A ciência da guerra e a soberania em risco: lições de Bousquet para o Brasil e a América Latina
- Rey Aragon
- há 23 horas
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Em The Scientific Way of Warfare, Antoine Bousquet mostra como cada regime científico moldou a guerra moderna — da mecânica ao caos das redes — e revela chaves para compreender os ataques dos EUA à soberania latino-americana
Mais do que um estudo sobre história militar, o livro de Bousquet é um guia estratégico para entender o presente. Da pressão econômica às sanções seletivas, dos navios de guerra no Caribe às operações digitais contra o Brasil, o “regime chaoplexic” da guerra em rede evidencia que a América Latina continua sendo um laboratório de intervenções e disputas pela ordem global.
Preambulo

Há livros que atravessam a nossa trajetória de forma silenciosa, e há outros que, ao serem encontrados, transformam radicalmente a maneira como enxergamos o mundo. The Scientific Way of Warfare, de Antoine Bousquet, pertence a essa segunda categoria. Conheci a obra por indicação de um amigo querido, Eden Cardim, que, em meio a uma conversa sobre política, tecnologia e poder, me disse que esse livro poderia ser um divisor de águas nas minhas pesquisas. Ele estava certo.
A cada página, compreendi melhor não apenas o passado das guerras, mas sobretudo o presente — esse presente convulsionado, marcado por guerras híbridas, redes digitais e operações de desinformação. Bousquet me ofereceu uma chave que faltava: entender que a guerra sempre se reinventa a partir dos paradigmas científicos e tecnológicos dominantes, e que hoje, na era do caos e da complexidade, estamos vivendo uma forma de conflito que atravessa nossas democracias, nossas economias e até nossas subjetividades.
Resolvi escrever este texto não como uma resenha acadêmica, mas como um artigo estratégico, pensado para jornalistas, pesquisadores, militantes, lideranças políticas e qualquer cidadão que queira compreender a engrenagem invisível que move os ataques contra as soberanias nacionais. Mais do que comentar o livro, quero compartilhar a urgência de sua leitura: porque sem compreender os regimes científicos da guerra descritos por Bousquet, corremos o risco de não reconhecer os sinais do presente — e, consequentemente, de não ter ferramentas para enfrentá-los.
Introdução — O Livro como Chave de Leitura do Presente

Quando Antoine Bousquet publicou The Scientific Way of Warfare: Order and Chaos on the Battlefields of Modernity, em 2009, poucos poderiam prever que, mais de uma década depois, o livro seria não apenas uma referência acadêmica, mas uma ferramenta indispensável para entender o presente. A obra, parte da coleção Critical War Studies, rompe com o formalismo das análises militares tradicionais e mergulha naquilo que realmente define a guerra contemporânea: a íntima relação entre ciência, tecnologia e poder. Para Bousquet, cada paradigma científico que emergiu na modernidade deu origem a um novo regime de guerra — do mecanicismo newtoniano ao caos das redes — e é essa chave que permite compreender os conflitos atuais, em especial os ataques híbridos que hoje atingem a América Latina e o Brasil.
Ao mostrar como o “modo científico de fazer a guerra” sempre esteve associado às metáforas tecnológicas dominantes, Bousquet nos oferece um mapa para decifrar a crise global. Se no século XVIII os exércitos funcionavam como relógios disciplinados, e no século XX a destruição termodinâmica das guerras industriais deu lugar à obsessão cibernética da Guerra Fria, hoje vivemos sob o regime chaoplexic, marcado por redes, complexidade e caos. Essa é a gramática invisível que rege não apenas os drones e os algoritmos militares, mas também as sanções econômicas, o lawfare, as campanhas de desinformação e as pressões diplomáticas que se abatem sobre o Brasil e seus vizinhos.
No mundo atual, em que navios de guerra norte-americanos patrulham o Caribe enquanto ministros brasileiros sofrem sanções pessoais, a leitura de Bousquet ganha contornos quase proféticos. Ele mostra que a guerra não é apenas um fenômeno bélico restrito aos campos de batalha, mas um processo difuso que atravessa sociedades, economias e consciências. Essa perspectiva é fundamental para entender por que a América Latina permanece como um laboratório de intervenções: a lógica não é mais apenas ocupar territórios com tanques, mas sim manipular fluxos de informação, sufocar economias e corroer instituições por dentro. O livro de Bousquet nos alerta: a guerra hoje se manifesta na fronteira difusa entre ordem e caos, e é nessa fronteira que o destino das soberanias nacionais está sendo decidido.
Os Quatro Regimes Científicos da Guerra

