Guerra civil no MAGA: o império em ruptura
- Rey Aragon

- há 10 horas
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O racha entre Donald Trump e J.D. Vance expõe a batalha final pelo futuro da direita americana — uma disputa que atravessa religião, poder militar e hegemonia global
O movimento que prometeu “tornar a América grande novamente” entrou em colapso interno. De um lado, Trump, o oligarca que transformou o Estado em empresa familiar; do outro, Vance, o ideólogo que quer convertê-lo em regime teocrático. No centro, a guerra por Israel, pelo Pentágono e pelo controle da narrativa global.
O império em convulsão

Os Estados Unidos vivem hoje um processo de autodecomposição imperial que não se manifesta nas fronteiras, mas no coração do poder. O movimento que durante uma década se apresentou como o grito de revanche da América esquecida — o MAGA — tornou-se a arena de uma guerra civil ideológica, teológica e geopolítica. O que era um projeto de restauração nacional virou o campo de batalha de elites em ruína, teocratas em ascensão e radicais que sonham em incendiar o sistema por dentro.
A cisão não é apenas política; é ontológica. O MAGA dividiu o país em torno de dois modelos de destino: de um lado, Donald Trump, o empresário de cassino que transformou o Estado em espelho de seu império privado; do outro, J.D. Vance, o ideólogo que pretende refundar a República sobre bases religiosas e morais. Entre ambos, milícias digitais, teólogos de guerra, pastores-influencers e oligarcas financeiros disputam o comando da máquina de poder mais complexa do planeta. O império que colonizou o mundo pela força das armas e da informação agora trava sua guerra final dentro de si mesmo.
Essa guerra não se dá em trincheiras, mas em algoritmos, tribunais e púlpitos. O racha no MAGA não é uma crise doméstica: é a nova fase da guerra híbrida global, onde as linhas entre fé, propaganda, economia e militarização se dissolvem. O resultado é um regime em gestação — simultaneamente teocrático e corporativo — que já projeta seus efeitos sobre Israel, a Europa e a América Latina. A destruição interna do império é, hoje, o principal fato geopolítico do Ocidente.
O objetivo deste artigo é radiografar essa guerra interna com precisão cirúrgica: identificar seus exércitos, ideologias e estratégias, e compreender como o colapso do MAGA reflete o colapso da hegemonia americana. O que se vê não é a crise de um governo, mas o prelúdio de uma mutação histórica — um império que, depois de subjugar o planeta, volta suas armas contra o próprio corpo.
O trono sitiado: Donald Trump e o império do caos

Donald Trump é menos um político do que um sintoma. Ele não inventou o colapso americano; apenas lhe deu rosto, método e espetáculo. O magnata que transformou o cassino em modelo de Estado foi o operador final de uma lógica que o próprio império cultivou durante décadas: a fusão entre entretenimento, finança e poder. Sob Trump, a Casa Branca deixou de ser centro de racionalidade política e passou a funcionar como palco de reality show, em que a performance substitui a governança e a lealdade pessoal vale mais do que qualquer doutrina.
Trump não é um conservador — é um oligarca oportunista que percebeu o vazio ideológico de um país exausto e preencheu esse vácuo com o culto de si mesmo. Sua retórica nacionalista é apenas o disfarce de um projeto profundamente corporativo: reduzir o Estado à função de proteger os interesses do capital que o sustenta. O “America First” nunca significou soberania nacional, mas soberania empresarial. Foi a tradução política de um império que, incapaz de produzir hegemonia moral, tenta sobreviver pela acumulação e pelo espetáculo.
A relação de Trump com Israel é o exemplo máximo dessa instrumentalização. Ele não é pró-Israel por convicção teológica ou solidariedade histórica; é por cálculo. Israel funciona, para Trump, como um ativo simbólico e financeiro: um canal de acesso à elite evangélica americana, aos doadores do lobby sionista e aos think tanks militares que garantem sustentação no Capitólio. Sob seu governo, o apoio a Israel tornou-se mercadoria política — uma transação entre votos, armas e influência. O que a direita religiosa vê como aliança espiritual, Trump trata como contrato.
