmos e capital privado constroem aquilo que chamo de gerrymandering digital. Trata-se de uma técnica sofisticada, capaz de reorganizar o eleitorado não por regiões geográficas, como no gerrymandering clássico, mas por regiões emocionais, grupos de comportamento, padrões de vulnerabilidade psicológica e tendências de engajamento afetivo. Em vez de redesenhar distritos no mapa, as plataformas redesenham o mapa mental do país.


O funcionamento é simples e brutal. Cada pessoa, ao interagir nas redes, deixa um rastro contínuo de sinais: medos, crenças, preferências, horários de maior fragilidade, temas que provocam raiva, conteúdos que geram prazer imediato, assuntos que disparam indignação moral. Esses sinais são processados por algoritmos que segmentam milhões de indivíduos em distritos cognitivos, grupos invisíveis definidos não pela rua onde moram, mas pelo perfil emocional que apresentam. Assim, uma pessoa que engaja com vídeos de violência urbana, notícias policialescas e conteúdos religiosos tende a ser colocada em um distrito mental do medo. Esse distrito recebe, de maneira sistemática, um fluxo contínuo de mensagens sobre “caos”, “invasões”, “corrupção das instituições”, “guerra cultural” e “necessidade de força”. O objetivo não é informá-la — é manter seu estado emocional ativado para direcionar sua percepção política.


Da mesma forma, uma mulher evangélica que consome conteúdos sobre maternidade, família e fé é automaticamente inserida em um distrito de indignação moral. Ela passa a receber narrativas cuidadosamente calibradas sobre “ameaças à família”, “doutrinação”, “destruição de valores” e “ataques à fé”. Não importa se tais ameaças não existem no mundo real; elas existem no seu mundo algorítmico, construído sob medida. Em ambos os casos, não é a realidade que molda o comportamento político — é o filtro emocional criado pelo algoritmo, ajustado por atores que pagam para direcionar, amplificar ou ocultar mensagens específicas.


Essa engenharia comportamental não acontece de forma aberta. Não há aviso, lei, auditoria ou escolha consciente. As pessoas simplesmente acreditam que estão “vendo as notícias”, quando na verdade estão recebendo uma versão personalizada de realidade, criada para maximizar vulnerabilidades cognitivas e produzir determinados efeitos políticos. Isso, e não as fake news isoladas, é o verdadeiro mecanismo de manipulação contemporâneo: a reorganização industrial da atenção, do afeto e da percepção coletiva.


Por isso afirmo: a maior eleição do Brasil não se vence apenas nas urnas — vence-se dentro da mente das pessoas, dias, meses e anos antes do voto. A democracia formal continua existindo, mas a disputa por ela foi deslocada para a camada invisível das plataformas, onde dinheiro, dados e algoritmos decidem quem vê o quê, quem acredita no quê e, no limite, quem vota em quem. O gerrymandering digital transforma cada emoção em território político, cada feed em distrito eleitoral e cada sujeito em alvo de uma operação psicológica contínua.


É essa eleição invisível — profunda, sistêmica e silenciosa — que precisamos revelar antes que seja tarde para 2026.



Do Território Físico ao Território Cognitivo



O gerrymandering nasceu como uma manobra cartográfica. Durante décadas, seu poder residiu na caneta que redesenhava fronteiras eleitorais nos Estados Unidos: arrastava-se uma linha para concentrar opositores em poucos distritos ou para diluí-los em muitos. A manipulação era física, gráfica, geométrica. A distorção democrática acontecia no papel. Mas o mundo mudou. As democracias do século XXI não são mais mediadas pelo território, e sim pela informação. E, como toda forma de poder, a técnica se adaptou.


A revolução digital deslocou o eixo da política. Em vez de perguntar onde as pessoas moram, as plataformas perguntam quem elas são — ou melhor, quem elas se tornam diante de determinados estímulos. Não interessa mais o bairro, a rua ou a zona eleitoral. Interessa o tipo de conteúdo que provoca raiva, o tipo de notícia que gera ansiedade, o tipo de imagem que aciona culpa, fé, ressentimento ou pertencimento. Com isso, a lógica do gerrymandering deixou de operar no espaço físico e passou a operar no espaço cognitivo. O mapa agora é interno. O território é emocional.


