O Brasil entre potência e colônia: a fragilidade brasileira que assusta o Sul Global
- Rey Aragon

- há 21 minutos
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Por que razão as maiores potências do Sul Global confiam em Lula, mas temem o Brasil: a contradição histórica que impede o país de assumir seu lugar no mundo.
O mundo aposta no Brasil sempre que Lula está no comando, mas recua quando olha para dentro e vê um país capaz de transformar, em questão de dias, um projeto estratégico de décadas em ruína. Entre o sonho de potência e a realidade de colônia, persiste um medo global: a instabilidade brasileira pode sabotar até seu próprio futuro.
O Brasil no espelho do mundo

O mundo olha para o Brasil com uma mistura de expectativa e inquietação. Há décadas, governos, diplomatas, analistas e estrategistas enxergam no país todas as condições objetivas de potência — uma combinação rara de território, recursos, população, ciência, energia, indústria e legitimidade diplomática que nenhum outro país grande do Sul Global reúne. O Brasil é, para muitos observadores internacionais, o país que deveria ter assumido papel central na reorganização do sistema internacional após o fim da Guerra Fria. E quando Lula está no comando, essa percepção ressurge com força: ele é visto como uma das poucas lideranças capazes de falar pelo Sul Global sem hesitação, negociar com grandes potências sem submissão e articular agendas ambiciosas de desenvolvimento e soberania. Nas mesas discretas da diplomacia global, há consenso: o Brasil de Lula é confiável, previsível e estrategicamente maduro.
É essa contradição que prende a atenção internacional: o Brasil parece sempre à beira de se tornar o que deveria ser, mas permanece vulnerável ao que insiste em ser. Por fora, irradia potencial; por dentro, acumula instabilidade. A promessa de potência convive com a realidade de um Estado que ainda não consolidou um bloco de poder comprometido com o país. E é nesse espelho — partido, brilhante e perigoso — que o mundo tenta entender o destino brasileiro. Pensar o Brasil hoje exige compreender essa fissura interna que limita o gigante que tantos, do lado de fora, gostariam de ver finalmente de pé.

O teorema brasileiro: potência material, colônia política

O Brasil é uma anomalia estratégica no sistema internacional. Entre todos os países grandes do Sul Global, é o único que reúne, simultaneamente, os atributos clássicos de uma potência — território continental, biodiversidade monumental, reservas energéticas abundantes, água doce em escala decisiva, base industrial diversificada, agricultura de altíssima produtividade, ciência sofisticada, estrutura diplomática respeitada e uma posição geográfica capaz de projetar influência sobre o Atlântico Sul, a Amazônia e o coração da América do Sul. Na linguagem da geopolítica dura, o Brasil é um outlier: possui uma combinação de fatores que, em qualquer outro país, teria produzido uma potência consolidada há décadas. O mundo sabe disso. E é justamente por saber que estranha o fato de o Brasil nunca ter rompido a fronteira que separa os grandes países das grandes potências.
A explicação tradicional — atraso econômico, falta de planejamento, corrupção, desigualdade — é insuficiente. Esses são sintomas, não causas. A raiz é mais profunda e mais incômoda: o Brasil é uma potência material cujo sistema político foi moldado para funcionar como colônia. Sua elite econômica não se formou para consolidar o país, mas para servir a centros de poder externos; suas Forças Armadas foram doutrinadas para defender interesses alheios; sua mídia hegemônica opera como correia de transmissão de agendas estrangeiras; e parte decisiva do aparelho judicial internalizou mecanismos de controle político importados. Nenhum desses vetores age como força de afirmação soberana. Em vez disso, agem como dispositivos de contenção, vigilância e sabotagem interna.
Essa disfunção histórica produziu o que chamo aqui de teorema brasileiro: o Brasil é o único país grande do mundo cuja elite opera sistematicamente contra as condições objetivas que tornariam o país uma potência. É uma contradição estrutural rara: um país com meios de potência e elites de colônia. O resultado é um Estado permanentemente vulnerável a retrocessos, golpes, manipulações e entreguismos que interrompem, em ciclos curtos, qualquer projeto de desenvolvimento duradouro. Não se trata de acaso ou de incompetência — trata-se de uma engrenagem histórica que transforma o Brasil em potência potencial e colônia real.
É por isso que, do ponto de vista internacional, o Brasil provoca perplexidade: ele tem tudo para liderar o Sul Global, mas não dispõe de uma elite nacional disposta a permitir que isso aconteça. O país avança quando forças populares e projetos desenvolvimentistas chegam ao poder, mas retrocede quando o bloco anti-nacional retoma o comando e desfaz, com pressa e violência, o que foi construído. O Brasil, na prática, vive sob um regime político bifurcado: um país interno que deseja soberania e um país interno que teme soberania. Essa dupla estrutura cria um abismo entre o que o Brasil pode ser e o que suas estruturas permitem que ele seja.
É esse teorema — potência sem elite nacional, colônia com atributos de potência — que explica todos os impasses estratégicos brasileiros desde 1964, e especialmente desde 2014. Nada faz sentido no Brasil sem essa chave. Com ela, tudo se ilumina.
O medo global da instabilidade brasileira

