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A ferrovia que incomoda império

  • Foto do escritor: Rey Aragon
    Rey Aragon
  • 21 de jul.
  • 11 min de leitura

Por que a Bioceânica é o novo Nord Stream II


Quando a Alemanha se aproximou demais da Rússia pelo fundo do mar, o Nord Stream II explodiu. Agora, o Brasil se aproxima da China por sobre a terra — e os trilhos da Ferrovia Bioceânica já estremecem o império. O comércio virou guerra. E a América Latina pode ser o próximo alvo.


O som que precede a explosão

Há momentos na história em que uma simples infraestrutura desencadeia terremotos geopolíticos. Em setembro de 2022, o mundo assistiu, entre perplexidade e silêncio cúmplice, à explosão do gasoduto Nord Stream II no fundo do Mar Báltico. Embora governos e grandes veículos da imprensa tenham tratado o episódio com ambiguidade — ou deliberada omissão —, os sinais eram claros: a integração energética entre Rússia e Alemanha representava um risco inaceitável à hegemonia dos Estados Unidos sobre a Europa. Quando o gás começou a correr em direção ao Ocidente, as sirenes imperiais soaram. O recado foi dado com dinamite: certas conexões não serão toleradas.

Três anos depois, o Sul Global emite seu próprio sinal. Em junho de 2025, durante a Cúpula dos BRICS realizada no Rio de Janeiro, um novo acordo foi posto sobre a mesa — e ele também tem trilhos. Trata-se do avanço definitivo nas negociações para a construção da Ferrovia Bioceânica Brasil–Peru, uma rota continental financiada pela China que pretende conectar o Atlântico ao Pacífico sem passar pelos filtros geoeconômicos de Washington. O projeto, silenciosamente articulado há anos, foi alçado ao centro do tabuleiro geopolítico: se a América do Sul conseguir operar sua logística interoceânica de forma soberana, rompe-se o último cordão umbilical que ancora o continente à doutrina Monroe.

No exato dia seguinte ao encerramento da cúpula, Donald Trump, já em campanha declarada para 2026, impôs tarifas agressivas contra produtos brasileiros, sob o pretexto de retaliar um governo “comunista” e “hostil ao livre mercado”. Como sempre, o pretexto é uma cortina de fumaça. O verdadeiro alvo não era Lula, nem o Partido dos Trabalhadores. Era o BRICS. Era o movimento de aproximação entre América Latina e Ásia. Era a ferrovia. Era o trilho.

A analogia se impõe com crueza: se o Nord Stream foi dinamitado para preservar a dominação sobre a Europa, a ferrovia bioceânica começa agora a ser atacada por todos os flancos comercial, digital, diplomático e informacional — para que não se consolide como o canal logístico de uma nova ordem multipolar. A história se repete, não como farsa, mas como padrão. Toda rota soberana é tratada como ameaça. E toda ameaça ao império será sabotada.


O que foi o Nord Stream II e por que ele teve que explodir

O Nord Stream II não era apenas um gasoduto. Era uma aliança silenciosa, subterrânea, pressurizada a 150 atmosferas e com potencial para reconfigurar a ordem energética global. Com 1.230 quilômetros de extensão, o projeto ligava diretamente os campos de gás natural da Rússia à costa da Alemanha pelo fundo do Mar Báltico. A promessa era simples, mas devastadora para a lógica imperial: energia barata e contínua para a Europa, sem passar por rotas controladas pelos Estados Unidos ou seus satélites militares.

A infraestrutura foi concluída em 2021, após anos de resistência de Washington, que tentou barrá-la com sanções e chantagens diplomáticas. Para o establishment americano, o gasoduto simbolizava algo mais perigoso do que o gás russo: a autonomia estratégica da Alemanha. E, por extensão, o risco de uma Europa emancipada da tutela atlântica, capaz de negociar diretamente com Moscou em termos energéticos, comerciais e políticos.

A explosão ocorrida em setembro de 2022, logo após o início do conflito na Ucrânia, foi o ponto sem retorno. O Nord Stream II foi destruído em uma operação clandestina no Mar Báltico, com precisão cirúrgica. Os Estados Unidos culparam a Rússia, a Rússia culpou os Estados Unidos, e a Alemanha — a principal interessada — manteve um silêncio desconcertante. O jornalista investigativo Seymour Hersh, vencedor do Pulitzer, publicou uma apuração devastadora em fevereiro de 2023, na qual afirmava com base em fontes do governo americano que a operação fora coordenada pela CIA, com apoio da Noruega, sob ordens diretas da Casa Branca. O governo Biden negou. O silêncio europeu gritou.