Essa transição é profunda e tem raízes materiais claras. No capitalismo digital, não é o voto isolado que importa, mas a capacidade de modular comportamentos em escala e ao longo do tempo. Cada curtida, cada vídeo assistido até o fim, cada mensagem encaminhada, cada pausa diante de um conteúdo serve como dado para construir um retrato psicológico. Esse retrato, por sua vez, determina o grupo mental ao qual a pessoa será destinada. A troca é simples: sai o distrito geográfico, entra o distrito comportamental. Sai o mapa político, entra o mapa afetivo.


A grande mutação é que, ao contrário do território físico, o território cognitivo é maleável, reconstruído diariamente pela interação. O algoritmo não redesenha fronteiras uma vez por década, como nos mapas eleitorais tradicionais; ele redesenha fronteiras infinitas vezes por minuto. As “bordas” dos distritos cognitivos são frágeis, fluidas, autoajustáveis e quase sempre invisíveis para quem está dentro delas. Uma mesma pessoa pode existir simultaneamente em vários microterritórios mentais, cada um estruturado para determinado tipo de influência política. Não se trata mais de controlar a região onde alguém vota, mas de controlar as condições emocionais pelas quais essa pessoa toma decisões.


Essa mudança representa uma ruptura histórica. O gerrymandering clássico reorganizava o eleitorado para manipular resultados. O gerrymandering digital reorganiza o próprio sujeito. Não desloca apenas grupos; desloca percepções. Não altera apenas fronteiras; altera percepções de realidade. E isso, na lógica do materialismo histórico-dialético, significa que a disputa deixou de ser sobre território e passou a ser sobre consciência. A luta de classes atravessa agora a infraestrutura tecnológica que media a vida cotidiana, moldando a base cognitiva da política antes mesmo que o sujeito perceba que está sendo disputado.


Em síntese, a geografia deixou de ser o mapa. A mente se tornou o novo terreno eleitoral. E enquanto o país continua olhando para urnas, campanhas, pesquisas e comícios, a verdadeira batalha já está acontecendo em outra camada da realidade: aquela em que algoritmos redesenham, silenciosamente, a topografia mental da sociedade.

Distritos Eleitorais Digitais



Se o gerrymandering clássico dependia de mapas e lápis, o gerrymandering digital depende de dados e algoritmos. As plataformas não dividem o país por regiões geográficas, mas por padrões emocionais, cognitivos e comportamentais. Cada pessoa, ao interagir com o ambiente digital, envia um fluxo contínuo de sinais que revelam aquilo que costuma permanecer oculto até para o próprio indivíduo: seus medos, suas obsessões, seus gatilhos de ansiedade, suas expectativas, seu grau de sugestionabilidade, sua crença na autoridade, seu nível de ressentimento, sua propensão a acreditar em narrativas conspiratórias ou a se envolver em conflitos morais.


Essas plataformas transformam esses sinais em clusters comportamentais. Cada cluster é um grupo de indivíduos que compartilha padrões semelhantes de reação emocional, consumo de conteúdo, vulnerabilidade cognitiva e disposição para engajamento político. E é aí que nasce o distrito eleitoral digital: um território invisível, formado não por ruas ou bairros, mas por estados mentais recorrentes. É exatamente nesses territórios que as narrativas políticas são distribuídas, calibradas e potencializadas para produzir efeitos específicos.


O que faz desses distritos uma arma tão poderosa é a capacidade de serem continuamente atualizados. Ao contrário dos distritos geográficos, que ficam congelados por anos, os distritos digitais se reorganizam em tempo real. Se uma pessoa passa a consumir vídeos alarmistas, seu cluster muda. Se ela interage com mensagens de violência urbana, seu distrito é reconfigurado. Se demonstra simpatia por conteúdos religiosos, imediatamente passa a receber narrativas morais e apelos identitários. Cada toque na tela, cada pausa em um vídeo, cada comentário ou compartilhamento funciona como uma espécie de voto cognitivo: um microgesto que reposiciona o indivíduo dentro do grande mapa emocional do país.