Nenhum país de grande porte provoca tanta hesitação internacional quanto o Brasil. O mundo confia em Lula, mas teme o Estado brasileiro. Confia na diplomacia, mas desconfia da elite política. Confia nas capacidades materiais, mas questiona a capacidade institucional. Essa assimetria produz um sentimento raro na geopolítica contemporânea: o Brasil inspira esperança e apreensão na mesma medida.
Para atores estratégicos — governos, fundos soberanos, empresas de tecnologia, complexos militares, centros de P&D — o Brasil é uma aposta tentadora e perigosa. Tentadora porque reúne condições únicas; perigosa porque pode destruir seus próprios avanços com a mesma velocidade com que os constrói. A história recente transformou essa percepção em consenso global. Em pouco mais de dez anos, o país passou por um golpe parlamentar, uma operação de lawfare, uma destruição calculada de suas principais empresas estratégicas, uma eleição de extrema-direita alinhada aos interesses dos EUA, uma tentativa de golpe aberta e um processo contínuo de manipulação informacional. Nenhum outro país grande do Sul Global viveu ciclos tão abruptos de ruptura.
Para Moscou, Pequim, Teerã, Nova Délhi, Jacarta, Ancara, Argel e Riade, essa instabilidade não é uma abstração — é um alerta. Todos sabem que projetos estratégicos de longo prazo exigem previsibilidade, continuidade e coesão estatal. No Brasil, esses elementos nunca estão garantidos. Um acordo militar assinado hoje pode ser desmontado amanhã. Uma política industrial pode ser revertida por uma canetada. Um projeto tecnológico pode ser privatizado ou entregue ao inimigo geopolítico. Um tratado pode ser sabotado pelo próprio aparato institucional. A cada alternância eleitoral, o país recomeça do zero — e muitas vezes recomeça pior do que estava.
Esse padrão transforma o Brasil em um risco sistêmico para qualquer potência que deseje cooperar com ele em áreas sensíveis. Para a China, há o temor real de transferir tecnologia de ponta — em IA, telecomunicações, semicondutores, terras raras ou defesa — e vê-la cair, um ciclo depois, nas mãos de um governo submisso aos EUA. Para a Rússia, o risco é estratégico: qualquer integração militar profunda pode ser revertida e transformada em trunfo do bloco ocidental. Para a Índia, que disputa espaço com a China, o Brasil é parceiro essencial e imprevisível. Para países árabes e africanos, acordos em energia, infraestrutura e finanças ficam sempre à mercê dos humores da elite brasileira.
E não são apenas potências rivais dos EUA que temem essa instabilidade. Países europeus, que veem o Brasil como pilar energético, ambiental e industrial da transição verde, sabem que qualquer avanço pode ser interrompido por uma guinada autoritária ou neoliberal. Até empresas multinacionais que buscam previsibilidade institucional evitam compromissos de alto impacto em setores estratégicos. O Brasil virou, na percepção global, um país que pode ser extraordinário ou desastroso — e ninguém sabe qual versão vai prevalecer a cada ciclo.
Essa hesitação não é preconceito. É cálculo racional. O Brasil ainda não provou ao mundo que é capaz de sustentar sua própria grandeza. Até fazê-lo, seguirá sendo uma potência contida pela sombra da sua própria instabilidade.
Defesa, dissuasão e o teto de vidro militar do Brasil