O que importava já estava consumado: a ligação energética direta entre Rússia e Europa fora rompida à força, deixando o continente mais dependente do gás liquefeito importado dos EUA e mais vulnerável à lógica de contenção militar da OTAN. A Alemanha recuou. A Rússia retaliou. E os EUA comemoraram discretamente a manutenção do monopólio logístico sobre o Velho Continente.

O Nord Stream II foi dinamitado por representar um risco existencial à hegemonia dos Estados Unidos. Ele simbolizava um futuro de integração eurasiática, de comércio sem vigilância, de acordos bilaterais fora do guarda-chuva da segurança americana. Sua existência já era uma provocação. Sua destruição, um aviso.

Agora, em 2025, a história ecoa do outro lado do globo. A Ferrovia Bioceânica — ligando Brasil e Peru com financiamento chinês — está prestes a cumprir o mesmo papel que o Nord Stream II pretendia exercer na Europa: o de viabilizar uma autonomia estrutural, comercial e geopolítica de longo prazo. E, como antes, o império já prepara seus explosivos.


O BRICS, o Sul Global e a Cúpula do Rio: o que está em jogo

O Rio de Janeiro foi, em junho de 2025, o epicentro de uma movimentação tectônica no sistema internacional. A Cúpula dos BRICS, mesmo sem a presença física de Xi Jinping e Vladimir Putin, consolidou uma guinada histórica rumo à arquitetura multipolar do século XXI. Ao contrário do que muitos analistas ocidentais quiseram sugerir, a ausência dos líderes da China e da Rússia não diminuiu o peso da reunião — ao contrário, sinalizou maturidade institucional e coesão estratégica. Foi, sem dúvida, a cúpula mais importante do grupo desde sua fundação.

Em um gesto de independência simbólica e real, os BRICS aprovaram uma série de medidas que desafiam diretamente o eixo dolarizado do comércio global. Entre elas:

  • A autorização oficial para o estudo e construção da Ferrovia Bioceânica Brasil–Peru, com financiamento chinês e apoio técnico brasileiro e peruano;

  • A ampliação do uso das moedas locais nos fluxos comerciais internos, fortalecendo o sistema R5 e reduzindo a dependência do dólar;

  • Avanços concretos no Tropical Forests Forever Facility (TFFF), um fundo global para preservação das florestas tropicais liderado por Brasil, Indonésia, Congo e Índia — com promessas de aporte inicial superior ao Green Climate Fund da ONU;

  • Negociações iniciais para a criação de um sistema de pagamentos soberano BRICS, utilizando blockchain e integração com moedas digitais estatais (CBDCs).

Tudo isso aconteceu fora da órbita de Washington, sem a chancela do Banco Mundial, da OTAN ou do FMI. E foi isso que acendeu o alarme.

A aproximação entre Brasil, Índia e China num eixo logístico e comercial independente — atravessando a América do Sul, ignorando o Canal do Panamá e eliminando intermediários financeiros ocidentais — foi lida nos bastidores diplomáticos norte-americanos como uma ruptura inaceitável. A retaliação foi quase imediata: no dia seguinte ao encerramento da cúpula, Donald Trump anunciou tarifas unilaterais contra produtos brasileiros, acusando o governo Lula de conluio com a China e de hostilidade comercial. Mas o subtexto era outro.

Trump não atacava o Brasil por causa do Lula. Atacava o BRICS por causa do mundo que ele ameaça construir. Um mundo onde a logística do comércio não passa necessariamente por bases militares norte-americanas. Onde a moeda hegemônica pode ser substituída. Onde o Sul Global define suas rotas, seus portos, seus fluxos — e seus aliados.

A Cúpula do Rio foi um marco porque deixou claro que o BRICS não é mais apenas um fórum simbólico. É, agora, um organismo estratégico de disputa concreta por rotas, moedas, dados, alimentos, energia e futuro.

A Bioceânica é o trilho que corta o império.


A Ferrovia Bioceânica: ameaça logística ao status quo

A Ferrovia Bioceânica é, na superfície, uma obra de engenharia: trilhos, dormentes, túneis, locomotivas. Mas, para Washington, ela representa algo muito mais perigoso — uma reconfiguração radical da geografia do poder. Trata-se de um corredor interoceânico terrestre que ligará o porto de Santos (Brasil), no Atlântico, ao porto de Ilo (Peru), no Pacífico, cruzando os estados do Mato Grosso do Sul, Rondônia e Acre, até os Andes. Um traçado de mais de 4.000 quilômetros, capaz de encurtar em até 30% o tempo e o custo do transporte de commodities e manufaturados entre a América do Sul e a Ásia.

