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A falácia do cristão de verdade

  • Foto do escritor: Sara Goes
    Sara Goes
  • há 21 horas
  • 8 min de leitura

Como a retórica da pureza espiritual impede que o Brasil enxergue a radicalização cristã que ele mesmo produz



Na noite de 22 de novembro de 2025, poucas horas após o Supremo Tribunal Federal decretar a prisão preventiva de Jair Bolsonaro, os apoiadores do ex-presidente se reuniram em uma vigília convocada por Flávio Bolsonaro diante do condomínio Solar de Brasília, área residencial onde a família mantém endereço na capital federal. Já passava das 21h quando um jovem evangélico chamado Ismael Lopes subiu ao microfone, abriu a Bíblia no livro de Provérbios e leu em voz firme: “Quem cava uma cova cairá nela.” Em seguida, completou: “Bolsonaro deve ser julgado pelas mortes da pandemia.”

A reação foi instantânea. Antes mesmo de terminar a frase, Ismael foi cercado, correu, tropeçou, caiu no asfalto e passou a ser chutado e agredido por bolsonaristas que participavam da vigília. Sua camisa foi rasgada enquanto ele tentava se proteger no chão. Flávio Bolsonaro pediu calma sem convicção e não foi obedecido. Para cessar as agressões, policiais que faziam a segurança do entorno precisaram usar spray de pimenta. Tudo isso ocorreu em um ambiente que se apresentava como noite de oração. No concreto daquela vigília, não havia parábola nem metáfora. Havia cristãos batendo em cristão.

Nas horas seguintes as redes progressistas reagiram proclamando Ismael como “cristão de verdade”, uma leitura automática e sintomática que revela como até setores da esquerda reproduzem o mecanismo da pureza espiritual, o mesmo que tentam denunciar. Essa frase aparece sempre que um grupo que se imagina moralmente elevado comete algo inaceitável. Foi estudada e nomeada há décadas pelo filósofo Antony Flew, que chamou esse fenômeno de Falácia do Verdadeiro Escocês. O exemplo que deu é simples. Um homem lê no jornal que um criminoso inglês cometeu atrocidades e diz que nenhum escocês faria algo tão horrível. No dia seguinte, o jornal noticia que um escocês cometeu crime ainda pior. Em vez de aceitar o erro, o homem responde que nenhum escocês verdadeiro faria tal coisa. Ele resolve a contradição mudando a definição, não ajustando a realidade.

Sempre que um membro do grupo faz algo errado, o grupo é retraçado. O indivíduo é expulso da categoria para que a categoria permaneça pura. No caso cristão, o rótulo cristão vira uma ideia platônica imaculada que não pode ser tocada pelos atos dos cristãos reais. É uma estratégia psicológica de autoproteção. Impede desconforto, evita autocrítica e permite dormir com a consciência tranquila. Mas tem um custo altíssimo.

Quando essa lógica é aplicada ao cristianismo brasileiro contemporâneo, ela impede que se enxergue o que está diante dos olhos. As pesquisas e mapeamentos sobre extrema direita e religião no Brasil mostram que há um ramo cristão politicamente organizado, teologicamente estruturado e tecnicamente profissionalizado, que opera segundo lógicas de guerra espiritual, dominação cultural e cruzada contra inimigos imaginários ou inflados. São estruturas que se apoiam em doutrinas como a Teologia do Domínio, que prega que cristãos devem ocupar as esferas de poder para estabelecer o Reino de Deus antes da volta de Cristo. Esse tipo de leitura encontrou terreno fértil no Brasil, sobretudo dentro de segmentos neopentecostais e do catolicismo ultraconservador, que abandonaram a mediação democrática e adotaram uma visão restauracionista, hierárquica e antipluralista do mundo.


E a Michelle, hein?

Na tarde do domingo em que a prisão preventiva de Jair Bolsonaro foi confirmada, Michelle Bolsonaro estava mais uma vez longe de casa. Em vez de acompanhar o marido ou de assumir qualquer gesto de presença familiar diante da crise, ela se apressou a gravar um vídeo cuidadosamente produzido para as redes do PL Mulher, no qual voltou a apresentar o momento como batalha espiritual, descreveu a prisão como ataque contra o bem e pediu orações por figuras específicas do processo judicial. A encenação, com estética de culto transmitido ao vivo, reforçava a narrativa de que o país atravessava não uma crise política concreta, mas uma guerra invisível entre luz e trevas, uma disputa cósmica que exigia fidelidade absoluta dos fiéis.