Nenhuma área revela de forma tão clara as contradições estruturais do Brasil quanto o campo da defesa. O país domina tecnologias que apenas um punhado de nações possui — submarinos de ataque, propulsão nuclear, domínio do ciclo do combustível, indústria aeronáutica de classe mundial, base de mísseis, satélites, radares, aviação de combate, sistemas de comando e controle — mas não consegue transformar esse arsenal técnico em capacidade real de dissuasão. A razão não está na tecnologia, mas no Estado: o Brasil opera militarmente como uma potência material e como uma colônia política ao mesmo tempo. É essa fratura que impede o país de cruzar o limiar da soberania estratégica.
Aos olhos de potências como Rússia, China, Índia, Irã e Indonésia, o Brasil é um parceiro militar desejável e perigoso. Desejável porque tem indústria, ciência, território e posição geopolítica privilegiada no Atlântico Sul. Perigoso porque qualquer cooperação pode ser revertida ou sabotada pelo próprio país. Nada assusta mais um parceiro estratégico do que a ideia de transferir tecnologias sensíveis — radares, mísseis, sistemas de vigilância, propulsão naval, tecnologia antissubmarino, algoritmos de guerra eletrônica — e, anos depois, ver tudo cair nas mãos de um governo fascista alinhado à OTAN. E o Brasil demonstrou, repetidamente, que isso não é uma hipótese abstrata. É uma possibilidade concreta.
O colapso institucional de 2016, a ascensão da extrema-direita em 2018, a subordinação aberta às estratégias militares dos EUA, as tentativas de golpe de 2022–2023 e a fragmentação permanente das Forças Armadas enviaram um recado inequívoco ao mundo: o Brasil não é um Estado confiável para parcerias militares de longo prazo. O risco de reversão política é tão alto que qualquer transferência significativa de tecnologia se torna uma roleta geopolítica. Em nenhum país grande do hemisfério sul — nem Índia, nem Indonésia, nem Turquia — existe um salto tão abrupto entre governos soberanistas e governos entreguistas quanto no Brasil. E nenhuma potência responsável arrisca entregar segredos militares a um país sujeito a essa volatilidade.
Esse medo global limita até mesmo o programa nuclear brasileiro, que tecnicamente já ultrapassou as condições necessárias para constituir dissuasão de alto nível. O país domina, desde os anos 1980, tecnologias de enriquecimento únicas; construiu o único submarino nuclear do hemisfério sul; tem estoque científico para avançar em reatores, sensores e ciclos de combustível. Mas um programa nuclear dissuasório exige algo que o Brasil não tem: um Estado que permaneça coerente por décadas. Exige elite nacional, coesão militar, continuidade institucional e consenso estratégico — exatamente o que foi destruído nas últimas décadas por golpes, lawfare, submissão geopolítica e forças armadas incapazes de operar como instituição de Estado.
É por isso que, apesar de suas capacidades extraordinárias, o Brasil segue com um teto de vidro militar. Ele nunca será potência enquanto a instabilidade interna transformar cada avanço em risco potencial para quem coopera com o país. No campo da defesa, como em nenhum outro, o Brasil revela sua tragédia estrutural: não lhe falta tecnologia. Falta-lhe soberania política.