O trono que ele ocupa, porém, é frágil. A mesma máquina que o ergueu — mídia corporativa, Big Techs, Wall Street e o complexo militar-industrial — aprendeu a operar sem ele. O império que Trump diz comandar já se reprograma para o pós-Trump. Dentro do MAGA, ele é simultaneamente o pai fundador e o obstáculo à sucessão. Sua incapacidade de ceder o palco transformou o movimento em seita e o partido republicano em extensão de sua persona narcísica. O poder pessoal de Trump é absoluto apenas enquanto o caos lhe serve; fora dele, se dissolve.
O escândalo Epstein, os processos judiciais e o cerco institucional não são apenas episódios de corrupção, mas metáforas do império em declínio. Trump encarna a fusão final entre poder e degenerescência — a oligarquia financeira que perdeu qualquer noção de limite ético e moral. Ele é o espelho deformado de uma elite que, após décadas exportando crises e guerras, agora enfrenta seu próprio colapso moral interno. É por isso que o MAGA gira em torno de Trump como um buraco negro: tudo o que se aproxima é tragado pela gravidade de sua ruína.
Hoje, Trump governa um império sitiado. Perdeu o monopólio da narrativa e o controle da máquina. Em seu entorno, surgem sucessores, generais e ideólogos que se dizem mais fiéis à “causa” do que ao homem. O que o mantém no trono não é a força, mas o medo — o pavor de que, sem ele, o MAGA perca sua alma. E é exatamente esse medo que alimenta o próximo ato da tragédia americana: a ascensão do herdeiro doutrinário que promete substituir o caos por fé, a anarquia por cruzada, e o mito por dogma.
O herdeiro ideológico: J.D. Vance e a construção do Estado pós-liberal

J.D. Vance é a antítese e o herdeiro de Donald Trump. Se o magnata encarnou o império do caos, Vance representa a tentativa de transformar esse caos em doutrina. Formado nas entranhas do establishment que diz combater — Yale, Wall Street e o Vale do Silício — ele surge como o produto perfeito da metamorfose da direita americana: um tecnocrata convertido em profeta, um intelectual de guerra que prega ordem moral em meio à dissolução da república liberal.
Vance compreendeu o que Trump nunca entendeu: o MAGA não é apenas uma máquina de ressentimento, mas uma oportunidade histórica de refundar o Estado sobre novas bases teológicas e militares. Seu discurso pós-liberal propõe substituir os princípios iluministas da democracia americana por um modelo de “governo orientado ao bem comum” — eufemismo para um regime cristão-corporativo em que o poder espiritual se funde à razão de Estado. Não se trata de restaurar a Constituição, mas de superá-la, transformando a América em uma civilização hierárquica e moral, onde a obediência é virtude e o pluralismo, decadência.
A retórica de Vance bebe nas fontes do catolicismo integralista e do nacionalismo europeu entre guerras. Ele rejeita a ideia de liberdade individual como fundamento político e resgata a noção de autoridade como virtude civilizatória. Não fala em “direitos”, mas em “deveres”; não invoca “democracia”, mas “ordem”. Essa inversão semântica é o núcleo do seu projeto: converter a república liberal em um Estado confessional de mercado, onde fé, capital e segurança nacional coexistem sob uma mesma estrutura moral. É o retorno da teologia à política — e da moral à geopolítica.
Enquanto Trump governa por instinto, Vance opera por coerência. Ele constrói doutrina: cita pensadores católicos como Chesterton, Alasdair MacIntyre e Deneen; defende políticas de incentivo à natalidade e de censura moral; exalta a autoridade paterna como pilar civilizacional. O Estado que imagina não é o Estado-empresa de Trump, mas o Estado-Igreja, regulado por valores morais e sustentado por um exército de fé. É uma ideologia de cruzada, não de contrato — a promessa de redenção como programa de governo.
Na política externa, Vance adota uma ambiguidade calculada. Em público, defende Israel como bastião civilizacional; nos bastidores, tolera o antissemitismo latente de parte da base alt-right e insinua que o “globalismo” é produto de elites judaicas cosmopolitas. Para os sionistas cristãos, é ortodoxo; para os neonazistas, é um aliado tático. Essa capacidade de falar simultaneamente às duas tribos — os que veneram Israel e os que o odeiam — é o que o torna perigoso: ele costura, sob o manto do cristianismo nacionalista, uma coalizão de antagonismos históricos.
