O mito do narcoterrorismo e a captura do Ministério Público por forças externas
- Rey Aragon

- há 6 horas
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Como doutrinas estrangeiras de segurança infiltram-se na formação do Estado brasileiro sob o pretexto de combater o crime-terror.
Um curso da Escola Superior do Ministério Público reacende a velha doutrina de segurança dos EUA e de Israel, agora travestida de “nexo crime-terror”, abrindo espaço para lawfare, securitização e captura cognitiva do Estado brasileiro.
O novo nome da velha guerra

Em novembro de 2025, a Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU) promoverá o curso presencial “Nexo crime-terror: os vínculos entre crime organizado e o terrorismo no Brasil”. O título parece técnico, mas seu conteúdo revela algo mais profundo: a reedição de uma velha doutrina geopolítica, agora travestida de combate ao chamado “narcoterrorismo”. A atividade — dirigida a procuradores, membros do Ministério Público e servidores de órgãos de segurança — ocorre num momento em que o discurso de “crime-terror” volta a ocupar o centro da agenda hemisférica, impulsionado pelos Estados Unidos e por seus parceiros estratégicos de segurança.
O programa do curso, de acordo com a própria ESMPU, abrange temas como radicalização, recrutamento, financiamento ao terrorismo com uso de criptoativos e estudos de casos brasileiros. A iniciativa tem docentes e orientadores ligados ao Ministério Público Federal, à Polícia Federal e a órgãos estrangeiros de contraterrorismo, como o National Bureau for Counter Terror Financing of Israel (NBCTF) e a Foundation for Defense of Democracies (FDD), sediada em Washington. A composição do corpo docente, por si só, indica uma importação direta de referenciais externos de segurança — referenciais esses que não nasceram de diagnósticos sobre a realidade brasileira, mas de narrativas geopolíticas consolidadas após o 11 de setembro, com mais intensidade após o início do segundo governo Trump.
A chamada “guerra ao terror”, que durante duas décadas justificou invasões, sanções e vigilância em massa, hoje reaparece em novas roupagens discursivas. No caso brasileiro, o termo “narcoterrorismo” — originalmente cunhado na América Latina sob influência norte-americana nos anos 1980 — funciona como um conceito-coringa, que pode ser aplicado a qualquer fenômeno de criminalidade organizada, mesmo sem evidência empírica de vínculo terrorista. Ao adotar essa linguagem, setores do aparelho de Estado passam a reproduzir, de forma inconsciente ou deliberada, a matriz cognitiva da guerra híbrida contemporânea: a fusão entre segurança, política e comunicação como instrumentos de poder.
Mais do que um simples curso, a iniciativa da ESMPU simboliza uma tendência mais ampla: a tentativa de redefinir o campo penal e investigativo brasileiro segundo padrões doutrinários estrangeiros, deslocando o foco da soberania nacional para a segurança hemisférica. O “narcoterrorismo”, assim, torna-se não apenas um mito jurídico, mas também uma ferramenta de alinhamento ideológico, capaz de moldar mentalidades, prioridades e métodos dentro do Ministério Público — o mesmo órgão que, em outros momentos, foi peça-chave de operações de lawfare e de desestabilização política.
O fato documentado: o curso da ESMPU

Entre os dias 11 e 13 de novembro de 2025, a Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU) realizará, em Brasília, o curso presencial “Nexo crime-terror: os vínculos entre o crime organizado e o terrorismo no Brasil”.
A atividade consta no calendário oficial da instituição e oferece 50 vagas, sendo 20 custeadas para membros do Ministério Público Federal (MPF) e dos Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECOs), além de outras 30 vagas não custeadas, distribuídas entre servidores do CNMP, do MPDFT, de escolas do Ministério Público estaduais e do público externo.
A ementa do curso — disponível no site oficial da ESMPU — propõe “compreender o ciclo da atividade terrorista (radicalização, recrutamento e financiamento)” e “identificar possíveis interfaces entre o crime organizado e o terrorismo”. Entre os temas, destacam-se criptoativos, financiamento ilícito e cooperação internacional, bem como estudos de caso envolvendo operações policiais brasileiras, como a Operação Trapiche, deflagrada pela Polícia Federal em 2023.