Tecnologia, indústria e cadeias de valor estratégicas

Se há um campo em que o Brasil expõe, com brutal clareza, a distância entre seu potencial e sua realidade, é o das tecnologias estratégicas. O país possui reservas de terras raras equivalentes às maiores do mundo, uma das agriculturas mais tecnificadas do planeta, capacidades industriais avançadas, produção de energia limpa em escala continental, centros de pesquisa de excelência, inteligência em semicondutores, biotecnologia respeitável e uma das maiores infraestruturas elétricas do hemisfério sul. A lógica sugere que o Brasil deveria ser um pilar tecnológico do Sul Global. No entanto, o país é tratado — mesmo pelos parceiros que mais o admiram — como uma aposta instável, incapaz de sustentar projetos de longo prazo. Aqui, mais do que em qualquer outro setor, a instabilidade política se converte em vulnerabilidade industrial.
O caso das terras raras é exemplar. O Brasil detém uma das maiores reservas do planeta, mas produz volumes que mal aparecem nas estatísticas globais. A razão é sempre a mesma: projetos estratégicos exigem confiança, continuidade e proteção institucional. A China poderia transformar o Brasil em um polo de refino e manufatura de ímãs permanentes — setor que define o futuro de turbinas eólicas, carros elétricos, mísseis, satélites e equipamentos de ressonância magnética. Mas qualquer infraestrutura instalada no Brasil corre o risco de, em poucos anos, ser privatizada, vendida a corporações americanas, desmantelada por governos entreguistas ou simplesmente abandonada por uma mudança abrupta de prioridades. Para um país que opera cadeias críticas de valor, essa volatilidade é uma ameaça existencial. É por isso que, enquanto o Brasil exporta minério bruto, a China lidera o mundo no refino e na manufatura de alta complexidade — não por falta de capacidade brasileira, mas por falta de estabilidade brasileira.
O mesmo ocorre com semicondutores. A Índia e a Malásia estão prontas para formar corredores tecnológicos com o Brasil, combinando design, encapsulamento, testes, inteligência artificial e produção de chips para setores estratégicos. Mas o Brasil ainda não provou que pode proteger sua infraestrutura tecnológica do apetite destrutivo das políticas neoliberais e do alinhamento automático aos EUA. Nenhum país sério investe bilhões em fábricas, equipamentos, centros de P&D e cadeias de suprimento se existe o risco concreto de ver tudo privatizado, entregue ao Vale do Silício ou desmontado pelo lawfare. A indústria de chips exige horizontes de trinta anos; a política brasileira raramente permanece coerente por três.
Na biotecnologia e na saúde pública, o padrão se repete. A pandemia mostrou que o Brasil possui instituições capazes de produzir vacinas, coordenar respostas sanitárias e liderar cooperações globais. Mas essas mesmas instituições foram sabotadas e quase destruídas durante o ciclo fascista que negou ciência, desintegrou políticas públicas e matou centenas de milhares de pessoas. Países que desejam parcerias estratégicas na fronteira biotecnológica — Índia, Cuba, Rússia, China, África do Sul — sabem que qualquer cooperação depende da resistência das instituições brasileiras ao colapso político interno. O Brasil não ofereceu essa garantia. E a memória recente pesa mais do que qualquer discurso diplomático.
No setor de energia e infraestrutura, a vulnerabilidade é ainda mais profunda. O Brasil poderia ser líder mundial em transição energética, combinando pré-sal, energia solar, eólica, biomassa, etanol de segunda geração e hidrogênio verde. Mas a alternância entre governos soberanistas e governos entreguistas destruiu políticas industriais, paralisou investimentos, vendeu ativos estratégicos e interrompeu programas que exigiam continuidade. Para parceiros árabes, europeus, africanos e asiáticos, o Brasil é um colosso energético com comportamento político errático — capaz de construir refinarias em um governo e desativá-las no seguinte; capaz de criar uma Petrobras forte numa década e reduzir a estatal a uma empresa de balcão na outra.
Essa instabilidade condiciona tudo: do agronegócio de ponta à indústria aeronáutica, da IA às telecomunicações, da infraestrutura logística às energias renováveis. Em todos os setores críticos, o Brasil é potência potencial e risco imediato. O mundo sabe que o país poderia liderar cadeias tecnológicas inteiras; sabe também que qualquer avanço pode ser destruído de dentro. É por isso que, mesmo com tanta riqueza, tanto conhecimento e tanto território, o Brasil permanece preso a uma condição paradoxal: possui tudo para ser indispensável, mas ainda é tratado como improvável.
Conselho de Segurança da ONU e o veto invisível ao Brasil