A ascensão de Vance marca o segundo estágio do MAGA: a doutrinação do caos. Trump destruiu instituições; Vance quer substituí-las. Ele não busca o escândalo, mas a normalização da exceção — a transição suave de uma democracia exausta para uma teocracia burocrática, legitimada pela retórica da salvação. Onde Trump encenava impulsos, Vance estrutura princípios. Onde o magnata impunha desordem, o ideólogo propõe disciplina. A anarquia se transforma em dogma.
Por trás de sua aparência controlada, Vance expressa o mais perigoso dos sonhos americanos: o de um país purificado da dúvida, regido por Deus e armado até os dentes. Seu cristianismo não é fé; é engenharia política. A promessa de “ordem” que o sustenta é apenas o eufemismo elegante de uma guerra cultural permanente — agora travada com Constituição, exército e teologia a serviço do poder.
Três exércitos sob a mesma bandeira: os blocos em guerra dentro do MAGA

O MAGA já não é um movimento — é uma confederação de forças em guerra civil latente. Sob a retórica unificadora de “tornar a América grande novamente”, coexistem três projetos de país, três teologias do poder e três maneiras distintas de compreender o império. O que os une é o ódio ao liberalismo e à democracia; o que os separa é o modo de substituí-los. Essa é a anatomia da nova direita americana: um mosaico de lealdades que compartilham o mesmo inimigo, mas sonham com regimes incompatíveis entre si.
O primeiro bloco é o sionista-institucional, herdeiro direto da tradição neoconservadora. Ele reúne Donald Trump, Pete Hegseth, Marco Rubio, Ben Shapiro, o Republic Jewish Coalition e boa parte do complexo militar-industrial. Para esses atores, a centralidade de Israel é dogma geopolítico e espiritual. Sua missão é preservar o império americano como guardião de Jerusalém e dos mercados globais. São os generais da guerra cultural pró-Israel e os operadores da diplomacia coercitiva. Representam o braço imperial clássico: o Pentágono, Wall Street e as corporações de energia e defesa. Sua ideologia é o sionismo cristão estratégico — uma fusão entre cálculo geopolítico e apocalipse religioso. É a ala que ainda acredita que o império pode ser salvo pela força.
O segundo bloco é o cristão-nacionalista, liderado por J.D. Vance e orbitado por Josh Hawley, parte da Heritage Foundation e influentes teólogos católicos e evangélicos. Diferente do primeiro grupo, esse bloco não busca apenas dominar o império, mas refazê-lo por dentro. Seu horizonte é a construção de um Estado moral, governado pela fé e legitimado por uma elite teocrática. Eles veem o liberalismo como pecado e o secularismo como ameaça existencial. Sua cruzada é interna: reformar a América como civilização cristã, mesmo que isso signifique o fim de sua democracia. O poder, para eles, é um sacramento — e a obediência, uma forma de redenção. Sua guerra é espiritual, mas suas armas são políticas: escolas, tribunais, redes religiosas e a infiltração gradual das instituições. Esse bloco sonha com o Império da Virtude, não com o Império do Mercado.
O terceiro bloco é o mais subterrâneo e volátil: o alt-right neonazista, formado por Nick Fuentes, os Groypers, grupos supremacistas brancos e milícias digitais. Esse exército não tem disciplina institucional, mas domina o campo simbólico. É a juventude radicalizada das redes — uma geração que nasceu sob o ressentimento da globalização e foi moldada por algoritmos de ódio. Para eles, o MAGA não é uma doutrina, mas uma guerra civil racial. Rejeitam Israel, desprezam o sionismo cristão e flertam abertamente com o revisionismo histórico e o culto ao fascismo. Seu objetivo não é conquistar o poder dentro do sistema, mas implodir o sistema. São os portadores do instinto de morte do império: acreditam que a destruição é a única forma de purificação.
Esses três exércitos coexistem numa trégua instável. Trump ainda funciona como o símbolo unificador — o “imperador” que cada facção acredita poder manipular. Para o bloco sionista, ele é o aliado previsível que garante Israel e o capital. Para o bloco cristão, é o meio transitório para uma ordem moral. Para o alt-right, é o cavalo de Troia que abrirá as portas do sistema. Essa convergência é tática, não ideológica. O MAGA é hoje uma coligação de inimigos internos, que se sustenta pela negação de tudo o que é externo: o feminismo, os imigrantes, os negros, os latinos, os liberais, os judeus dissidentes, a ONU, a ciência e a própria democracia.