O coordenador pedagógico e orientador do curso é o procurador da República Lucas de Morais Gualtieri, um dos responsáveis pela própria Operação Trapiche, que foi enquadrada na Lei 13.260/2016 (Lei Antiterrorismo). Ao lado dele, figuram como docentes Christian Vianna de Azevedo (Polícia Federal e Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais), Armando Antão Cortez (Secretaria de Análise Integral do Terrorismo Internacional, Argentina), Isabella Buium (especialista em contraterrorismo formada na Reichman University, Israel), Emanuele Ottolenghi (pesquisador associado à Foundation for Defense of Democracies, de Washington), e Shahar Edelshtein, chefe da Divisão Internacional do NBCTF, órgão israelense responsável pelo bloqueio e rastreamento de ativos financeiros em investigações de terrorismo.
A composição do corpo docente mostra uma clara predominância de atores vinculados a doutrinas estrangeiras de contraterrorismo — principalmente norte-americanas e israelenses — em detrimento de pesquisadores brasileiros da área de criminologia, direito penal ou relações internacionais. Nenhum nome da academia crítica nacional aparece entre os expositores, tampouco há representantes de instituições públicas voltadas à pesquisa jurídica autônoma, como universidades federais ou o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
O curso foi originalmente planejado em formato EAD síncrono, mas a ESMPU decidiu convertê-lo em presencial, alegando “necessidades didáticas e dinâmicas de grupo”. Essa mudança logística coincide com a inclusão de docentes estrangeiros e com a ampliação dos temas relacionados à criptoeconomia e financiamento internacional, que exigem tradução simultânea e infraestrutura tecnológica específica.
Ainda não há, até o momento, informações públicas sobre convênios, diárias, traduções ou custos operacionais do evento, o que levanta questionamentos legítimos de transparência sobre o eventual financiamento externo de palestrantes e parcerias com instituições estrangeiras.
Embora formalmente apresentado como uma capacitação técnica, o curso repete expressões, conceitos e estruturas narrativas idênticas às que aparecem em relatórios e documentos de segurança norte-americanos — sobretudo naqueles produzidos por think tanks como o RAND Corporation e a própria FDD, que há décadas associam o crime organizado latino-americano ao terrorismo internacional.
A atividade, portanto, não é apenas uma formação de quadros: é a incorporação institucional de uma linguagem política de segurança estrangeira, que redefine prioridades investigativas e influencia o olhar jurídico sobre o próprio território nacional.
A doutrina importada: o nexo crime-terror e o mito do narcoterrorismo

A expressão nexo crime-terror soa como novidade, mas é apenas a mais recente mutação de uma doutrina formulada e difundida nos Estados Unidos desde o início da “guerra ao terror”.
Em 2003, a pesquisadora russa Tamara Makarenko cunhou a ideia de um continuum crime-terror, descrevendo uma suposta convergência entre grupos criminosos e organizações terroristas. O conceito rapidamente migrou para relatórios da CIA, do Pentágono e de think tanks ligados à segurança hemisférica, tornando-se o alicerce teórico para justificar novas formas de vigilância, sanção financeira e expansão de jurisdição extraterritorial.
O termo “narcoterrorismo”, por sua vez, tem origem ainda mais antiga. Foi popularizado na década de 1980 durante a guerra contra os cartéis latino-americanos, quando o governo dos EUA passou a caracterizar a violência ligada ao tráfico de drogas como terrorismo.
A categoria, deliberadamente ambígua, servia a dois propósitos simultâneos: militarizar o combate ao narcotráfico e legitimar intervenções políticas na região, sob a lógica de que o crime organizado local representava ameaça à segurança global.
Não era uma descrição científica, mas um instrumento retórico: um conceito-chave de uma política de exceção permanente.
Nas duas décadas seguintes, esse vocabulário foi reciclado para responder a novos desafios estratégicos.
Com o declínio da “guerra às drogas” e o desgaste da retórica anticomunista, os relatórios do Departamento de Estado e da RAND Corporation passaram a promover o crime-terror nexus como eixo analítico do “terrorismo transnacional” — especialmente na América Latina.
