A engrenagem invisível do cartão e a disputa pela soberania financeira
- Sara Goes
- 25 de ago.
- 9 min de leitura
Sanção Magnitsky contra Alexandre de Moraes expõe como o sistema global de intermediação financeira limita não só indivíduos, mas também países inteiros. No centro, a disputa entre bandeiras privadas, o Pix e a proposta de um Pix Global dos BRICS
Você não sente nem vê
O cartão como espelho da captura informacional

Passar um cartão é como clicar em “enviar” numa rede social: a ação parece imediata, mas na realidade atravessa uma cadeia complexa de intermediários. Cada compra passa pelo banco emissor, pela adquirente, pela bandeira, por gateways (tecnologia que transmite e valida os dados da transação (a ponte digital)) e, em alguns casos, por subadquirentes empresa que intermedeia o acesso de pequenos lojistas ao sistema das grandes adquirentes (o “atacadista de pagamentos”). Assim como no ambiente digital, em que uma mensagem atravessa servidores, algoritmos e filtros invisíveis, aqui também há um percurso oculto que garante a operação.
Em ambos os casos, a velocidade mascara a estrutura de poder. Digitar a senha e ver o “pagamento aprovado” dá a sensação de simplicidade, assim como a fluidez de uma timeline faz parecer que as informações circulam livremente. Mas, por trás do gesto, age uma máquina que captura valor. Relações sociais aparecem como propriedades naturais das coisas. No cartão, o consumidor acredita pagar apenas pelo produto comprado, sem perceber que financia uma rede de intermediários. Na rede social, o usuário acredita apenas “se comunicar”, sem perceber que entrega seus dados para a engrenagem publicitária.
O coração do sistema financeiro está na chamada MDR (Merchant Discount Rate) e nas taxas de intercâmbio que remuneram os bancos emissores. É desse mecanismo que saem milhas, cashback e programas exclusivos. Mas não há benefício gratuito: o trabalhador que usa um cartão básico, sem direito a recompensas, paga o mesmo preço que o cliente premium. Uma parte de sua contribuição serve para financiar o privilégio de outro. É a lógica regressiva, em que a maioria sustenta vantagens destinadas a uma minoria.
Esse arranjo é uma forma de acumulação por despossessão. O que poderia ser um bem comum, os trilhos de pagamento, é privatizado e transformado em fonte de renda para corporações globais. O mesmo ocorre na esfera digital: dados que poderiam servir ao interesse público viram insumo para plataformas que extraem valor sem produzir riqueza social.
Além da engrenagem técnica e financeira, há uma engrenagem social. Cada pedágio digital é sustentado por uma massa de trabalhadores invisíveis: operadores de call center, entregadores de aplicativos, terceirizados de processamento, técnicos de manutenção da rede. São eles que mantêm o sistema em funcionamento, mas permanecem precarizados, fora dos benefícios que ajudam a alimentar. Isso reproduz o que alguns autores chamam de tecno-feudalismo: um regime em que a inovação tecnológica, em vez de libertar, reforça relações de dependência, onde poucos capturam tributos e muitos são explorados.
No fundo, cartão e plataforma digital são duas faces do mesmo processo. Ambos disciplinam consumidores e trabalhadores, extraem valor de cada gesto cotidiano e organizam a vida social em torno de castelos privados. Ambos alimentam a ilusão da gratuidade e da neutralidade, mas escondem pedágios que controlam tanto o dinheiro quanto a informação.
Uma nova mudança em breve vai acontecer
O Pix e a nuvem soberana

Se o cartão representa a privatização dos trilhos do dinheiro, o Pix é uma tentativa de reconstrução pública desses trilhos. A diferença é simples, mas decisiva: em vez de atravessar uma cadeia de intermediários que cobram taxas invisíveis, o dinheiro passa diretamente de quem paga para quem recebe, em segundos e praticamente sem custo. O controle dessa operação não está nas mãos de uma bandeira privada, mas do Banco Central, uma instituição pública.
Esse arranjo rompe a lógica do capitalismo improdutivo: aquele que se alimenta não da produção de riqueza, mas da extração de pedágios sobre atividades essenciais da vida social. O Pix desmonta essa engrenagem ao eliminar intermediários que apenas extraem valor, devolvendo à circulação monetária sua função de serviço.