Mas a disputa não é apenas simbólica: ela se materializa no controle dos instrumentos de guerra híbrida — o verdadeiro campo de batalha do século XXI. Cada bloco tenta dominar um setor do aparelho de poder. O sionista-institucional disputa o Pentágono e a política externa. O cristão-nacionalista infiltra o sistema educacional, jurídico e religioso. O alt-right domina as redes, as plataformas, a linguagem memética e o inconsciente digital. A guerra pelo império é, antes de tudo, uma guerra pela infraestrutura cognitiva da sociedade americana. É aí que o MAGA se autodevora: cada facção alimenta uma máquina de poder que já não serve ao todo, mas à sua própria fé.
O resultado é uma estrutura política sem centro. O império ainda existe, mas seu comando é difuso e contraditório. Os três exércitos marcham sob a mesma bandeira, mas não compartilham o mesmo destino. Um sonha com Jerusalém, outro com Roma, outro com Berlim. No meio, Trump — o rei cercado de templários, sacerdotes e bárbaros — tenta governar o colosso que o adora e o destrói. A guerra civil dentro do MAGA é, portanto, mais que uma luta de poder: é a reencenação moderna das guerras de religião — uma cruzada interna que definirá o que restará da América e do império que ela construiu.
O campo de batalha invisível: o controle da máquina de guerra híbrida

A guerra civil dentro do MAGA não se trava em campos ou parlamentos, mas nas entranhas do Estado profundo. O conflito que dilacera a direita americana é, na essência, uma disputa pelo controle da máquina de guerra híbrida — o complexo de poder que funde forças armadas, inteligência, sistema judicial, plataformas digitais, igrejas e indústria cultural em um único circuito de dominação. É dentro dessa máquina que se decide o destino do império, e é por meio dela que os três exércitos do MAGA tentam transformar ideologia em soberania.
No Pentágono, a luta é aberta. Pete Hegseth, colocado por Trump como novo arquiteto militar da era MAGA, promove uma purga silenciosa contra oficiais considerados “progressistas” ou “internacionalistas”. Sob seu comando, o Departamento de Defesa foi reconfigurado em torno de uma visão religiosa da guerra — uma doutrina que mistura moral cristã, excepcionalismo americano e messianismo pró-Israel. O objetivo é substituir a ética da dissuasão pela ética da cruzada: transformar as forças armadas em instrumento de purificação cultural. A máquina de guerra externa, antes voltada para inimigos fora das fronteiras, passa a ser programada para a guerra interna.
No sistema judicial e de segurança, a lógica é a mesma. Promotores, juízes e agentes federais identificados com o trumpismo atuam como uma força de lawfare contra adversários políticos. A justiça tornou-se um braço ideológico: perseguições seletivas, investigações direcionadas e impunidade para aliados. Sob a retórica de “restaurar a lei e a ordem”, o MAGA converte o direito em arma política — uma tática herdada das guerras híbridas que os próprios EUA exportaram para o mundo e agora aplicam em casa. A subversão das regras jurídicas não é erro, é método: o Estado de exceção como forma de governo.
O ciberespaço é o novo front dessa guerra. Após o rompimento com parte das Big Techs, o trumpismo construiu seu próprio ecossistema informacional — uma constelação de plataformas, servidores e canais de influência. X (antigo Twitter), Rumble, Truth Social e centenas de sites satélites formam uma arquitetura paralela de propaganda, desinformação e manipulação emocional. A alt-right opera como força irregular, disseminando memes, teorias conspiratórias e campanhas coordenadas de linchamento digital. O objetivo não é convencer, mas saturar: dominar o ambiente cognitivo a ponto de que a verdade perca valor estratégico. É a guerra da atenção transformada em guerra pela realidade.