A originalidade de Antoine Bousquet está em mostrar que a guerra nunca foi apenas técnica ou tática, mas sempre esteve moldada pelas metáforas científicas dominantes de cada época. Ele identifica quatro regimes fundamentais que não apenas explicam o passado, mas também ajudam a decifrar o presente.
O regime mecanicista, nascido com o Iluminismo e a física newtoniana, via os exércitos como relógios de engrenagens. Soldados eram peças de uma máquina que se movia de acordo com a disciplina rígida e a ordem centralizada dos monarcas ilustrados. Esse modelo foi encarnado pelos exércitos de Frederico, o Grande, e deixou marcas profundas na ideia de que a guerra podia ser organizada como um sistema previsível.
Com a Revolução Industrial, surgiu o regime termodinâmico: a guerra como motor a vapor, como liberação de energia em escala destrutiva. As batalhas da Primeira e da Segunda Guerra Mundial, com artilharia pesada, tanques, bombardeios aéreos e, no limite, a bomba atômica, expressam essa lógica. Aqui, a vitória não dependia apenas de disciplina, mas da capacidade de mobilizar recursos, indústria e energia em proporções colossais.
O regime cibernético, típico da Guerra Fria, introduziu a lógica do controle e da retroalimentação. Inspirada nos computadores e nos sistemas de comunicação, a guerra passou a ser pensada em termos de informação, comando e monitoramento. O Vietnã mostrou os limites desse paradigma, mas também consolidou a visão de que exércitos modernos precisavam ser geridos como sistemas complexos de dados, sensores e decisões centralizadas.
Por fim, chegamos ao regime chaoplexic, marcado pela teoria do caos e das redes. Aqui a guerra é descentralizada, organizada em enxames, dinâmica, fluida. Guerrilhas, terrorismo em rede, operações digitais e manipulação informacional encarnam esse novo modelo. O poder não está mais apenas em tanques ou mísseis, mas na capacidade de gerar instabilidade, manipular narrativas, controlar fluxos de informação e explorar vulnerabilidades sociais. É nesse regime que se encaixam os ataques híbridos contemporâneos contra o Brasil e a América Latina.
Do Caos à Rede: A Guerra Chaoplexic

Se os regimes mecanicista, termodinâmico e cibernético ajudaram a estruturar a guerra entre os séculos XVII e XX, é no chaoplexic warfare que encontramos a chave para compreender os conflitos atuais. Inspirado pelas ciências do caos e da complexidade, esse paradigma rompe com a ideia de hierarquia rígida e aposta na descentralização, na auto-organização e na fluidez. O campo de batalha deixa de ser um espaço delimitado por fronteiras e trincheiras para se transformar em rede: múltiplos atores, conectados de maneira horizontal, disputam narrativas, dados e percepções tanto quanto territórios físicos.
Bousquet mostra que conceitos como “enxame” e “auto-sincronização” são centrais nesse novo regime. Exércitos já não dependem apenas de comando centralizado: insurgências, milícias digitais e até campanhas de desinformação operam em lógica distribuída, adaptando-se rapidamente ao ambiente. O exemplo mais citado é o do ciclo OODA, de John Boyd, no qual a velocidade de observar, orientar-se, decidir e agir se torna decisiva. No século XXI, essa aceleração se traduz em drones autônomos, ataques cibernéticos coordenados e enxames de perfis falsos nas redes sociais, todos capazes de saturar o inimigo antes que ele consiga responder.
O mais relevante, porém, é perceber como a guerra chaoplexic transcende o campo militar. O que antes se limitava ao fronte físico hoje invade a política, a economia e a cultura. Uma sanção econômica pode paralisar um setor produtivo inteiro tão eficazmente quanto uma bomba; um processo judicial midiático pode derrubar um governo com mais impacto do que um golpe militar; uma campanha massiva de desinformação pode destruir reputações, dividir sociedades e corroer democracias. Esse é o terreno em que o Brasil e a América Latina se encontram: laboratórios onde a guerra híbrida se manifesta em sua forma mais pura, transformando a disputa geopolítica em disputa cognitiva.
América Latina: Laboratório da Guerra Híbrida