A precisão é tão cirúrgica que o algoritmo sabe antecipar comportamentos antes que o próprio sujeito tenha consciência deles. Ele não apenas observa padrões, mas prediz estados mentais futuros. E, a partir dessas previsões, entrega conteúdos capazes de reforçar, estimular ou manipular esses estados. Uma pessoa que tende a sentir medo à noite recebe conteúdos mais alarmistas depois das 23h. Uma pessoa que demonstra instabilidade afetiva recebe vídeos que reforçam indignação. Uma pessoa que reage a estímulos religiosos recebe mensagens políticas disfarçadas de pregação. Cada entrega é um cálculo, cada cálculo é uma aposta sobre como moldar o próximo passo emocional do indivíduo — e isso é o coração do distrito digital.


É importante notar que essa engenharia é profundamente material. Não é uma abstração psicológica ou uma metáfora da comunicação. É um mecanismo concreto, estruturado em bancos de dados, modelos estatísticos e sistemas de recomendação que constituem, na prática, aparelhos privados de hegemonia. Não é preciso que um político ou um partido redesenhe mapa algum: as plataformas fazem isso sozinhas, como parte de seu modelo econômico, que depende da maximização de engajamento emocional para gerar lucro. Ao mesmo tempo, grupos políticos e econômicos apenas aproveitam essa infraestrutura e pagam para direcionar mensagens específicas para cada distrito mental construído pelo algoritmo.


Na prática, esses distritos não têm nome, mas têm função. Há o distrito do medo, o distrito da raiva, o distrito da fé, o distrito do ressentimento, o distrito da performance de classe média, o distrito do antipetismo moralizado, o distrito militarizado, o distrito conspiratório. Cada um recebe uma dieta informacional própria, ajustada para reforçar emoções que favorecem determinados posicionamentos políticos. Não se trata de persuadir racionalmente; trata-se de posicionar emocionalmente.


Esse é o ponto crucial: o distrito digital não organiza votos. Ele organiza afetos. E, ao organizar afetos, organiza percepções. E, ao organizar percepções, organiza escolhas políticas. A democracia continua existindo formalmente, mas sua base cognitiva está sendo redesenhada em tempo real por sistemas que não pertencem à sociedade brasileira e que podem ser acionados por interesses nacionais e estrangeiros sem qualquer tipo de controle público.


Assim, os distritos eleitorais digitais não são apenas uma evolução do gerrymandering. Eles são a forma superior da manipulação política contemporânea: uma tecnologia capaz de transformar emoções em território, comportamento em mapa e vulnerabilidade humana em ferramenta de disputa eleitoral. É nessa engrenagem que o Brasil está preso.



Como se Manipula a Mente



A engrenagem do gerrymandering digital só funciona porque opera no ponto mais vulnerável e mais determinante da vida social: a mente humana. Ao contrário da propaganda política tradicional, que disputa argumentos, slogans e narrativas, o sistema atual disputa estados emocionais, vieses cognitivos e padrões de reação que já existem nas pessoas antes mesmo de qualquer mensagem aparecer. A manipulação é eficaz não porque convence racionalmente, mas porque ativa mecanismos psicológicos automáticos e previsíveis, conhecidos há décadas pela psicologia comportamental, mas agora elevados à escala industrial pelos algoritmos das grandes plataformas.


O primeiro desses mecanismos é o viés de confirmação. Ele faz com que as pessoas procurem, valorizem e recordem apenas informações que reforcem suas crenças prévias. Os algoritmos amplificam esse viés de forma radical. Ao identificar que um sujeito reage com mais intensidade a conteúdos alarmistas, religiosos, conspiratórios ou de indignação moral, o sistema passa a servi-los incessantemente, criando a ilusão de que “todo mundo está falando disso”, mesmo que apenas uma fração mínima da sociedade esteja. O feed se torna um espelho distorcido da própria mente. E quanto mais a pessoa acredita que está “informada”, mais profundamente mergulha dentro da bolha que o algoritmo construiu ao redor dela.