O debate internacional costuma apresentar a ausência do Brasil no Conselho de Segurança da ONU como resultado do veto das potências tradicionais ou de disputas geopolíticas entre blocos rivais. Essa explicação é verdadeira, mas incompleta. A razão mais profunda — e mais desconfortável — está fora dos discursos oficiais: o mundo não confia que o Estado brasileiro seja capaz de sustentar, por décadas, a responsabilidade política de ocupar uma cadeira permanente no órgão mais sensível da governança global. A hesitação não se dirige ao Brasil enquanto país, nem à diplomacia brasileira, que é reconhecida como uma das melhores do mundo. O problema é a volatilidade interna.
Para os atores que realmente decidem o futuro do Conselho — Washington, Moscou, Pequim, Paris, Londres, Nova Délhi, e os grandes blocos africanos — uma cadeira permanente exige previsibilidade, estabilidade e coerência de Estado. No Brasil, nenhuma dessas condições está consolidada. O país alterna, em ciclos curtos, entre governos comprometidos com o multilateralismo, a paz, a integração Sul-Sul e a não intervenção, e governos que se alinham automaticamente aos EUA, atacam organismos multilaterais, sabotam acordos ambientais, rompem tradições diplomáticas centenárias e flertam com aventuras autoritárias. Essa oscilação transforma o Brasil em um candidato legítimo — mas arriscado.
Imagine o impacto geopolítico de um país que, em uma década, defende a reforma da ONU, lidera a agenda global de combate à fome e articula o Sul Global em torno da multipolaridade, e, na década seguinte, se alinha a guerras unilaterais, hostiliza organismos internacionais, isola-se diplomaticamente e tenta um golpe interno. O Conselho de Segurança não tolera esse tipo de volatilidade. Uma cadeira permanente não pode ser ocupada por um Estado que oscila entre soberania e colapso democrático. Para o mundo, a pergunta nunca foi se o Brasil merece a vaga — isso é consenso entre diplomatas sérios — mas se o Brasil é institucionalmente capaz de mantê-la sem colocar em risco a estabilidade do próprio sistema.
Mesmo aliados próximos reconhecem o dilema. Rússia, China, Índia, África do Sul e dezenas de países que apoiam a entrada brasileira sabem que o país, sob governos progressistas e soberanistas, fortalece o multilateralismo e equilibra o poder global. Mas também sabem que o Brasil abriga forças políticas que desprezam a ONU, rejeitam tratados internacionais, atacam direitos humanos, seguem agendas de guerra cultural importadas e apoiam abertamente políticas de coerção de Washington e Tel Aviv. A dúvida que atravessa o sistema internacional é silenciosa e decisiva: quem ocuparia a cadeira do Brasil em 2030, 2035, 2040? O Brasil de Lula ou o Brasil de um novo neofascista?
Esse é o veto invisível. Não está escrito nos regimentos, não aparece nas declarações formais, não surge em discursos públicos. Mas pesa tanto quanto os vetos explícitos das grandes potências. Para que o Brasil entre no Conselho como membro permanente, não basta convencer o mundo da sua importância — é preciso convencer o mundo de que o país não sabotará a si mesmo. Até resolver essa contradição interna, o Brasil seguirá sendo o candidato inevitável que nunca atravessa a porta.