Poucas regiões do mundo ilustram tão bem a aplicação prática das teorias de Antoine Bousquet quanto a América Latina. Desde o século XIX, quando a Doutrina Monroe proclamou que o continente era “esfera de influência natural” dos Estados Unidos, nossos países foram submetidos a sucessivos experimentos de guerra — ora convencionais, ora híbridos. O que Bousquet chama de regimes científicos da guerra aqui se traduziu em golpes, invasões, sanções e operações clandestinas, cada qual adequado ao paradigma dominante da época.
No regime mecanicista, vimos os EUA moldarem exércitos latino-americanos como engrenagens dóceis, treinados em academias militares subordinadas à lógica da disciplina centralizada. No regime termodinâmico, a industrialização da violência se fez sentir em intervenções como a invasão de Granada (1983) ou do Panamá (1989), quando a mobilização de poder de fogo avassalador garantiu vitórias rápidas, mas deixou cicatrizes profundas. O regime cibernético encontrou seu auge na Guerra Fria, quando a lógica de comando e controle se traduziu na Operação Condor: redes de inteligência interligadas, bancos de dados de opositores, tortura sistemática e assassinatos coordenados em escala continental — uma espécie de “network-centric warfare” antes mesmo do termo.
Hoje, no regime chaoplexic, a América Latina volta a ser laboratório. As guerras não se dão mais apenas em selvas ou cidades, mas em redes digitais, tribunais e fluxos econômicos. A Venezuela sofre bloqueios e sanções que corroem sua economia e geram caos social. Cuba permanece sob cerco econômico enquanto é alvo de campanhas de desinformação. A Nicarágua é bombardeada por operações psicológicas e diplomáticas. E o Brasil, maior país da região, tornou-se epicentro desse novo regime: da Lava Jato, que funcionou como uma operação de lawfare transnacional, às atuais sanções contra ministros do Supremo Tribunal Federal e tarifas comerciais impostas em meio a disputas diplomáticas, o país é alvo direto da guerra híbrida estadunidense.
Essas estratégias, longe de incidentes isolados, expressam exatamente o que Bousquet descreve: a guerra como um processo difuso, caótico, descentralizado, onde redes substituem quartéis e algoritmos valem mais do que divisões blindadas. A América Latina, mais uma vez, não é apenas palco — é campo de teste, onde Washington experimenta as técnicas que depois exporta para o resto do mundo.
O Brasil na Linha de Fogo

Se a América Latina como um todo é um laboratório de guerra híbrida, o Brasil ocupa o centro desse experimento. Nenhum outro país da região reúne, ao mesmo tempo, dimensão continental, população massiva, peso econômico, biodiversidade estratégica e protagonismo geopolítico. Justamente por isso, tornou-se alvo privilegiado das pressões estadunidenses, que operam de maneira exemplar sob o regime chaoplexic descrito por Bousquet: uma guerra difusa, travada em múltiplas frentes, combinando sanções, tarifas, lawfare, desinformação e operações psicológicas.
Os exemplos recentes são eloquentes. O governo Trump retomou a escalada de medidas contra Brasília: sanções direcionadas à esposa de um ministro do Supremo Tribunal Federal, restrições de visto a autoridades e ameaças veladas no campo diplomático. Em paralelo, tarifas comerciais sobre produtos brasileiros reaparecem como instrumento de pressão, reeditando a lógica do “porrete econômico” que historicamente moldou a relação entre Washington e seus vizinhos. Ao mesmo tempo, navios de guerra dos EUA no Caribe são percebidos em Brasília como recados indiretos: gestos militares simbólicos que funcionam mais como demonstração de força e intimidação do que como preparação bélica direta.
Mas a dimensão mais sofisticada da guerra contra o Brasil se dá na esfera informacional e jurídica. A Operação Lava Jato, montada em articulação com o Departamento de Justiça dos EUA, funcionou como uma operação de lawfare exemplar: desestruturou setores estratégicos da economia, criminalizou a política desenvolvimentista e abriu espaço para interesses estrangeiros sobre o petróleo do pré-sal. Hoje, a mesma lógica ressurge em novas roupagens — processos seletivos, campanhas de difamação digital, uso de think tanks e fundações estrangeiras para pautar a opinião pública, e uma máquina de desinformação que opera de forma enxameada, saturando o ambiente cognitivo com narrativas corrosivas.
Nesse sentido, o Brasil é a expressão viva da guerra chaoplexic de Bousquet: o inimigo não está em trincheiras visíveis, mas disperso em fluxos de dados, em sanções financeiras, em algoritmos de redes sociais que privilegiam o discurso de ódio, em decisões judiciais que se transformam em armas políticas. O país enfrenta, simultaneamente, o peso de um intervencionismo externo e a corrosão interna promovida por elites locais alinhadas ao projeto hegemônico norte-americano. É um campo de batalha invisível, mas não menos devastador — e, ao mesmo tempo, um espelho do que pode se tornar o futuro da guerra em escala global.
A Ordem e o Caos nas Relações Globais