Essa postura não surgiu agora. Meses antes, no início de julho, quando Jair Bolsonaro passou a cumprir medidas cautelares após operações da Polícia Federal em sua casa no Jardim Botânico e na sede do PL em Brasília, Michelle já despontava como personagem central do núcleo religioso-político da família. Naquele momento, enquanto o ex-presidente era obrigado a usar tornozeleira eletrônica, tinha restrições de contato e se afastava das redes sociais, aliados como Damares Alves passaram a trabalhar publicamente para moldar Michelle como a nova porta-voz do bolsonarismo. Reuniões na própria casa do casal renderam discursos inflamados sobre o nascimento de uma “líder nacional”, numa tentativa explícita de transformar a imagem doméstica da ex-primeira-dama em arsenal político. Nada disso era espontâneo. Era construção.

E essa construção tem história. Michelle passou anos consolidando para si o lugar de sacerdotisa laica do movimento bolsonarista. Sua trajetória combina participação ativa em cultos, alianças com movimentos religiosos ultraconservadores, protagonismo em atos públicos de guerra espiritual e presença constante em eventos que misturam política com devoção. Desde o ato da Avenida Paulista, em 2024, quando iniciou a mobilização com uma oração e afirmou que “o Brasil pertence ao Senhor”, passando por sua defesa de uma “política feminina, não feminista” e pela convocação para que cristãos se posicionassem contra a separação entre Igreja e Estado, Michelle vem operando como síntese de um projeto teocrático disfarçado de moralidade familiar. Essa estética devocional, que parece suave e maternal, funciona na prática como mecanismo de disciplinamento político.

Nesse sentido, sua figura não apenas compõe o ecossistema da radicalização cristã, mas o organiza, lhe confere rosto e o reveste de uma estética de santidade que legitima a violência teológica que se segue. E, entre a engrenagem da radicalização e o truque da falácia, Michelle atravessa tudo ilesa, blindada pelo próprio imaginário que ajuda a produzir. Por ser ao mesmo tempo parâmetro de pureza para os de dentro e prova de hipocrisia para os de fora, ela se converte em figura inatingível: crítica alguma a alcança sem ser reinterpretada como ataque espiritual, e toda contradição que a envolve é automaticamente apagada pelo manto da devoção que ela encena. Essa imunidade simbólica, que a coloca acima do erro e além da responsabilização, é precisamente o que faz de sua presença um instrumento tão eficaz na consolidação da narrativa fundamentalista.

Se Bolsonaro estruturou um imaginário bélico e viril, Michelle operou o imaginário devocional, organizando corações onde ele organizou fúria. Seu papel dentro do bolsonarismo é o de mediadora espiritual, aquela que unge o mito, que sacraliza a narrativa, que fornece a gramática religiosa pela qual o conflito político se apresenta como cruzada. É ela quem transforma adversários em demônios, derrotas eleitorais em provações espirituais e investigações judiciais em perseguição satânica. E é justamente essa teologia encarnada que prepara o terreno para agressões como a sofrida por Ismael Lopes.

Mas há uma camada adicional. Michelle é também peça-chave do mecanismo da Falácia do Verdadeiro Cristão. Para os de dentro, ela funciona como régua moral, referência estético-devocional do que seria a “cristã verdadeira”: submissa mas poderosa, doce mas ofensiva, piedosa mas implacável. É ela quem garante ao grupo a sensação de pureza espiritual. Para os de fora, no entanto, essa mesma estética revela a contradição profunda entre discurso e prática. Michelle encarna o papel de falsa cristã, não no sentido espiritual, mas no sentido político: alguém que reivindica o manto da fé para justificar violência simbólica, demonização de adversários e adesão tácita a projetos autoritários. O contraste entre a narrativa de oração e a defesa de estruturas de ódio expõe o lugar exato onde a falácia opera.

Michelle é, portanto, personagem central da lógica que absolve o grupo e acusa o mundo. Ela oferece aos fiéis a sensação de que permanecem no campo do bem, mesmo quando produzem ou justificam agressões. E oferece aos adversários a prova viva de como a pureza retórica pode servir de cobertura para práticas profundamente antievangélicas. Nesse sentido, sua figura não apenas compõe o ecossistema da radicalização cristã, mas o organiza, lhe confere rosto e lhe dá uma estética de santidade que legitima a violência teológica que se segue.