Outro mecanismo decisivo é a heurística da afetividade: o cérebro toma decisões baseadas não na análise racional, mas nas sensações que uma informação desperta. Medo, raiva, repulsa, esperança, devoção religiosa, ressentimento, saudade, orgulho ferido: tudo isso é mensurável, previsível e explorável. Uma pessoa que assiste a vídeos de violência urbana tende a receber mais conteúdos que intensificam sua percepção de ameaça. Uma pessoa que engaja com conteúdos religiosos tende a receber mais mensagens moralizantes que sugerem que a política é uma guerra espiritual. Uma pessoa que demonstra ressentimento social tende a ser exposta a narrativas que identificam inimigos claros e fáceis de odiar. Nesses casos, o algoritmo não sugere informação: ele fabrica atmosferas emocionais.


Esse processo é reforçado pela heurística da disponibilidade. A mente humana tende a considerar mais relevantes e mais verdadeiros os assuntos que aparecem com maior frequência. Não importa se são estatisticamente irreais; importa se são emocionalmente insistentes. Foi assim que comunidades inteiras passaram a acreditar que o Brasil estava à beira do comunismo em 2018, que vacinas causavam doenças em 2020 e que havia um plano secreto para fechar igrejas em 2022. Esses medos não surgiram espontaneamente: surgiram porque milhares de pessoas foram inseridas em distritos cognitivos que repetiam tais narrativas sem descanso. A repetição emocional cria senso de realidade.


O algoritmo também opera como uma máquina de priming, preparando o terreno psicológico para crenças futuras. Antes de uma fake news se espalhar, a plataforma já colocou o indivíduo em estado de alerta emocional, com conteúdos que ativam medo, repulsa sexual, indignação moral ou ansiedade política. Assim, quando a mentira aparece, ela encontra uma mente pronta para absorvê-la. A mentira não vence porque é convincente, mas porque é compatível com o estado emocional que o algoritmo produziu.


No Brasil, isso já se materializou de maneiras extremamente claras. Em 2018, comunidades religiosas foram inundadas por vídeos sobre “ideologia de gênero” e “ameaças à família”, enquanto grupos de jovens homens receberam uma dieta de memes violentos, conteúdos anti-institucionais e discursos militarizados. Em 2020 e 2021, o país assistiu à formação de distritos antivacina que não surgiram de ignorância, mas de um ambiente emocional cultivado por semanas de conteúdos alarmistas. Em 2022, bolhas bolsonaristas receberam mensagens que sugeriam fraude eleitoral meses antes da eleição, criando a percepção de que o resultado seria ilegítimo antes mesmo da contagem dos votos. A psicologia antecedeu a política.


A manipulação só é possível porque o algoritmo conhece o indivíduo melhor do que ele próprio. Ele sabe quanto tempo a pessoa fica olhando para uma imagem de violência. Sabe quais palavras a fazem hesitar. Sabe que tipo de humor a desarma. Sabe qual música a faz sentir saudade. Sabe qual medo é capaz de paralisá-la. Cada reação é convertida em dado. Cada dado se torna predição. Cada predição se converte em influência. E, a partir dessa cadeia, a plataforma constrói a narrativa política mais eficaz para aquele sujeito específico.


É assim que se manipula não apenas a opinião, mas o próprio processo cognitivo que antecede a opinião. Não se disputa mais o voto; disputa-se a mente que vota. O algoritmo transformou o inconsciente político da sociedade em terreno de exploração. E esse é o núcleo do gerrymandering digital: reorganizar emoções para reorganizar o país.

Um Novo Crime Eleitoral



O gerrymandering digital não é apenas um problema de comunicação ou uma distorção algorítmica. Ele é, na essência, um novo tipo de crime eleitoral. No passado, comprar votos exigia dinheiro vivo, cabos eleitorais, transporte irregular de eleitores e mecanismos visíveis de fraude. Hoje, compra-se algo muito mais valioso e muito mais difícil de detectar: compra-se influência comportamental direcionada, calibrada para cada vulnerabilidade psicológica, entregue em tempo real e com precisão milimétrica. Não é a compra de votos; é a compra de condições mentais que determinam o voto.