O sistema religioso completa essa engrenagem. Igrejas evangélicas e católicas alinhadas ao MAGA atuam como centros de mobilização, treinamento e captação de recursos. Sermões substituem boletins partidários; pastores funcionam como agentes de inteligência espiritual; a fé é convertida em doutrina de segurança nacional. Essa simbiose entre religião e Estado transforma o púlpito em plataforma de guerra psicológica. As narrativas apocalípticas — “Deus contra o globalismo”, “a batalha final contra o mal” — são usadas para justificar violência e fidelidade incondicional. O exército invisível do MAGA não usa uniforme: usa Bíblia e algoritmo.
Cada bloco interno da direita tenta dominar uma parte dessa máquina. O sionista-institucional luta pelo Pentágono e pela política externa. O cristão-nacionalista infiltra o sistema jurídico e o aparelho religioso. O alt-right neonazista controla as redes e o imaginário digital. Nenhum domina o todo; cada um manipula um setor e sabota o outro. Essa fragmentação cria uma anomalia histórica: um império com múltiplos centros de comando e nenhuma unidade de propósito. O poder americano já não é piramidal — é fractal, replicado em cada grupo que aprendeu a operar a guerra híbrida para si mesmo.
A guerra híbrida que o império ensinou ao mundo volta-se agora contra ele. O que antes era instrumento de hegemonia global — lawfare, manipulação midiática, guerras informacionais, militarização de valores — tornou-se o motor de sua desintegração. O MAGA transformou o Estado em arena de sabotagem mútua: cada facção produz a sua própria realidade e tenta impor sua versão dos fatos como soberania. O império não está sendo invadido; está se desintegrando por excesso de guerra. A máquina que projetou o domínio americano está agora voltada para dentro — e o campo de batalha é a própria consciência nacional.
Os novos cruzados: religião, império e guerra cultural

A guerra interna do MAGA não é apenas pela administração do Estado, mas pela definição de Deus. O trumpismo, que começou como reação política, evoluiu para uma teologia. Seu vocabulário é o da fé, seu inimigo é o secularismo, e seu método é a cruzada. O império americano — historicamente fundado sobre o mito da missão divina — agora busca redenção por meio da guerra cultural. A política tornou-se liturgia; o voto, um sacramento; e o inimigo, uma heresia.
No coração dessa mutação está a fusão entre cristianismo e nacionalismo, um projeto que reconstrói a ideia de “nação escolhida” em termos militares e espirituais. Para os novos cruzados do MAGA, a América não é apenas um país, mas um instrumento de Deus. O destino nacional passa a ser narrado como profecia: o império é o campo da última batalha entre o bem e o mal, e Trump — mesmo em ruína — é o líder messiânico de uma era apocalíptica. A Bíblia deixa de ser texto moral e se torna plano estratégico: a guerra é o novo evangelho.
O fenômeno não é espontâneo. Ele foi arquitetado por décadas de infiltração teopolítica: igrejas transformadas em máquinas de propaganda, universidades confessionais alimentadas por think tanks, ONGs evangélicas operando como redes de lobby e arrecadação. Sob a influência de figuras como Steve Bannon e Pete Hegseth, o cristianismo político foi militarizado. O discurso religioso passou a tratar a cultura como campo de batalha, a moral como fronteira e a salvação como política pública. O altar se confundiu com o gabinete, e o púlpito, com o quartel.
Dentro dessa lógica, Israel ocupa um papel paradoxal. O sionismo cristão enxerga no Estado israelense não um aliado político, mas um instrumento escatológico. A defesa incondicional de Israel é, para os novos cruzados, uma etapa do Apocalipse: a reconstrução simbólica de Jerusalém como prelúdio da volta de Cristo. Essa crença, ao mesmo tempo teológica e estratégica, faz de Israel o coração espiritual da política externa americana. Mas, enquanto o bloco sionista-institucional vê nessa aliança uma razão de Estado, os nacionalistas cristãos a enxergam como cumprimento de profecia — e os neonazistas, como heresia. Assim, Israel deixa de ser consenso e se torna campo de guerra teológica dentro do MAGA.
O discurso religioso é o cimento que mantém unidas as frações rivais da direita. A fé cria o vínculo emocional que o capitalismo não é capaz de produzir. Ela fornece o sentido transcendental que legitima o autoritarismo e neutraliza a dúvida racional. Ao transformar o medo em fé e a fé em arma, o MAGA inaugurou uma forma de tecnopolítica espiritual: o controle das consciências por meio da linguagem da salvação. É a guerra psicológica travada em nome de Deus.