Evanjegues versus Esquerdosantos

A política, dentro dessa moldura, deixa de ser administração da vida comum e se torna batalha cósmica. O adversário vira inimigo. O inimigo vira personificação do mal. E no imaginário da guerra espiritual, o mal não tem direitos, não tem legitimidade e não deve ser debatido. Deve ser combatido. Esse é o ponto central. Quando o oponente é descrito como maligno, qualquer violência contra ele se torna aceitável. A agressão cometida contra Ismael Lopes não pode ser separada desse clima teológico de confronto, tampouco da forma como Michelle ajuda a estabilizar e difundir essa imaginação religiosa onde a política se converte em campo de batalha moral.

A extrema direita cristã brasileira articula religião e política de modo profundo. Não é mero uso instrumental da fé e sim uma fusão. As pesquisas mostram que essa fusão está presente em cultos, redes de TV, templos, cursos digitais, influenciadores, grupos de WhatsApp e no próprio Congresso, especialmente na Frente Parlamentar Evangélica e na articulação da Bancada Cristã. É uma ecologia inteira de poder discursivo, institucional e digital que se retroalimenta. E é exatamente nesse ecossistema que Michelle se torna figura central. Não como exceção, mas como síntese. Enquanto Bolsonaro fornece a espada, Michelle fornece o altar.

É por isso que a frase cristão de verdade não faz isso é tão destrutiva. Ela elimina da análise justamente os casos que precisam ser estudados. Impede que se compreenda o fenômeno da radicalização cristã como fenômeno cristão. E isso tem dois efeitos colaterais graves. Primeiro, isola os cristãos democráticos, que passam a ser tratados como exceções irrelevantes. Segundo, entrega à extrema direita o monopólio simbólico da identidade cristã, porque ninguém disputa o rótulo. Se o cristianismo é sempre absolvido, ninguém precisa disputá-lo. Assim, quem grita mais alto e quem se organiza melhor acaba definindo o que ser cristão significa no imaginário público. E ninguém grita mais alto, nem com mais apelo emocional, do que Michelle no tabernáculo político da extrema direita.

A falácia protege a identidade, mas destrói o debate. Ela preserva a pureza abstrata da fé, mas entrega a fé concreta aos radicais. Ela impede que se fale de cristianismo como campo plural, cheio de tensões, contradições e disputas. Ela apaga movimentos cristãos que trabalham pela democracia, pela justiça social, pela defesa de direitos humanos, pela separação entre Igreja e Estado. E faz isso porque qualquer tentativa de discutir o cristianismo em sua materialidade é imediatamente desviada com um truque retórico que redefine o que é ser cristão.

Se todo cristão violento é definido automaticamente como não cristão, então nunca será possível entender por que há tantos cristãos violentos. A categoria é esvaziada antes de ser estudada. A pergunta é neutralizada antes de ser feita. E o problema político cresce protegido pela cortina da pureza teológica.

Superar essa falácia não é atacar a fé. Ao contrário. É o passo necessário para que cristãos democráticos, progressistas ou simplesmente comprometidos com direitos humanos possam retomar o espaço público com legitimidade. É reconhecer que existem muitos cristianismos no Brasil, e que entre esses cristianismos existe um que se organizou politicamente em direção à intolerância e ao autoritarismo. Esse reconhecimento não destrói a fé e a salva da hegemonia dos radicais. E, ao nomear Michelle Bolsonaro como símbolo dessa vertente devocional e militante, desmonta a camuflagem de pureza que protege estruturas inteiras de violência.

A pergunta final é simples. Como enfrentar um fenômeno que se recusa a ser nomeado? A resposta é igualmente simples, embora dolorosa. É preciso abandonar a fantasia de que a fé é sempre mais bonita do que os fiéis. E, ampliando a lente, abandonar também a fantasia de que a política é mais virtuosa do que seus militantes. Há momentos em que uma militante progressista pratica racismo ou elitismo, e imediatamente se cria o rótulo de que ela não representa “a esquerda de verdade”. O mesmo acontece quando um homem de esquerda é violento: ele é instantaneamente convertido em exceção, um “falso esquerdista”, para que o grupo não tenha de encarar o problema que produz. Esse mecanismo é idêntico ao que absolve cristãos violentos do rótulo cristão. Em vez de admitir a contradição, redefine-se a categoria. É preciso aceitar que cristãos cometem violências, que progressistas cometem violências, e que nenhum campo é imune ao erro. Não para condenar a fé nem a esquerda em bloco, mas para libertá-las de suas próprias sombras. A democracia depende disso, e os cristãos democráticos, assim como os progressistas democráticos, também.

 
 
 

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