Ao contrário das rotas tradicionais que dependem do Canal do Panamá — historicamente sob forte influência dos EUA — ou dos portos do Golfo do México e da Flórida, a Bioceânica contorna toda essa infraestrutura sob vigilância imperial. E esse é o ponto central.

Ela não é apenas uma ferrovia: é uma alternativa logística soberana, financiada pela China, desenhada com engenharia brasileira e sul-americana, voltada para a integração do continente e para o comércio direto com a Ásia. Em outras palavras, um bypass da hegemonia.

E mais: ela oferece à América do Sul o que o Nord Stream oferecia à Europa — uma conexão direta e estratégica com uma grande potência mundial fora da tutela de Washington. Mas com uma diferença crucial: enquanto o gasoduto dependia da estabilidade geopolítica da Rússia, a ferrovia nasce em plena era BRICS, com suporte diplomático multilateral e alinhamento econômico entre Brasil, China, Peru e Bolívia.

A magnitude do projeto é tamanha que ele ameaça não apenas o status logístico dos EUA, mas também seus satélites na região. Com a ferrovia em operação, as exportações brasileiras de grãos, carnes, minerais e manufaturas poderão chegar aos mercados chineses e do sudeste asiático sem passar por portos norte-americanos ou zonas de controle naval da OTAN. O mesmo vale para importações estratégicas — desde fertilizantes até semicondutores.

Mais ainda: a bioceânica fortalece o “Arco do Pacífico Sul”, conectando o Brasil com a Aliança do Pacífico (Peru, Chile, Colômbia e México), ao mesmo tempo, em que abre portas para a presença chinesa em bases logísticas vitais da costa oeste sul-americana. É a realização concreta do que os estrategistas norte-americanos sempre temeram: um continente articulado por dentro, por trilhos, e não mais fragmentado pelas fronteiras do subdesenvolvimento induzido.

A ferrovia, portanto, não ameaça apenas a geografia comercial dos EUA — ela desafia o próprio princípio da doutrina Monroe, que desde o século XIX estabelece que a América Latina deve orbitar em torno de Washington. Romper com essa órbita, ainda que por trilhos, é provocar a fúria do centro.


Os EUA reagem: o tarifaço de Trump e o ataque à soberania digital

A resposta de Washington não tardou. Em menos de 48 horas após o encerramento da Cúpula dos BRICS no Rio de Janeiro, Donald Trump — em campanha aberta para retomar a Casa Branca em 2026 — anunciou um pacote tarifário contra produtos brasileiros, especialmente do setor agroexportador. A medida, apresentada como um suposto "alerta" contra o “populismo lulista” e a “submissão do Brasil à China”, visava, na verdade, sabotar o novo ciclo de integração sul-americana e punir a ousadia do BRICS.

As tarifas foram apenas a superfície do ataque. Em paralelo, começou a operar uma ofensiva informacional coordenada — protagonizada por think tanks, ex-agentes de inteligência, influenciadores ligados à extrema-direita global e setores do bolsonarismo. A mensagem era clara: o Brasil estava “se vendendo ao comunismo chinês”, o BRICS era uma “ameaça à liberdade” e a ferrovia bioceânica, um “cavalo de Troia geopolítico”.

Dentro do Brasil, as big techs passaram a bloquear conteúdos, desmonetizar canais progressistas, frear o alcance de publicações críticas e tolerar a rearticulação de redes bolsonaristas — tudo sob o pretexto de “neutralidade algorítmica”. O que estava em curso era um novo tipo de sabotagem: um ataque à infraestrutura da opinião pública, que visa minar a legitimidade de qualquer projeto de soberania que nasça fora da tutela do Ocidente.

Esse movimento não é novo. Desde o escândalo Snowden, sabe-se que as redes sociais e plataformas digitais operam como braços civis do complexo militar-informacional norte-americano. O que muda agora é a intensidade e o alvo: o Brasil se tornou laboratório e campo de batalha da guerra híbrida do século XXI, onde o trade, a tecnologia e o discurso se tornam armas de contenção.

Além do tarifaço, Washington sinalizou insatisfação nos bastidores diplomáticos. Reportagens internacionais especularam que empresas norte-americanas do setor de defesa e cibersegurança pressionaram o governo Biden a rever contratos com o Brasil, acusando o país de “dupla lealdade” após sua reaproximação estratégica com Rússia e China.

Na prática, o que se vê é a reativação da velha lógica de dominação hemisférica: quem ousa traçar trilhos fora do mapa imposto será taxado, censurado, sabotado e, se necessário, derrubado.