O alvo prioritário passou a ser a chamada Tríplice Fronteira (Brasil, Paraguai e Argentina), retratada em sucessivos documentos como um “santuário financeiro” do Hezbollah, embora nunca tenham sido apresentadas provas públicas consistentes de atuação terrorista na região.
Pesquisadores latino-americanos demonstraram que tais narrativas se baseiam em inferências de inteligência, não em evidências judiciais, mas a retórica sobreviveu porque cumpre uma função política: criar um campo de segurança regional controlado por Washington.
É essa doutrina — não uma realidade empírica — que agora retorna ao Brasil sob o nome de “nexo crime-terror”.
Ao importar esse arcabouço conceitual, o Estado brasileiro passa a operar dentro de uma matriz epistemológica em que qualquer criminalidade complexa pode ser traduzida como ameaça terrorista.
A consequência prática é a ampliação do poder investigativo e o enfraquecimento das garantias democráticas, abrindo brecha para o uso político do sistema de justiça — o mesmo fenômeno que, sob outros nomes, caracterizou o lawfare dos anos anteriores.
Nos documentos e cursos que disseminam essa doutrina, o inimigo nunca é claramente definido.
Ora é o Hezbollah, ora são facções nacionais, ora “organizações ideologicamente motivadas”.
Essa imprecisão é o que dá força à narrativa: ela permite ajustar o conceito de terrorismo conforme o interesse do momento, deslocando o eixo de soberania jurídica para um campo de guerra permanente e difusa.
Assim, o “narcoterrorismo” não descreve uma ameaça objetiva — descreve uma arquitetura de controle.
Ele transforma o medo em ferramenta de gestão política e de influência internacional, ao mesmo tempo em que fornece legitimidade simbólica para a presença de especialistas, consultores e órgãos estrangeiros em espaços sensíveis do Estado brasileiro.
O Brasil como laboratório: o discurso do terrorismo doméstico

O Brasil transformou-se, ao longo da última década, em um campo experimental de doutrinas híbridas — jurídicas, cognitivas e comunicacionais — que nasceram fora do país, mas encontraram aqui terreno fértil.
Desde a Operação Lava Jato, a instrumentalização do sistema de justiça passou a integrar a própria estratégia de poder, deslocando a fronteira entre investigação e política. Agora, com a incorporação da retórica do crime-terror nexus, esse processo avança para uma nova etapa: a securitização total, em que o conceito de “terrorismo interno” serve como plataforma para consolidar mecanismos de controle ideológico e jurídico dentro do Estado.
A Operação Trapiche, deflagrada pela Polícia Federal em 2023, é o ponto de inflexão dessa transição.
Sob o argumento de interromper atos preparatórios de terrorismo, a investigação ampliou o uso da Lei 13.260/2016, tipificando como “terroristas” indivíduos suspeitos de vínculos informais com redes estrangeiras, ainda que sem provas públicas de ameaça concreta.
A operação foi coordenada pelo procurador Lucas de Morais Gualtieri, o mesmo que hoje orienta pedagogicamente o curso da ESMPU sobre o “nexo crime-terror”.
Esse vínculo não é meramente casual: o mesmo discurso que legitima investigações baseadas em inferências retorna agora como doutrina institucional de formação, consolidando um ciclo de retroalimentação entre teoria e prática.
O fenômeno repete-se em escala regional.
A Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (SEJUSP) realizou, em outubro de 2025, um seminário sobre o “Hezbollah no Brasil”, com participação de Gualtieri e Christian Vianna de Azevedo, ambos também docentes da ESMPU.
As palestras abordaram as “ameaças híbridas” na América Latina e o “nexo crime-terror”, reiterando a retórica de que facções locais e redes internacionais de financiamento estariam articuladas sob uma lógica terrorista comum — uma narrativa idêntica àquela disseminada em documentos do Departamento de Estado e da Foundation for Defense of Democracies (FDD).
Em paralelo, o programa Rewards for Justice (RFJ), do Departamento de Estado dos EUA, anunciou em maio de 2025 uma recompensa de até 10 milhões de dólares por informações sobre “redes financeiras do Hezbollah” na Tríplice Fronteira.
O anúncio foi amplamente repercutido por agências de segurança e, poucas semanas depois, o tema reapareceu em eventos no Brasil sobre “financiamento ao terrorismo” e “criptoativos ilícitos” — inclusive nos módulos da ESMPU.