A comparação com o campo da informação é direta. Assim como o Pix devolve ao Estado o controle sobre os meios de pagamento, a nuvem soberana busca devolver à sociedade o controle sobre seus dados e comunicações. Hoje, servidores estrangeiros concentram informações estratégicas de governos, empresas e cidadãos, da mesma forma que bandeiras privadas concentram os trilhos financeiros. Nos dois casos, o poder não está apenas na taxa ou no lucro imediato, mas na capacidade de disciplinar e subordinar quem depende dessas infraestruturas.
Assim como no sistema de cartões, onde os trabalhadores precarizados sustentam a engrenagem sem partilhar de seus benefícios, na esfera digital milhões de usuários produzem diariamente o combustível das plataformas, dados, sem participar da riqueza gerada. O Pix e a nuvem soberana partem da mesma intuição: é preciso romper com a lógica da extração sem retorno.
Ao criar uma rede de pagamentos instantâneos controlada pelo poder público, o Pix funciona como uma espécie de contra-ataque ao tecno-feudalismo financeiro. Do mesmo modo, ao construir centros de dados nacionais e estabelecer normas de proteção informacional, a nuvem soberana é uma tentativa de resistir ao tecno-feudalismo informacional, em que empresas globais capturam dados como se fossem tributos obrigatórios.
No plano simbólico, ambos representam o esforço de devolver à coletividade o que foi transformado em fonte privada de acumulação. O que o cartão privatizou, o Pix devolve como bem comum. O que as big techs capturaram em dados, a nuvem soberana busca reconquistar como patrimônio público.
Trata-se de duas frentes de uma mesma luta. Não basta ter moeda sem ter dados, nem ter dados sem ter moeda: soberania financeira e soberania informacional são inseparáveis. Uma sociedade que não controla os trilhos do dinheiro nem da comunicação é uma sociedade vulnerável, sujeita a sanções, bloqueios e manipulações externas.
O Pix Global dos BRICS e a rede de dados multipolar

A dependência do sistema financeiro internacional é, em essência, semelhante à dependência digital. Assim como a maior parte das comunicações online do mundo passa por servidores e plataformas localizadas nos Estados Unidos, a maior parte das transações internacionais passa pelo SWIFT e pelo dólar. Em ambos os casos, o resultado é o mesmo: vulnerabilidade. Um país pode ser desconectado de fluxos financeiros ou digitais a partir de decisões externas, sem ter poder de resposta.
O episódio da sanção Magnitsky contra Alexandre de Moraes deixou isso evidente. Embora dirigida a um indivíduo, ela mostrou que a engrenagem financeira pode ser usada para pressionar um país inteiro. O mesmo acontece quando plataformas digitais bloqueiam conteúdos ou perfis de autoridades públicas, redefinindo de fora os limites da esfera pública nacional. Trata-se de um mesmo padrão: a capacidade de atores externos privatizarem a mediação e transformarem-na em instrumento de dominação.
É nesse contexto que surge a proposta de um Pix Global dos BRICS. A ideia é simples, mas de grande impacto: permitir que Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul realizem transações em moedas locais, sem depender do dólar nem do SWIFT. Se no cotidiano o Pix já liberta cidadãos dos pedágios de bandeiras privadas, no plano internacional o Pix Global libertaria países da subordinação às engrenagens financeiras do Ocidente.
A analogia na esfera digital é a construção de uma rede de dados multipolar. Assim como os BRICS querem se comunicar financeiramente por trilhos próprios, também cresce o movimento para criar infraestruturas informacionais independentes das big techs. Isso inclui datacenters nacionais, protocolos de rede alternativos e sistemas de inteligência artificial desenvolvidos fora do eixo anglo-americano.
Ambos os projetos, financeiro e informacional, partem da mesma premissa: é impossível falar em soberania se os meios de circulação estão nas mãos de outros. Um país que não controla seus trilhos de pagamento não tem autonomia econômica; um país que não controla seus trilhos digitais não tem autonomia comunicacional.
A disputa multipolar, portanto, não é apenas sobre moedas ou sobre redes sociais: é sobre a possibilidade de organizar a vida social fora dos castelos tecno-feudais. O Pix Global dos BRICS e a rede de dados soberanos são tentativas de mostrar que existe alternativa à naturalização da dependência.
O desafio é que esses projetos enfrentam resistência tanto das potências estabelecidas quanto dos interesses internos alinhados a elas. Bancos globais, big techs e elites locais têm no atual arranjo sua fonte de poder e de renda. Por isso, a luta pela soberania financeira e informacional não é apenas técnica, mas profundamente política: ela redefine quem controla as mediações que estruturam a sociedade.