A guerra cultural é o braço visível dessa cruzada. Ela atua em três frentes: a destruição do pensamento crítico nas universidades, a censura moral nas artes e a criminalização das minorias como inimigo interno. Tudo que desafia o patriarcado, a fé literal ou a autoridade masculina é classificado como degeneração. A estética da cruzada é a da pureza: uniformes, bandeiras, orações, armas e slogans. O projeto é claro — substituir o debate público pela liturgia do medo e converter a sociedade em campo missionário permanente.
O resultado é um império que se reconstrói sobre bases religiosas e simbólicas. A racionalidade liberal, que sustentou os Estados Unidos durante dois séculos, é substituída por um messianismo digital armado. O poder já não se legitima pela lei, mas pela revelação; não pela razão, mas pela emoção; não pela política, mas pela fé. O MAGA deu à guerra cultural um corpo institucional e uma alma metafísica. Nasceu o Estado-teologia: uma forma de governo onde Deus é a Constituição e o inimigo é a dúvida.
As sombras da sucessão: o horizonte de 2028

O calendário imperial tem data de validade. Em 2028, Donald Trump não poderá, pela letra da Constituição, concorrer novamente à presidência dos Estados Unidos. Essa limitação, trivial em democracias maduras, tornou-se no MAGA uma ferida aberta. A sucessão de Trump não é apenas uma questão política: é um problema teológico. Para um movimento que transformou seu líder em figura messiânica, o fim de seu mandato equivale ao fim do mundo. E é dessa angústia que nasce o próximo ciclo da crise americana.
O dilema se estrutura em três caminhos possíveis. O primeiro é o da sucessão pactuada, em que Trump, incapaz de manter-se no cargo, abençoa um herdeiro — provavelmente J.D. Vance — e tenta governar por delegação. Seria uma espécie de monarquia informal: Trump como mito tutelar, Vance como executor doutrinário. Nesse cenário, o império experimentaria uma transição “ordenada” para o Estado pós-liberal, com aparência institucional e substância teocrática. A democracia sobreviveria como ritual vazio; o poder real passaria à nova elite cristã e militar. Seria a normalização da exceção — o autoritarismo polido, legitimado pelo cansaço da sociedade e pela retórica da salvação.
O segundo caminho é o do terceiro mandato de fato, ou golpe branco. Trump poderia insistir na tese de que sua reeleição é direito divino e que qualquer tentativa de barrá-lo representa conspiração globalista. O precedente já existe: o assalto ao Capitólio de 6 de janeiro de 2021 não foi um ponto fora da curva, mas um ensaio geral. Hoje, a base MAGA é mais armada, mais radical e mais convencida de que o sistema eleitoral é ilegítimo. Um “terceiro mandato informal” poderia vir na forma de estado de emergência, manipulação constitucional ou intervenção judicial. Seria o colapso final do Estado de direito americano — uma autocracia plebiscitária travestida de patriotismo.
O terceiro cenário é o da implosão interna. Caso a guerra entre os três blocos do MAGA — sionistas, cristãos e neonazistas — atinja ponto de ruptura, o movimento pode fragmentar-se. A direita se dividiria entre os que buscam restaurar o império, os que desejam fundar um novo Estado moral e os que querem simplesmente destruir tudo. Essa cisão abriria caminho para uma vitória democrática, mas com custo alto: violência política, terrorismo doméstico, caos institucional e a reedição da guerra civil americana em escala informacional. Nesse cenário, o império não cai de fora; desaba por dentro, corroído pela incompatibilidade entre suas próprias teologias.
Trump, sitiado entre lealdades e traições, tenta atrasar o relógio da história. Já não governa, apenas sobrevive. Cada discurso é exorcismo, cada processo judicial, um ato litúrgico de autopreservação. Ele sonha em eternizar-se como figura fundadora de uma nova era, mas o MAGA, que nasceu de seu delírio, já se tornou maior do que ele. J.D. Vance, Tucker Carlson e Pete Hegseth são hoje os intérpretes e executores de uma obra que o próprio criador não controla mais. A sucessão não é apenas inevitável — é já uma guerra em andamento.