A sincronia entre as ações diplomáticas dos EUA e o conteúdo pedagógico dos cursos brasileiros é eloquente: o mesmo discurso se desloca das fronteiras da política externa para dentro da estrutura de formação do Ministério Público.
O resultado é que o país se vê submetido a um processo silencioso de alinhamento estratégico, em que conceitos forjados por think tanks estrangeiros são internalizados como verdades jurídicas.
Essa transferência de doutrina — sem debate público, sem revisão acadêmica e sem contraditório — cria uma espécie de dependência cognitiva institucional.
Ao moldar a percepção de ameaça, ela também molda a resposta: quem define o inimigo define o método, o orçamento e o alvo político.
E, quando o inimigo é difuso, toda forma de dissidência pode ser enquadrada como ameaça à segurança nacional.
Dessa forma, o Brasil não apenas adota a doutrina do “narcoterrorismo”: ele a vivencia como laboratório.
O que se ensaia aqui é a hibridização entre aparato jurídico, inteligência e discurso geopolítico — um modelo que transforma a guerra informacional em política de Estado, e a formação institucional em campo de disputa ideológica.
A captura epistêmica: como se molda o pensamento do Estado

Nenhum império precisa ocupar um território quando conquista sua mente.
A guerra híbrida moderna não se faz apenas com tanques ou sanções, mas com ideias, métodos e categorias.
É por meio da formação institucional — o treinamento de magistrados, procuradores, policiais e servidores — que se definem as lentes através das quais o Estado passa a enxergar o mundo.
É esse o terreno da captura epistêmica: quando um país adota como próprias as matrizes cognitivas e doutrinárias criadas por potências estrangeiras para servirem a seus próprios objetivos geopolíticos.
A doutrina do crime-terror nexus, disseminada hoje no seio do Ministério Público brasileiro, é um exemplo perfeito dessa captura.
Ela substitui o olhar empírico por um olhar ideológico, em que a inferência substitui a evidência e a suspeita torna-se prova.
A lógica investigativa passa a ser guiada por matrizes narrativas — Hezbollah, criptoativos, radicalização — que não emergem de diagnósticos brasileiros, mas de agendas externas de segurança.
Trata-se, em termos gramscianos, da hegemonia cultural aplicada ao campo jurídico: o domínio das categorias e significados que moldam a ação do Estado.
A formação oferecida pela ESMPU não é um ato isolado, mas parte de um processo mais amplo de transformação da epistemologia jurídica brasileira.
O Ministério Público, instituição criada para defender a ordem jurídica e o interesse público, passa a operar sob a gramática da segurança nacional internacionalizada.
As palavras “crime”, “terror” e “organização” deixam de ter fronteiras jurídicas claras e passam a habitar uma zona cinzenta, onde o inimigo é definido não pelo fato, mas pelo contexto discursivo — e o contexto é, em larga medida, construído por atores externos.
Essa transição discursiva tem efeitos profundos.
Ela cria, dentro do Estado, uma geração de agentes treinados a interpretar o Brasil segundo parâmetros de inteligência estrangeira.
Quando o procurador ou policial pensa em “terrorismo”, ele não pensa na realidade social brasileira — pensa na matriz discursiva que lhe foi ensinada, nas tipologias, nos slides, nas siglas em inglês.
Assim, o país passa a produzir políticas de segurança mentalmente terceirizadas, aplicando modelos de guerra cognitiva desenhados para outras realidades.
Não se trata de uma teoria conspiratória, mas de um fenômeno documentado na história recente.
A hegemonia estadunidense sempre dependeu de instituições locais convertidas em reprodutoras de doutrina — da economia à justiça, da mídia às universidades.
O curso da ESMPU é apenas uma expressão contemporânea dessa estratégia: o processo pelo qual a formação jurídica nacional é reformatada para operar como instrumento de alinhamento estratégico, disfarçado de capacitação técnica.
Quando se molda o pensamento, molda-se a narrativa e molda-se a ação.
Ao aceitar sem crítica a doutrina do “narcoterrorismo”, o Estado brasileiro entrega sua capacidade de interpretação autônoma — o primeiro pilar da soberania informacional.