A raiz interna: a elite anti-nacional e o Estado capturado

Nenhum país grande carrega uma contradição tão corrosiva quanto o Brasil: uma elite que não apenas se descola do projeto nacional, mas atua ativamente contra ele. Desde o século XIX, quando o país deveria ter consolidado um Estado soberano após a independência, formou-se aqui uma classe dirigente cuja função histórica nunca foi desenvolver o Brasil, e sim garantir a reprodução dos interesses externos aos quais sempre esteve acoplada. A burguesia brasileira não nasceu para construir uma potência — nasceu para administrar uma colônia. E nunca rompeu com essa origem.
É essa elite — econômica, militar, midiática, judicial e política — que impede o Brasil de atravessar o limiar da soberania. Não por ignorância, mas por conveniência. No núcleo desse bloco, a lógica não é nacionalista, é associada: depende de importações tecnológicas, de capitais externos, de submissão geopolítica, de alinhamento automático a Washington, de privilégios internos mantidos pela desigualdade e de um aparato ideológico que fragmenta a sociedade e impede a construção de um povo soberano. Essa elite opera como um organismo de contenção: sempre que o Brasil tenta avançar, ela o puxa de volta para o lugar histórico que considera confortável — o da subordinação.
As Forças Armadas, que deveriam ser o instrumento máximo da soberania, foram capturadas por essa lógica durante a Guerra Fria e nunca se libertaram. Em vez de projeto de nação, adotaram doutrinas importadas que transformaram os militares em fiscalizadores de governos civis e aliados voluntários do complexo militar dos EUA. A hierarquia militar brasileira não foi treinada para defender o Brasil, mas para vigiar o Brasil. Por isso, quando governos comprometidos com o desenvolvimento assumem, são tratados como ameaça interna. E quando governos entreguistas chegam ao poder, são celebrados como parceiros naturais. Um país que precisa se proteger de suas próprias Forças Armadas não é um país soberano.
O sistema de justiça seguiu o mesmo caminho. A partir dos anos 2000, parte do Judiciário e do Ministério Público absorveu, sem resistência, a lógica do lawfare — uma tecnologia de guerra híbrida utilizada para paralisar governos populares, destruir empresas estratégicas e reverter políticas de desenvolvimento. Essa captura institucional não foi improvisada: foi resultado de décadas de intercâmbios com instituições norte-americanas, de formação ideológica em escolas alinhadas ao Departamento de Justiça dos EUA e da transformação de setores do Judiciário em atores políticos com agenda própria. Quando a elite decide que o país avançou demais, o lawfare age como mecanismo de freio.
A mídia hegemônica completa o circuito de sabotagem. Em vez de exercer papel republicano, opera como aparelho ideológico da elite anti-nacional, amplificando crises fabricadas, legitimando golpes, manipulando a opinião pública, exaltando projetos entreguistas e demonizando políticas soberanas. Essa guerra cultural permanente impede que a sociedade perceba seus próprios interesses estruturais e dificulta a formação de consciência política de base. Sem povo organizado, sem consciência de classe e sem educação política duradoura, a elite mantém o país fragmentado e vulnerável — e a cada ciclo eleitoral, recicla o medo, o ódio e a falsa narrativa anticorrupção para impedir que o projeto nacional se consolide.
O resultado dessa engrenagem é devastador: o Brasil avança quando governos soberanistas assumem, mas retrocede quando a elite volta ao comando — e como esse bloco controla parte do Estado profundo, ele nunca sai completamente do poder. Essa estrutura cria um país permanentemente suspenso entre dois destinos: potência quando tenta ser si mesmo; colônia quando obedece ao que esperam dele. E enquanto essa elite continuar definindo o ritmo da história nacional, o Brasil seguirá incapaz de oferecer ao mundo a previsibilidade e a coerência que exigem projetos estratégicos de longo prazo.
O buraco que o Brasil deixa no tabuleiro multipolar