As eleições de 2028 serão, portanto, o juízo final da república americana. O que está em jogo não é quem ocupará a Casa Branca, mas que forma de poder substituirá a democracia liberal. Um regime corporativo-teocrático com verniz constitucional? Um cesarismo de guerra permanente? Ou um colapso sistêmico que abrirá espaço para o autoritarismo aberto? Qualquer que seja o resultado, o império sairá transformado. O que antes era uma nação em crise se tornará, em definitivo, uma civilização em disputa consigo mesma.
O horizonte de 2028 não é apenas a sucessão de um presidente; é a sucessão de uma era. O império americano, incapaz de reconciliar fé e razão, mercado e moral, força e legitimidade, parece condenado a escolher entre o abismo e a cruz. E, ao fazê-lo, arrastará o mundo para o seu próprio crepúsculo.
O efeito dominó global: o império e o mundo observam

O mundo assiste ao colapso americano com o mesmo espanto com que Roma observou seus bárbaros atravessarem o Tibre. A guerra civil dentro do MAGA, embora travada nos corredores de Washington e nos púlpitos do Meio-Oeste, produz abalos em todos os continentes. Quando o centro se parte, as bordas se realinham. O que está em disputa dentro dos Estados Unidos é, na verdade, o modelo de hegemonia global que moldou o século XX — e que agora implode sob o peso de suas próprias contradições.
Em Israel, a crise do império assume contornos existenciais. O país, sustentado há décadas pela simbiose estratégica com Washington, vê no racha americano um espelho perigoso. O apoio incondicional do bloco sionista-institucional do MAGA garante, por enquanto, a continuidade da aliança militar e do financiamento bélico. Mas esse apoio vem impregnado de messianismo e imprevisibilidade: Israel deixou de ser um aliado racional e passou a ser um artefato teológico dentro da política americana. A extrema-direita israelense, liderada por Netanyahu, aposta tudo nessa aliança, mesmo sabendo que a instabilidade do MAGA ameaça arrastar o Oriente Médio para um ciclo interminável de guerras santas. Israel tornou-se, paradoxalmente, o centro e o refém do apocalipse americano.
Na Europa, o fenômeno é de contágio. Partidos da nova direita — de Le Pen a Meloni, de Orbán a Vox — observam o MAGA como modelo de insurreição moral e informacional. Copiam suas táticas, seus memes, sua retórica de guerra cultural. Mas o que importam não são as ideias, e sim as técnicas: desinformação, manipulação de emoções, ataque sistemático à imprensa, instrumentalização religiosa. O trumpismo exportou o método da guerra híbrida, e a Europa, com sua crise identitária, é o terreno mais fértil para sua replicação. O velho continente, que já não acredita em si mesmo, tornou-se laboratório de uma direita pós-democrática — mais mística que política, mais ressentida que racional.
Na América Latina, os ecos do MAGA são ainda mais diretos. O bolsonarismo no Brasil, o mileísmo na Argentina e os nacionalismos conservadores no Chile, no Paraguai e na Colômbia são expressões locais da mesma matriz. O trumpismo forneceu o software ideológico e o aparato tecnológico para a guerra cultural continental: redes sociais, igrejas neopentecostais, think tanks financiados por fundações americanas e campanhas de desinformação massiva. A região é o campo experimental da guerra híbrida global — o espaço onde a extrema-direita testa narrativas, manipula algoritmos e busca minar democracias frágeis. O Brasil, em particular, tornou-se ponto de interesse estratégico do MAGA por sua importância simbólica, econômica e informacional. O ataque às instituições brasileiras, a retórica de lawfare e o uso de plataformas digitais para corrosão da confiança pública são capítulos de uma guerra transnacional.
Enquanto isso, o Sul Global se reorganiza. Rússia, China, Índia e países do BRICS olham o colapso americano como oportunidade histórica. O enfraquecimento moral e político dos Estados Unidos abre espaço para uma nova arquitetura multipolar. Mas o vácuo deixado pelo império não é neutro: ele é preenchido por redes, desinformação e capital desregulado. A crise da hegemonia americana cria uma era de anarquia informacional global, em que a força não se mede mais por território ou armas, mas pela capacidade de controlar percepções, narrativas e infraestruturas digitais. O império da razão dá lugar ao império do algoritmo.