Essa manipulação é paga, e é aí que reside seu caráter criminoso. Grupos políticos, think tanks, organizações estrangeiras e empresas privadas adquirem pacotes de segmentação comportamental nas plataformas e direcionam conteúdos específicos para cada distrito cognitivo. A operação é simples: paga-se para que certas narrativas sejam invisíveis para uns e inevitáveis para outros. Paga-se para saturar determinados públicos com medo, ódio, rumores conspiratórios, mensagens moralizantes ou ataques coordenados a instituições. Paga-se para apagar do feed de milhões de pessoas qualquer conteúdo que contrarie a emoção dominante daquele distrito mental. A eleição, nesse modelo, não é disputada; é arquitetada.


Essa arquitetura de influência não se confunde com propaganda eleitoral tradicional. Ela ultrapassa completamente o campo da comunicação política porque atua sem conhecimento, sem consentimento e sem possibilidade de defesa por parte do eleitorado. O cidadão não sabe que está sendo manipulado, não tem como perceber a segmentação invisível e não possui ferramentas para contestar as narrativas que dominam seu ambiente informacional. Ele está exposto a uma forma de engenharia comportamental que transforma o próprio processo cognitivo em campo de manipulação comercial e política.


Do ponto de vista jurídico, isso equivale a manipular a soberania popular em sua fase mais profunda: a fase da formação da vontade. Se a vontade do eleitor é moldada por estímulos pagos, calibrados para atingir emoções específicas e entregues de modo diferenciado para cada grupo, então a igualdade de condições entre os candidatos é destruída. Não existe mais isonomia de acesso à informação. Não existe mais neutralidade do debate público. Não existe mais liberdade real de escolha. O que existe é uma assimetria total entre quem paga para modular percepções e quem tenta disputar ideias em campo aberto.


O caráter transnacional dessa operação torna o problema ainda mais grave. Grupos ligados à extrema-direita dos Estados Unidos, da Europa e de Israel já testaram mecanismos de influência segmentada que chegaram ao Brasil por meio das plataformas. As mensagens não precisam atravessar fronteiras fisicamente; atravessam algoritmicamente. E, quando chegam, se instalam diretamente nos distritos cognitivos formados pelo comportamento do público brasileiro. O país passa a viver sob influência de narrativas, interesses e campanhas que não respeitam soberania, leis nacionais ou instituições democráticas.


No plano material, a manipulação não ocorre no voto, mas no processo de subjetivação política. O eleitor acredita que tomou uma decisão livre, quando, na verdade, foi conduzido a ela por um sistema que explorou seus medos, suas inseguranças, seus preconceitos, sua fé, sua raiva ou seu ressentimento. É uma fraude cognitiva. E uma democracia que permite fraude cognitiva permite a destruição silenciosa da vontade popular.


Por tudo isso, o gerrymandering digital precisa ser reconhecido como crime eleitoral moderno, comparável em impacto à compra de votos, à fraude nas urnas e à sabotagem institucional. Ele rompe a soberania informacional do país, desequilibra a competição política e permite que interesses apoiados por capital estrangeiro manipulem a mente do eleitor sem deixar rastro. Não se trata de debate público; trata-se de intervenção comportamental paga, planejada para moldar o resultado da eleição antes mesmo do início oficial da campanha.


Se o Brasil não enfrentar esse mecanismo agora, entrará em 2026 com a ilusão de liberdade, mas com a democracia sequestrada no nível mais profundo: o da consciência.



2026: O Risco Máximo



A eleição brasileira de 2026 ocorrerá no momento mais perigoso da história das democracias digitais. Diferentemente de 2018, quando a manipulação algorítmica ainda era uma novidade improvisada, e de 2022, quando a extrema-direita já operava distritos cognitivos avançados, 2026 será a primeira disputa nacional inteiramente moldada por inteligência artificial generativa, modelos preditivos de comportamento e sistemas de recomendação capazes de modular estados emocionais em escala industrial. O que antes era propaganda política agora é engenharia comportamental. E o que antes era mentira espalhada em massa agora é narrativa produzida sob medida para cada indivíduo.