No sistema internacional em transição, cada país que não cumpre seu papel altera a geometria do poder global. A instabilidade brasileira, porém, não produz apenas um atraso nacional: ela gera um vazio estratégico no coração do sul geopolítico. O Brasil, pelas dimensões que tem e pelo lugar que ocupa, não é apenas mais um ator entre muitos. É o único país das Américas — e um dos poucos do planeta — capaz de equilibrar a hegemonia dos Estados Unidos, fortalecer o eixo multipolar e ancorar um bloco de países que buscam autonomia diante das grandes potências. Quando o Brasil avança, a multipolaridade se fortalece. Quando o Brasil colapsa, o mundo perde um dos pilares potenciais da nova ordem.
Para a China, o Brasil é a chave ocidental da Iniciativa do Sul Global — um parceiro capaz de transformar dependências assimétricas em cooperação equilibrada, de articular políticas industriais conjuntas, de democratizar cadeias de valor e de mediar tensões entre regiões críticas. Para a Rússia, o Brasil é o contrapeso mais importante no hemisfério sul para a expansão militar e ideológica dos EUA. Para a África, o país é ponte, aliado e referência diplomática. Para a Índia, o Brasil é irmão estratégico e espelho de ascensão. Para o mundo árabe, é parceiro energético e político. E para a América Latina, é âncora, direção e horizonte. Quando o Brasil se perde em crises internas, todos esses tabuleiros perdem estabilidade.
A ausência brasileira no seu próprio destino cria um espaço que outros preenchem. Sem o Brasil como articulador, a América Latina fragmenta-se; acordos regionais são desmontados; iniciativas de integração são abandonadas; e o continente volta a ser zona de influência preferencial dos EUA. Sem o Brasil como potência ambiental, o debate climático fica preso entre interesses europeus e disputas energéticas do norte global. Sem o Brasil como líder industrial, países emergentes perdem referência para políticas de desenvolvimento soberanas. Sem o Brasil como ator diplomático, conflitos globais deixam de ter uma voz moderadora capaz de dialogar com todos os lados. O vazio brasileiro custa caro — para o próprio país e para o planeta.
No jogo da multipolaridade, cada potência emergente tem uma função estratégica. A Índia equilibra a Ásia. A Indonésia equilibra o Pacífico. A Nigéria equilibra a África Ocidental. A Turquia equilibra o Oriente Médio. O Irã equilibra a Ásia Central. O Brasil deveria equilibrar o Atlântico Sul e a América do Sul inteira. Quando falha, a região cai no vácuo de poder, abrindo espaço para pressões militares, interferências políticas, disputas informacionais e dependências tecnológicas que enfraquecem todo o sul geopolítico. O Brasil não é apenas mais um país instável; é uma instabilidade estrutural em um ponto vital do sistema internacional.
Essa lacuna não é apenas diplomática — é civilizacional. O mundo precisa de um Brasil estável porque precisa de uma potência do sul com voz própria, capaz de articular interesses populares, defender a soberania dos países emergentes, mediar conflitos e participar da construção de uma ordem que não seja regida pelo unilateralismo. Quando o Brasil recua, o multipolarismo perde amplitude, a integração sul-sul perde musculatura e os povos do sul global perdem um aliado com capacidade real de alterar correlações de força. Um Brasil instável não prejudica apenas o Brasil; prejudica o próprio futuro da ordem internacional.
Condições de possibilidade de um Brasil confiável para si e para o mundo

Para que o Brasil deixe de ser uma promessa instável e se torne um ator estratégico previsível, é preciso reconstruir as bases do Estado nacional. Não se trata de reformas pontuais nem de mudanças cosméticas, mas de um rearranjo estrutural que reorganize o poder político, militar, informacional, econômico e cultural. Um país que alterna, em ciclos curtos, entre soberania e submissão não inspira confiança; um país que se ancora em pilares sólidos, sim. Para que o Brasil se torne confiável para si e para o mundo, é necessário enfrentar quatro frentes decisivas.
A primeira é a reconstrução institucional das Forças Armadas. Nenhuma potência do mundo opera com militares treinados para vigiar governos civis ou para servir como correia de transmissão de interesses externos. O Brasil só consolidará soberania quando suas Forças Armadas forem reestruturadas em torno de um projeto nacional, com doutrina própria, visão de defesa autônoma, alto grau de profissionalização e ruptura definitiva com a lógica tutelar que atravessa sua história. Sem isso, qualquer avanço estratégico permanecerá dependente da disposição — ou da tolerância — de setores militares.
A segunda é a blindagem institucional contra o lawfare e o golpismo jurídico. A destruição de empresas estratégicas, a paralisação de políticas industriais e a criminalização seletiva de lideranças políticas transformaram o sistema de justiça brasileiro em vetor de instabilidade e instrumento de manipulação. Para que o Brasil seja previsível, é necessário estabelecer mecanismos de controle democrático, transparência, limites claros à atuação política do Judiciário e proteção rígida contra interferências externas. Sem um sistema judicial comprometido com o Estado e não com projetos de poder, o país continuará sendo refém de crises produzidas dentro de suas próprias instituições.
A terceira é a soberania informacional. O Brasil só será um ator estável quando tiver controle sobre seu fluxo de dados, sua infraestrutura digital, sua comunicação pública, seu ecossistema de plataformas e sua capacidade de proteger a sociedade contra manipulação de massa, desinformação e guerra cultural importada. A captura das plataformas por interesses estrangeiros e a vulnerabilidade do debate público brasileiro transformaram a opinião política em terreno instável, facilmente mobilizado contra qualquer projeto de desenvolvimento. Sem domínio informacional, não há estabilidade. E sem estabilidade, não há soberania.
A quarta é a construção de uma política industrial e tecnológica de longo prazo, com horizonte de décadas e blindagem contra rupturas. Sem continuidade, nenhum país se torna potência. É necessário criar estruturas estatais, fundos soberanos, mecanismos de coordenação e marcos legais que impeçam que programas estratégicos sejam desmontados a cada legislatura. Um país que muda de direção a cada quatro anos não é confiável — não para seus cidadãos, não para seus parceiros, não para o mundo.
Por fim, o Brasil só encontrará estabilidade quando houver formação política de base e consciência popular organizada. Sem povo soberano, nenhuma instituição se sustenta. A elite anti-nacional prospera na ignorância política, no medo, na fragmentação e no ódio. A estabilidade não nasce das cúpulas; nasce das bases. Um país cuja população compreende seus interesses estruturais é um país que resiste ao golpismo, à manipulação e à subordinação. O mundo só confiará no Brasil quando o Brasil confiar em si mesmo — e isso começa onde o projeto nacional sempre foi sabotado: no povo.
Nenhum desses caminhos é simples. Todos exigem conflito político, enfrentamento com estruturas arraigadas e construção de uma nova cultura institucional. Mas não existe alternativa. Enquanto o Brasil não resolver seu problema interno de soberania, não haverá confiança externa possível. E enquanto não houver confiança externa, o país seguirá preso ao mesmo círculo vicioso: potência quando tenta, colônia quando vacila.
Conclusão: entre potência e colônia