O passado nunca mais

A aplicação da sanção Magnitsky contra Alexandre de Moraes não foi apenas um ataque pessoal. Funcionou como um sinal de alerta: um ministro de um país soberano pode ser atingido por uma engrenagem financeira global que escapa ao controle nacional. O recado é claro, não se trata apenas de disputas jurídicas ou diplomáticas, mas de uma vulnerabilidade estrutural.
O Brasil depende de cartões internacionais, de bandeiras privadas, de redes de pagamento ancoradas no SWIFT e no dólar. Depende também de plataformas digitais estrangeiras para fazer circular suas informações, debates públicos e até mesmo decisões institucionais. O episódio mostrou que o país está preso a uma arquitetura que não construiu e não controla.
Esse aprisionamento é o que alguns chamam de castelo tecno-feudal: uma estrutura onde corporações funcionam como senhores de pedágio, cobrando tributos invisíveis em cada compra, em cada clique, em cada gesto da vida social. O cartão, o algoritmo e a sanção são diferentes faces do mesmo processo: a transformação das mediações, dinheiro e informação, em instrumentos de disciplina e extração.
Esse sistema ainda funciona, mas de maneira regressiva. Ele concentra privilégios em poucos, precariza milhões de trabalhadores que mantêm a máquina rodando, impõe custos invisíveis à população e sujeita países inteiros a chantagens externas. É o que Marx chamaria de um sintoma mórbido: uma forma social que sobrevive, mas já não responde às necessidades coletivas, funcionando mais como obstáculo do que como motor.
O desafio do presente é romper esse ciclo. O Pix e a proposta de um Pix Global dos BRICS, assim como a Nuvem Soberana e as políticas de proteção de dados, são experimentos de reconstrução de mediações públicas. São tentativas de devolver ao espaço coletivo aquilo que o capital transformou em fonte privada de lucro.
Nada disso é simples. Bancos e big techs resistem porque perderiam poder e renda. Mas a disputa já não pode ser adiada: soberania financeira e soberania informacional caminham juntas. Um país que não controla nem o fluxo do seu dinheiro, nem o de seus dados, permanece vulnerável.
Expor a engrenagem é apenas o primeiro passo. Permanecer reagindo pontualmente a sanções, tarifas ou bloqueios significa continuar prisioneiro do castelo. O que está em jogo é transformar a crítica em projeto, e esse projeto precisa ser coletivo, democrático e soberano.
O passado, marcado por dependência e submissão, não pode mais servir de guia. O velho está morrendo, e o novo sempre vem. A questão é se teremos coragem de acelerar o nascimento de um sistema em que os trilhos do dinheiro e da informação estejam a serviço da maioria, e não de poucos. Nesse interregno, o perigo é confundir o novo com uma velha roupa colorida, porque o que parece ruptura pode ser apenas a repetição disfarçada da dependência.
Black bird, assum-preto
O pássaro negro é um símbolo que atravessa fronteiras de tempo e cultura. Em Edgar Allan Poe, o corvo surge como figura sombria que retorna sempre, lembrando que não existe esquecimento possível para certas dores. Em Luiz Gonzaga, o assum preto é a denúncia de uma violência que cega o pássaro para arrancar dele um canto mais forte. Em ambos os casos, trata-se de vozes que não podem ser silenciadas: o canto imposto pela dor e a memória que insiste em voltar.
É nesse entrelaçamento que se inscrevem os estudos de Reynaldo Aragon e o trabalho do Código Aberto. O que produzimos é alerta, é memória crítica contra o esquecimento imposto por algoritmos, bancos e castelos de poder que operam em silêncio. Os textos desvendam a engrenagem invisível das finanças e da informação, mostrando como a sociedade é condicionada por pedágios que muitos sequer percebem.
O Código Aberto é uma mídia independente, feita sem patrocínios que ditam pauta ou silenciam críticas. Seu compromisso é com a democracia e com a soberania. Como o corvo de Poe, insiste em lembrar: não haverá “nunca mais” se não houver enfrentamento. Como o assum preto, transforma a dor coletiva em canto que denuncia e anuncia.
Esse canto, porém, só se sustenta se houver quem o escute e quem o apoie. O Código Aberto depende da força dos leitores para continuar produzindo análises, denúncias e interpretações que não se rendem ao silêncio. Apoiar o site é permitir que os pássaros negros sigam cantando, contra todas as tentativas de apagamento.
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