A IA generativa inaugura um patamar inédito de manipulação porque permite que cada eleitor receba mensagens que parecem ter sido escritas especialmente para ele. A mesma máquina que produz vídeos falsos, áudios hiper-realistas e textos emocionalmente calibrados também aprende, em tempo real, o que faz cada pessoa hesitar, clicar, compartilhar, se irritar ou aderir. Isso significa que o distrito cognitivo deixa de ser apenas um grupo e passa a ser, potencialmente, um indivíduo. A micro-segmentação se transforma em nano-segmentação. O alvo deixa de ser uma categoria social e passa a ser uma pessoa de carne, osso e vulnerabilidades psicológicas específicas.


A radicalização política também será intensificada. Os distritos de medo, de indignação moral, de ressentimento e de antipolítica, já bem estabelecidos desde 2018, entrarão em 2026 mais rígidos, mais emocionalmente isolados e mais predispostos a narrativas de ruptura institucional. A lógica é simples: quanto mais o algoritmo reforça emoções extremas, mais ele alimenta comportamentos extremados. Uma pessoa que recebe conteúdos conspiratórios há quatro anos não chega a uma eleição como alguém que está apenas “mal informado”; chega como alguém que vive num ecossistema político alternativo, com leis próprias, supostos inimigos claros e uma sensação constante de guerra iminente.


Esse é o cenário que mais interessa à extrema-direita global. Ao contrário do que muitos imaginam, o objetivo de seus estrategistas não é convencer a maioria — é desestabilizar a percepção coletiva de normalidade, atacar instituições, corroer confiança na Justiça Eleitoral e criar um ambiente emocional tão polarizado que qualquer resultado desfavorável pareça fraude. Essa estratégia já está declarada por figuras do trumpismo, por think tanks conservadores nos EUA, por influenciadores que orbitam Israel e pelo ecossistema internacional que apoiou Bolsonaro. O Brasil é visto como laboratório geopolítico, e 2026 será o experimento mais perigoso.


A ofensiva não virá apenas de dentro. Plataformas estrangeiras, operadas a partir de centros tecnológicos nos Estados Unidos e na Ásia, terão papel central. Seus algoritmos continuam sendo caixas-pretas opacas, incapazes de auditoria pública e integradas a interesses políticos e econômicos que não coincidem com os do Brasil. Em ano eleitoral, pequenas alterações em recomendações, índices de relevância, sistemas de engajamento ou prioridades de conteúdo podem alterar a percepção de milhões de pessoas. A arquitetura que media a democracia brasileira não pertence ao Brasil. E isso é uma vulnerabilidade estrutural.


Diante desse cenário, 2026 representará o ápice da combinação entre gerrymandering digital, guerra híbrida, IA generativa e radicalização emocional de massas. Não se trata apenas de risco eleitoral, mas de risco sistêmico à estabilidade institucional. Um país submetido a distritos cognitivos radicalizados pode reagir de forma violenta diante de qualquer tensão. O ambiente perfeito para tumultos, atos antidemocráticos, rejeição de resultados, sabotagens informacionais e movimentos de massa orientados por narrativas fabricadas fora do controle nacional.


É por isso que afirmo: 2026 será um ponto de inflexão. Se o Brasil não compreender os riscos, poderá enfrentar não apenas manipulação eleitoral, mas uma tentativa coordenada de desgaste institucional que envolve atores nacionais e estrangeiros. Se compreender, poderá se tornar um dos primeiros países do mundo a defender sua soberania cognitiva e transformar a eleição em marco global de resistência democrática.

O que o Brasil precisa fazer agora



Se o gerrymandering digital reorganiza o território cognitivo da nação, a primeira tarefa do Brasil é reconhecer que estamos diante de uma ameaça estrutural à democracia e à soberania, e não de um mero “problema de fake news”. A resposta não pode ser moralista, nem tímida, nem burocrática. Ela precisa ser estratégica, jurídica, tecnológica e institucional, no mesmo nível de sofisticação da ameaça. Não basta reagir a cada mentira viral; é preciso reconfigurar o campo de batalha em que a disputa política acontece.