O Brasil existe suspenso entre dois destinos que disputam seu futuro há séculos. De um lado, a potência que o país já é em essência: um território de escala continental, dono de recursos decisivos para o século XXI, sustentado por ciência sofisticada, imaginário cultural vibrante e uma diplomacia respeitada mesmo por quem o teme. De outro, a colônia que persiste dentro do Estado: uma elite que teme a soberania, Forças Armadas presas a doutrinas externas, instituições vulneráveis ao golpismo e uma máquina cultural moldada para impedir que o país compreenda a si mesmo. A história brasileira se move dentro dessa fratura, ora avançando para o projeto nacional, ora recuando para a submissão, sempre carregando a promessa de um futuro que parece ao mesmo tempo inevitável e distante.
O mundo enxerga essa dualidade com clareza. O Brasil que Lula projeta é visto como um pilar indispensável ao equilíbrio do século XXI — uma voz moderadora, uma força estabilizadora, uma potência do Sul capaz de redefinir a ordem global. Mas o Brasil que emerge nos ciclos de regressão assusta: um país que pode ser tomado por extremismos, capturado por interesses estrangeiros, desfigurado por golpes e destruído por sua própria elite. Nenhum ator internacional sabe qual dessas versões prevalecerá no próximo capítulo. É essa dúvida — interna e externa — que impede o Brasil de atravessar a porta da soberania.
Nenhum país se torna potência sem confiar em si mesmo. Nenhum país mantém sua condição de potência sem que o mundo confie nele. O Brasil falha nos dois pontos. A reconstrução do projeto nacional não depende de discursos ou de atos simbólicos, mas da reorganização profunda do Estado, da superação do golpismo crônico e da formação de um povo capaz de defender sua continuidade histórica. Não há caminho fácil. Não há atalhos. Mas há uma direção clara: o Brasil só deixará de oscilar entre grandeza e ruína quando decidir, enquanto sociedade, que não aceitará mais ser sabotado por sua própria elite.
Entre potência e colônia, o país precisa escolher qual espelho quer atravessar. O mundo espera essa escolha. E seguirá esperando, porque sabe que um Brasil soberano mudaria o destino de todos — e um Brasil instável compromete o futuro do próprio planeta. A decisão, porém, não pertence ao mundo. Pertence ao Brasil. E enquanto essa decisão não for tomada de forma definitiva, o país continuará onde esteve desde sempre: à beira da grandeza, prisioneiro de si mesmo.





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