E quando um país perde o controle sobre o modo como pensa a si mesmo, perde também o controle sobre o modo como age, investiga e pune.
Essa é a essência da guerra cognitiva: conquistar corações e mentes não com armas, mas com narrativas legitimadas pelo próprio aparato estatal.
Soberania informacional e jurídica: o que está em jogo

A disputa pelo significado de “terrorismo” é, na verdade, uma disputa pelo poder de definir o inimigo.
E quem define o inimigo define a política, o orçamento e as fronteiras do aceitável.
Quando o Brasil internaliza doutrinas estrangeiras sob o manto do nexo crime-terror, ele não apenas altera sua gramática penal — ele reconfigura sua soberania cognitiva e jurídica, passando a operar segundo as prioridades de segurança de outros países.
A expansão dessa agenda se dá por múltiplos vetores.
Nos relatórios do Departamento de Estado dos EUA e de think tanks como a FDD e a RAND Corporation, a América Latina é descrita como “vulnerável ao crime-terror”, uma expressão que serve de justificativa para cooperação forçada, intercâmbio de dados e vigilância financeira.
A partir daí, surgem programas de capacitação, convênios de “assistência técnica” e consultorias de contraterrorismo que entram nas instituições nacionais com o discurso da modernização, mas trazem consigo mecanismos de dependência tecnológica, informacional e doutrinária.
A ênfase no financiamento do terrorismo e nos criptoativos insere o Brasil diretamente na arquitetura global de compliance extraterritorial — um sistema de vigilância financeira transnacional operado sob padrões determinados por Washington e Tel Aviv.
Isso significa que, ao adotar sem debate essas tipologias, o país aceita subordinar sua soberania econômica e jurídica a normas que não elaborou.
O controle sobre dados, investigações e fluxos financeiros passa a ser mediado por protocolos e plataformas sob jurisdição estrangeira.
Mais grave ainda é o impacto político.
A partir do momento em que o Estado adota um léxico de “narcoterrorismo”, ele cria a possibilidade de criminalizar dissidência, movimentos sociais e disputas políticas sob o argumento de segurança nacional.
A fronteira entre investigação legítima e perseguição ideológica torna-se difusa.
E, no limite, o próprio Ministério Público — criado como defensor da Constituição — pode ser convertido em agente de estabilização de interesses geopolíticos externos.
Esse processo caracteriza o que estudiosos da comunicação crítica chamam de guerra cognitiva: a disputa pela infraestrutura simbólica do pensamento.
As palavras são as armas; os conceitos, os vetores de dominação.
E quando essas armas entram em um país sem filtro democrático, a democracia deixa de ser soberana sobre si mesma.
O caso da ESMPU, portanto, ultrapassa o campo jurídico.
Ele simboliza uma batalha maior — a luta pelo direito de o Brasil pensar com a própria cabeça, formar seus quadros segundo sua realidade, e definir suas ameaças conforme seu interesse nacional.
Sem essa autonomia informacional e cognitiva, não existe soberania possível, nem jurídica, nem política, nem cultural.
As perguntas que o MPF e a ESMPU precisam responder

Nenhuma democracia madura teme perguntas.
E quando instituições estratégicas do Estado lidam com doutrinas sensíveis de segurança e contraterrorismo, transparência não é um favor — é obrigação pública.
A realização do curso “Nexo crime-terror” pela Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU) abre um debate necessário sobre o grau de influência estrangeira e o alinhamento epistemológico que orientam a formação de seus quadros.
Há questões que não podem permanecer sem resposta:
1. Quem financia e quem convida?
Existem convênios, diárias ou acordos de cooperação com órgãos estrangeiros, como o National Bureau for Counter Terror Financing of Israel (NBCTF), a Foundation for Defense of Democracies (FDD) ou a Secretaría de Análisis Integral del Terrorismo Internacional da Argentina?
Se há financiamento externo — direto ou indireto — para participação de palestrantes internacionais, ele precisa ser público e detalhado.
2. Por que não há pluralidade acadêmica?
Por que a ESMPU não convidou pesquisadores brasileiros das áreas de criminologia crítica, direito penal, sociologia da segurança ou relações internacionais para contrapor a narrativa do nexo crime-terror?