O ponto de partida é a Justiça Eleitoral. O TSE precisa incorporar explicitamente, em sua doutrina e em suas resoluções, o entendimento de que a manipulação algorítmica do fluxo informacional, quando financiada para fins eleitorais, constitui uma forma de fraude da vontade popular. Assim como a compra direta de votos já é crime, a compra de influência comportamental segmentada, baseada em dados sensíveis e emoções vulneráveis, precisa ser tratada como compra indireta da consciência do eleitor. Isso significa proibir ou restringir severamente o microtargeting político comportamental, exigir transparência total dos critérios de segmentação em anúncios eleitorais e punir com rigor candidatos, partidos, empresas e intermediários que utilizem dados pessoais para modular emoções e crenças de forma oculta.


Em paralelo, o Congresso Nacional deve compreender que regular plataformas não é “censura”, mas uma forma moderna de garantir isonomia democrática. Isso implica criar um marco legal que trate as grandes empresas de tecnologia como infraestruturas críticas da vida pública, com obrigações proporcionais ao poder que exercem. Entre essas obrigações estão: auditoria independente de sistemas de recomendação em períodos eleitorais; transparência sobre quem paga por anúncios políticos, para quais perfis são entregues e com base em quais critérios; proibição do uso de dados sensíveis, como religião, orientação política, estado emocional inferido ou condições de saúde, para fins de propaganda. A liberdade de expressão individual precisa ser preservada. O que deve ser regulado, com firmeza, é o uso industrial da manipulação comportamental paga.


O Executivo, por sua vez, precisa tratar a soberania informacional como questão de segurança nacional. Isso significa construir capacidade técnica própria para monitorar, analisar e responder a operações de guerra informacional, internas e externas. Um país que não consegue enxergar em tempo real como narrativas são distribuídas, quais grupos estão sendo inflados emocionalmente e quais distritos cognitivos estão sendo ativados, entra em qualquer eleição em posição de vulnerabilidade. É urgente criar centros públicos de inteligência comunicacional, articulando universidades, institutos de pesquisa, órgãos de Estado e sociedade civil, capazes de mapear fluxos informacionais e identificar padrões de manipulação antes que eles explodam em crises políticas.


Ao mesmo tempo, o país precisa investir em alfabetização midiática e cognitiva, não como panaceia ingênua, mas como parte de uma estratégia de longo prazo. As pessoas têm direito de saber que seus medos, sua fé, sua raiva e seu ressentimento podem estar sendo explorados deliberadamente por máquinas e por interesses políticos. Precisam entender o básico: que o feed não é um espelho neutro da realidade, que a sensação de “todo mundo pensa assim” pode ser apenas uma curadoria algorítmica, que vínculos emocionais intensos com certas narrativas podem ter sido produzidos artificialmente. Não se trata de criar um cidadão “imune à propaganda”, o que é impossível, mas de reduzir a assimetria brutal entre quem manipula e quem é manipulado.


Nada disso será suficiente se o debate público continuar reduzido a slogans sobre “liberdade de expressão”. A verdadeira questão não é se alguém pode postar uma opinião, mas quem controla a arquitetura que decide quais opiniões circulam, com que intensidade e para quais mentes. Democracia não é apenas o direito de falar, é o direito de não ter a própria percepção sequestrada por sistemas opacos desenhados para maximizar lucro e, por consequência, polarização. Um Estado que abandona seu povo à mercê dessas máquinas abdica de seu dever básico de proteger a integridade da vida pública.


Por fim, a sociedade civil organizada, a imprensa responsável, os movimentos democráticos e o campo progressista precisam entender que a luta contra o gerrymandering digital não é uma pauta técnica, restrita a especialistas. É uma frente de defesa da própria possibilidade de futuro democrático. Não basta denunciar fake news; é preciso denunciar o modelo de negócios que transforma a mente em mercadoria e a subjetividade em campo de exploração eleitoral. É preciso exigir transparência, pressionar por regulação, apoiar iniciativas de soberania tecnológica, fortalecer pesquisas independentes e produzir, também nas redes, contra-hegemonias informacionais que resgatem a centralidade da realidade material contra a avalanche de simulacros.