A chave de leitura de Bousquet — a tensão permanente entre ordem e caos — revela-se decisiva quando olhamos para o cenário internacional. Os Estados Unidos insistem em projetar-se como força ordenadora do sistema global, mas suas próprias estratégias geram instabilidade crônica. A tentativa de impor “ordem” por meio de sanções, tarifas, bloqueios diplomáticos e demonstrações militares tem o efeito paradoxal de alimentar o caos que pretendem controlar. É o dilema central do regime chaoplexic: quanto mais se busca centralizar e disciplinar, mais se abre espaço para resistências descentralizadas e para a emergência de novos polos de poder.
No caso brasileiro, isso se torna evidente. As tarifas de Trump, as sanções contra membros do Judiciário e a pressão sobre a economia nacional buscam enquadrar o país em uma lógica subordinada. Mas, em vez de isolamento, esses movimentos aceleram o realinhamento de Brasília com China, Rússia e os BRICS. Cada ataque norte-americano reforça a percepção de que o Brasil precisa ampliar suas parcerias estratégicas, consolidar a soberania informacional e fortalecer redes regionais de defesa. O que para Washington seria uma demonstração de ordem, acaba funcionando como catalisador de novas alianças e de maior autonomia.
Esse mesmo paradoxo se repete em escala global. As pressões contra a Venezuela alimentam a aproximação de Caracas com Moscou e Pequim. O bloqueio a Cuba só fortalece sua posição simbólica de resistência no Sul Global. E o uso cada vez mais frequente de instrumentos jurídicos, como designações de terrorismo ou programas de sanções extraterritoriais, mina a legitimidade dos EUA junto a organismos multilaterais. O resultado é uma erosão lenta, porém contínua, da hegemonia americana — enquanto cresce o espaço para alternativas multipolares.
Nesse jogo, a América Latina se encontra em um ponto crítico: pode ser apenas campo de manobra, reproduzindo ciclos de dependência e instabilidade, ou pode assumir um papel de protagonista na disputa global. Para isso, precisa reconhecer que o terreno em disputa não é apenas militar ou econômico, mas cognitivo e informacional. Como ensina Bousquet, a guerra chaoplexic se trava em redes, fluxos e percepções. Quem dominar essas camadas terá mais poder do que quem controlar apenas tanques ou bases militares.
Conclusão — Um Livro para o Nosso Tempo

The Scientific Way of Warfare não é apenas uma obra acadêmica sobre a história da guerra. É, antes de tudo, um guia intelectual para compreender o presente — e, em grande medida, antecipar o futuro. Ao mostrar que cada paradigma científico molda não apenas as batalhas, mas também as formas de organização política e social, Antoine Bousquet nos lembra que a guerra nunca está restrita aos quartéis: ela infiltra-se nas instituições, nos tribunais, nas economias e, hoje, sobretudo nas redes digitais.
Para o Brasil e a América Latina, a lição é incontornável. O continente, mais uma vez, se encontra no olho do furacão de um regime bélico global, agora marcado pela lógica chaoplexic. Os EUA aplicam sanções seletivas, tarifas comerciais, campanhas de desinformação e operações psicológicas não para conquistar territórios, mas para moldar subjetividades, corroer instituições e manter a região em posição subordinada. Ao mesmo tempo, novos polos de poder exploram as fissuras criadas por esse intervencionismo, oferecendo alternativas e abrindo espaço para uma multipolaridade em gestação.
Exaltar o livro de Bousquet, neste contexto, é exaltar um instrumento de lucidez. Ele nos ajuda a ver que o caos não é acidente, mas método; que as redes não são apenas canais de comunicação, mas armas de guerra; que a soberania não pode mais ser pensada apenas em termos militares, mas sobretudo informacionais e cognitivos. É nessa arena invisível que o Brasil joga seu destino — e é nela que precisa construir defesas e estratégias próprias.
Em última instância, a leitura de Bousquet é um chamado à vigilância. Um alerta de que a guerra mudou de forma, mas não de objetivo: continua sendo a luta pelo poder e pela hegemonia. Se a América Latina quiser deixar de ser laboratório e se afirmar como protagonista, terá de compreender que a batalha decisiva não se trava apenas nos mares ou nas fronteiras, mas no campo fluido e incerto das redes, onde ordem e caos disputam cada segundo.
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