Não é por Bolsonaro que Trump ataca. Nem por soja, nem por fertilizantes. O alvo é o eixo que se desenha entre Rio, Pequim e Lima — um eixo que ameaça, pela primeira vez, oferecer ao Sul Global uma rota fora do labirinto ocidental.


A lógica da sabotagem imperial: quando o comércio se torna guerra

Na cartografia da dominação, trilhos, cabos, tubulações e satélites são tão estratégicos quanto tanques ou mísseis. A história mostra que nenhum império tolera rotas que ele não possa controlar. E, quando essas rotas se tornam reais — como o Nord Stream II na Europa ou a Ferrovia Bioceânica na América do Sul — a resposta não é diplomática, é bélica. Mesmo que sem bombas aparentes.


A lógica imperial dos Estados Unidos está construída sobre três pilares invisíveis, mas eficazes:

1 - Controle das rotas (logística global, canais, oceanos);

2 - Controle da moeda (dólar como mecanismo de dependência e punição);

3 - Controle da informação (narrativas, plataformas, subjetividades).

Toda nação ou bloco que ameaça essa trindade é imediatamente enquadrado como inimigo. E a resposta se dá com instrumentos assimétricos: sanções, lawfare, sabotagem, desinformação, terrorismo de Estado disfarçado de diplomacia.

No caso da explosão do Nord Stream II, a mensagem foi inequívoca: “Vocês não podem negociar energia sem nossa supervisão.”

No caso do tarifaço contra o Brasil e da operação cognitiva que se seguiu à Cúpula do BRICS, o recado foi o mesmo, adaptado ao contexto latino-americano: “Vocês não construirão trilhos de autonomia sem pagar o preço.”

A sabotagem torna-se, portanto, uma forma de guerra preventiva contra a soberania. Não se espera mais que países desafiem abertamente a hegemonia; basta que desenhem um futuro possível fora dela para que sejam atacados. Trata-se de impedir que o mundo mude — antes que ele tenha tempo de perceber que pode mudar.

É também nesse sentido que o ataque à regulação das big techs no Brasil se inscreve no mesmo movimento. O que está em jogo é a capacidade de os países controlarem seus dados, suas comunicações, seus algoritmos — e, com isso, suas democracias. E isso, para o império, é inadmissível.

Assim como o Nord Stream II jamais foi só um gasoduto, a ferrovia bioceânica jamais será apenas uma linha férrea. Ambas são artérias de um mundo que deseja respirar sem respiradores alugados. Ambas são símbolos de um desejo perigoso: o desejo de não depender. E, como ensina a história, todo desejo de independência tem seu preço — e será sabotado antes que se torne realidade.


Conclusão: Da explosão ao trilho, o traçado do futuro

Em 2022, a explosão submersa do Nord Stream II marcou uma virada silenciosa na história contemporânea: o momento em que os Estados Unidos declararam, sem declarar, que o comércio também é guerra — e que a paz só é tolerada quando serve aos seus interesses. Aquela dinamite no fundo do mar europeu era também um aviso ao planeta: a hegemonia não se debate, se impõe; e a autonomia, quando surge, será afogada antes que emerja.

Em 2025, os trilhos da Ferrovia Bioceânica começam a ser desenhados com o mesmo peso histórico. Desta vez, não, no fundo do mar, mas sobre a terra vermelha da América Latina. Não com explosivos, mas com aço, concreto e diplomacia. Não para dividir continentes, mas para uni-los. E, mais uma vez, o império reage. Com tarifas. Com algoritmos. Com narrativas.

Mas talvez já seja tarde.

Porque diferente do Nord Stream, que ligava apenas dois países, a ferrovia une povos, territórios, lutas e esperanças. Ela não atravessa só fronteiras geográficas — atravessa a doutrina Monroe, a submissão econômica, o negacionismo logístico e o complexo de inferioridade continental. Ela é o traçado de um futuro possível. E isso, nem Trump, nem Biden, nem CIA, nem OTAN poderão dinamitar.

É por isso que este artigo não é apenas uma comparação entre um gasoduto e uma ferrovia. É uma declaração: o Brasil não será o cano que vaza, mas o trilho que conduz.

O BRICS não é uma aliança de conveniência, mas uma construção geopolítica do tempo longo.

E a América Latina não é mais um quintal. É um campo fértil de rotas, redes e resistências.

Se os explosivos da guerra serviram para calar o gás, que sirvam agora para nos lembrar que o barulho da soberania não será mais abafado. Ele seguirá pelos trilhos, pelos rios, pelas fibras, pelos megabytes e pelas ruas. Não há mais retorno à obediência.

Porque a ferrovia bioceânica é, sim, o novo Nord Stream II.

Mas desta vez, ela está sobre a terra. E nós, sobre ela.

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