Sem contraponto, a formação corre o risco de se transformar em propaganda doutrinária, não em capacitação técnica.
3. Quais são os critérios pedagógicos e científicos adotados?
A doutrina usada no curso foi validada por revisão acadêmica?
Ou se trata de material importado de think tanks estrangeiros sem validação científica independente?
Essa distinção é essencial para garantir a integridade epistemológica da formação jurídica.
4. O material do curso será público?
Slides, gravações e textos usados durante o curso precisam ser divulgados.
Se não há nada a esconder, a publicação integral reforçará a credibilidade da ESMPU e permitirá à sociedade acompanhar o conteúdo que está moldando o pensamento jurídico brasileiro.
5. Qual o impacto dessa doutrina na prática institucional?
De que forma o nexo crime-terror pode influenciar investigações, denúncias e decisões do Ministério Público e da Polícia Federal?
Como se evita que o conceito — impreciso por natureza — seja usado para legitimar abusos de poder, lawfare ou criminalização de dissidências políticas e sociais?
Essas perguntas não buscam confronto, mas accountability — a transparência que sustenta o Estado democrático de direito.
Responder a elas não é fragilizar o Ministério Público, mas reafirmar sua legitimidade diante da sociedade brasileira, que tem o direito de saber quem forma seus procuradores, com quais ideias e sob quais interesses.
Conclusão: A farsa do narcoterrorismo e a guerra cognitiva

O discurso do narcoterrorismo não nasceu de fatos, mas de interesses.
É uma ficção estratégica moldada por potências que, desde a Guerra Fria, buscam manter a América Latina sob tutela permanente — ontem em nome do anticomunismo, hoje sob o pretexto do contraterrorismo.
No Brasil, essa ficção encontra guarida em instituições que deveriam proteger a Constituição, mas que passaram a absorver, sem debate, narrativas e doutrinas desenhadas fora de suas fronteiras.
O resultado é a erosão silenciosa da soberania informacional, jurídica e cognitiva do país.
Ao transformar o “crime” em “terror” e o “inimigo” em categoria elástica, o Estado se torna refém da retórica da exceção.
Tudo o que escapa à ortodoxia pode ser enquadrado como ameaça.
O “terrorismo” vira o novo fantasma que autoriza o medo, legitima o controle e silencia o pensamento crítico.
Essa é a essência da guerra cognitiva contemporânea: não se conquista um país pela força, mas pela mente dos que o servem.
O curso da ESMPU, apresentado como formação técnica, é apenas o sintoma mais recente de um processo mais profundo — o alinhamento mental e institucional do Brasil às agendas de segurança de Washington e Tel Aviv.
A mesma lógica que sustentou as invasões do Oriente Médio e o monitoramento global agora se infiltra nos corredores do sistema de justiça brasileiro, sob o verniz do “nexo crime-terror”.
Não se trata de cooperação: é transferência de soberania por meio do conhecimento.
Questionar e denunciar esse processo não é atacar o Ministério Público, nem seus membros.
É, pelo contrário, defender o Estado brasileiro da colonização silenciosa de sua inteligência institucional.
A verdadeira soberania não se conquista com slogans ou fronteiras, mas com autonomia cognitiva: o direito de pensar com as próprias categorias, interpretar a realidade com as próprias lentes e definir os próprios riscos sem tutela externa.
O mito do narcoterrorismo é, portanto, mais do que uma falácia conceitual — é uma arma simbólica de guerra híbrida, projetada para transformar o medo em obediência e o pensamento em território ocupado.
Cabe à sociedade, à academia e aos setores democráticos do Estado romper o silêncio, exigir transparência e recuperar o controle sobre suas próprias narrativas.
Enquanto o Brasil repetir os mantras de segurança de outros, continuará travando guerras que não são suas — e vencendo batalhas que, na verdade, já o derrotaram por dentro.




Excelente reflexão Rey, ainda mais diante dos efeitos que tal conduta (considerar que há narcoterrorismo no Brasil) poderá ocorrer na política externa, podendo haver sanções caso não se comprove que esteja sendo combatido, enfraquecimento do papel brasileiro na política externa, dentre as que me ocorrem agora.