O colapso interno do MAGA é, portanto, o colapso do modelo de dominação ocidental. A democracia liberal, que serviu de vitrine moral do império, rui de dentro, corroída por sua própria maquinaria de guerra híbrida. O que antes era usado contra inimigos externos — lawfare, fake news, sanções, guerras de informação — agora se volta contra os próprios cidadãos. O império perdeu o controle de suas armas simbólicas, e o planeta inteiro sente o ricochete. Nenhuma potência sobrevive impunemente à fragmentação de seu mito fundador.
O mundo observa, mas não apenas observa: ajusta-se. As alianças mudam, as economias se reconfiguram, os centros de poder deslocam-se. A guerra civil dentro do MAGA inaugura uma nova era de incerteza global, em que os impérios não caem por invasão, mas por implosão cognitiva. E quando a superpotência que organizava o planeta se torna o epicentro do caos, o resto do mundo precisa reinventar seu próprio mapa de sentido. O futuro, agora, é multipolar, mas também é caótico — e nenhum Estado está imune à tempestade que começou em Washington.
O império contra si mesmo

O império americano chegou ao ponto fatal de toda potência: o instante em que já não há inimigo externo capaz de derrotá-lo, apenas o reflexo no espelho. A guerra civil dentro do MAGA não é um acidente histórico — é o destino natural de um império que transformou o poder em fé e a fé em mercadoria. O sistema que dominou o planeta pela força das armas, da informação e do capital agora consome a si mesmo. A máquina que organizava o mundo opera em circuito fechado: o inimigo é interno, o colapso é espiritual e a guerra tornou-se sua forma de respiração.
O que se encerra diante dos nossos olhos não é apenas uma era política, mas uma civilização inteira. O império que por um século se apresentou como guardião da liberdade tornou-se prisioneiro das suas próprias ficções: a do mérito, a da exceção moral, a da missão divina. A América que nasceu proclamando a razão como destino termina adorando a força como revelação. O MAGA é o resultado final dessa transmutação: a transformação da democracia em seita, da cidadania em fé e da política em cruzada. O império descobriu Deus tarde demais — e o invocou não para se redimir, mas para justificar sua queda.
Trump e Vance são as duas faces de uma mesma ruína. Um encarna o caos, o outro a doutrina; um destrói por ego, o outro reconstrói por fanatismo. Juntos, simbolizam a passagem do império da exceção ao império da crença. Trump fez do Estado um espetáculo; Vance quer fazer da fé um regime. Entre ambos, o império procura sentido — e encontra apenas o vazio que criou. A potência que governou o planeta pela ilusão da liberdade agora se vê escrava de seus próprios mitos.
A guerra híbrida, antes arma de dominação global, tornou-se mecanismo de autodestruição. O império que aprendeu a manipular o mundo pela desinformação tornou-se prisioneiro de sua própria mentira. A máquina de propaganda, que um dia controlou narrativas em todo o planeta, agora fragmenta a consciência nacional. A verdade, transformada em instrumento de poder, perdeu seu valor de uso. O resultado é um império desorientado — armado, rico e tecnologicamente supremo, mas espiritualmente falido.
O colapso do MAGA é mais do que a crise de um partido ou de um líder. É o esgotamento de um modelo de civilização que confundiu dominação com destino. Nenhum império sobrevive quando sua única crença é o poder. Nenhuma república resiste quando sua única fé é a violência. O século XXI não assiste apenas à queda dos Estados Unidos, mas à transfiguração de sua hegemonia em espectro: um poder que ainda domina, mas já não conduz; que ainda aterroriza, mas já não inspira.
O mundo, por sua vez, não assiste de longe — adapta-se. As alianças se deslocam, as economias se reconfiguram e os novos centros de poder emergem entre as ruínas do colosso. O império não cairá de uma vez: dissolver-se-á como uma religião em crise, até que o mito se apague e reste apenas a máquina. O futuro que começa com o racha do MAGA é o da era pós-imperial — um tempo em que a guerra será linguagem universal e a verdade, recurso escasso.
Nenhum império morre em silêncio. E este, que se acreditava eterno, termina devorado por suas próprias legiões.




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