O Brasil ainda tem tempo. A eleição de 2026 ainda não chegou, mas a guerra pelo território cognitivo já está em curso. Cada dia sem reação é um dia em que distritos mentais são consolidando, afetos são cristalizados, percepções são distorcidas e a democracia é corroída silenciosamente, por dentro. Enfrentar o gerrymandering digital agora é a condição mínima para que, quando o eleitor digitar seu voto, esse gesto ainda tenha algo de verdadeiramente livre.

Conclusão — O cartógrafo invisível da democracia



A democracia moderna sempre dependeu de mapas. No passado, eram mapas físicos, traçados à caneta por legisladores interessados em manipular fronteiras para favorecer determinados grupos. Hoje, o mapa crucial não é geográfico, mas cognitivo. Ele não é desenhado por políticos, mas por algoritmos. Não está guardado em cartórios nem em tribunais; está distribuído nos servidores das grandes empresas de tecnologia, que redesenham incessantemente o terreno emocional onde cada cidadão vive sua experiência política cotidiana. O cartógrafo da democracia contemporânea não é humano. É um sistema que mede, prediz e explora padrões mentais com o objetivo de maximizar engajamento e, como efeito colateral devastador, modular comportamento político.


Esse cartógrafo invisível não reorganiza distritos físicos, mas distritos afetivos. Ele não agrupa pessoas por bairros, mas por medos, inseguranças, crenças religiosas, gatilhos morais, ressentimentos e vulnerabilidades cognitivas. E, ao fazer isso, transforma o processo eleitoral em algo fundamentalmente assimétrico: alguns cidadãos vivem em ambientes informacionais equilibrados, enquanto outros são inundados por narrativas que reforçam emoções extremas, ampliam percepções distorcidas e corroem a capacidade de julgamento crítico. O voto é secreto, mas a emoção que antecede o voto é manipulável. E é essa manipulação silenciosa, sofisticada e invisível que coloca as democracias em risco.


Se o Brasil não enfrentar essa realidade com a seriedade que ela exige, chegará a 2026 com uma eleição formalmente livre, mas materialmente comprometida. A disputa não será entre ideias, mas entre ecossistemas psíquicos radicalmente diferentes. A crítica, o debate e o dissenso terão sido substituídos por zonas de afeto altamente controladas, criadas para ativar as emoções mais lucrativas e, muitas vezes, mais destrutivas. A hegemonia não aparecerá como projeto político, mas como sensação espontânea, como “verdade emocional” fabricada no interior de bolhas cognitivas.


A boa notícia é que ainda há tempo. Quando uma sociedade reconhece que está sendo manipulada, dá o primeiro passo para recuperar sua autonomia. Quando um Estado entende que sua soberania informacional está em disputa, pode construir mecanismos para defendê-la. E quando instituições democráticas passam a ver algoritmos como agentes políticos de fato, e não como meras ferramentas neutras, podem regulamentar, auditar e limitar seu poder. A História mostra que nenhum mecanismo de dominação é absoluto: todos podem ser desarmados quando nomeados, denunciados e enfrentados coletivamente.


Mas é preciso agir agora. Não amanhã, não em 2026, não quando a próxima crise acontecer. Agora. Antes que o mapa mental do país seja totalmente controlado por máquinas que não respondem à sociedade brasileira. Antes que a opinião pública seja definitivamente substituída por percepções fabricadas. Antes que a democracia se torne apenas um ritual formal, esvaziado de sua substância.


O Brasil precisa recuperar a capacidade de decidir seu próprio destino. E isso só será possível quando compreendermos que o território mais disputado da política contemporânea não é o espaço físico, mas a mente humana. Se quisermos proteger o país, precisamos proteger o cidadão da manipulação invisível que molda sua percepção sem que ele perceba. Precisamos enfrentar o cartógrafo silencioso que desenha o país dentro de cada pessoa.


Defender a democracia, hoje, significa defender a soberania cognitiva. E esse é o desafio histórico do Brasil.



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