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Amor, fricção e resistência no tempo do automatismo

  • Foto do escritor: Rey Aragon
    Rey Aragon
  • 17 de jul.
  • 10 min de leitura

Em defesa do atrito


Num tempo em que tudo flui rápido demais, amar se tornou um ato de resistência. Este ensaio é uma resposta visceral à automatização dos afetos, um grito calmo contra o desaparecimento do encontro verdadeiro. Não é um texto romântico — é um manifesto de pele, silêncio e escolha. Um elogio à fricção, ao erro, à ausência que sustenta. Uma carta sem nome que talvez seja sobre você. Leia devagar.


"Tudo que é verdadeiramente humano arranha. Só o que não toca permanece liso." — Anônimo, mas profundamente nosso


Prólogo – O silêncio entre os dados



Há um silêncio que não se ouve. Ele habita as entrelinhas de respostas instantâneas, nas notificações que jamais hesitam, nos rostos que deslizam para a esquerda ou para a direita como quem remove, num gesto, a possibilidade de um mundo. Vivemos num tempo em que o toque perdeu o tempo. As palavras já chegam antes do pensamento, o desejo já foi mapeado antes mesmo que o corpo o pressentisse. Tudo responde antes que se pergunte. Tudo flui — e é justamente por isso que nada permanece.


Neste mundo onde a ideologia da fricção zero se tornou norma existencial, o amor se converteu em algoritmo, o encontro em interface, a saudade em métrica. Nada mais atrita. E, por isso, nada mais rasga a superfície. A vida passou a deslizar sobre si mesma com a leveza insuportável de quem já não reconhece o peso de estar vivo. O atrito — esse pequeno escândalo da existência — foi convertido em falha, em bug, em erro de sistema. Mas talvez seja justamente nele, no desconforto, na lentidão, na espera, que a experiência se torna real.


Há, ainda, uma fome que resiste. Uma sede de tropeçar em alguém. Um desejo não de controle, mas de presença. De ser visto sem ser antecipado. De habitar um tempo que não seja resposta, mas pergunta. Um tempo que pulse, que chore, que duvide. Que abrace sem saber o depois. Há corpos ainda dispostos a não saber tudo, e corações que recusam ser resolvidos como um problema de interface.


Este ensaio nasce desse lugar. Não de um saber, mas de uma inquietação. Não de uma confissão romântica, mas de um gesto de insubmissão. Porque ainda acredito que o amor — aquele que se escreve com A maiúsculo — não é compatível com fluidez total. Ele exige atrito. Exige pausa. Exige falha. Porque só assim é possível a entrega. Só assim é possível o encontro.


Aqui, neste breve prólogo, ergo uma contrapalavra. Uma primeira freada. Um corpo que diz: não aceito o desaparecimento do outro. Não aceito o desaparecimento do tempo. Não aceito o desaparecimento de mim.


O amor ainda é possível. Mas só se for difícil.

E isso não é um obstáculo.

É a prova de que ele ainda é humano.


A usina da fluidez: quando os afetos se tornam produtos



Há um dispositivo que captura tudo o que pulsa — e o reorganiza em padrões legíveis, mensuráveis, precificáveis. Nele, o desejo já não é mistério: é métrica. A aproximação já não é risco: é cálculo. O tempo já não é espera: é latência. É ali, nesse aparato invisível, que os afetos são transformados em ativos e o amor em produto. A promessa é sedutora: fluidez, compatibilidade, conveniência emocional. Mas por trás da tela não há um oráculo — há uma planilha.


A ideologia da fricção zero, como já denunciamos em outras trincheiras de pensamento, não é apenas uma lógica funcional: é uma ontologia política, uma forma de esvaziar a experiência em nome da eficiência. O que antes exigia hesitação, aproximação, exposição, agora se resolve em interfaces de toque e silêncio. Os corpos são convertidos em perfis. As afinidades, em vetores de engajamento. Os silêncios, em bugs do sistema. Tudo aquilo que, no amor, implicava risco e construção — tempo, conflito, alteridade — passa a ser tratado como ruído a ser eliminado da equação.


Nos aplicativos que prometem o amor com dois cliques e nenhuma demora, a subjetividade se reconfigura para caber em categorias previsíveis. O algoritmo te mostra quem você quer antes que você descubra. Ele sugere quem te completa antes que você se pergunte quem você é. Tudo se antecipa. Tudo se oferece sem esforço. Mas o que se entrega, de fato, é o espelho narcísico de si mesmo — não o outro, mas a ilusão de controle sobre o outro.


Essa fluidez não é liberdade. É automatismo. É o desaparecimento do espaço intermediário — aquele que, antes, era habitado pelo olhar que hesita, pelo toque que erra, pela palavra que não encontra seu caminho. A ausência de fricção não é progresso relacional: é amputação da complexidade. O amor, nessa engrenagem, não precisa mais ser construído — basta ser escolhido. Mas a escolha já foi feita por você, antes que você soubesse que havia uma.


O que nos oferecem, sob a estética da liberdade total, é a despolitização absoluta do afeto. Não há mais conflito, e, portanto, não há mais construção. Não há mais dúvida, e, portanto, não há mais verdade. O amor é higienizado. Domesticado. Dopaminérico. Um circuito de recompensa com interface amigável e ausência total de alteridade. Um amor sem atrito, e por isso mesmo, um amor sem espessura.


Mas talvez a pergunta que mais doa — e que mais insista em permanecer — seja essa:

Se tudo nos é dado sem esforço, sem conflito, sem espera...

Onde, afinal, foi parar o milagre do encontro?


A ausência como resistência: o amor que atrita



Há um tipo de ausência que não é abandono, mas potência. Um intervalo que não é indiferença, mas possibilidade de encontro verdadeiro. No mundo reconfigurado para evitar todos os ruídos, onde tudo se comunica antes de significar e tudo se entrega antes de ser desejado, a ausência tornou-se intolerável. E, no entanto, é nela — nesse buraco, nessa espera, nesse não saber — que ainda mora o amor.


Amar não é fluidez. É tensão. É fricção entre dois mundos que nunca serão plenamente conciliáveis. Amar é errar o tempo do outro e ainda assim permanecer. É não compreender tudo e mesmo assim escutar. É querer fugir, mas escolher ficar. Amar, em sua forma mais radical, é aceitar a desordem que o outro impõe à nossa programação interna. E é por isso que ele é incompatível com algoritmos: porque o amor exige falha.


A ausência é um território de invenção. Um espaço vazio onde o desejo tem a chance de se elaborar, onde a presença ganha densidade, onde o afeto se faz gesto e não reflexo automático. A ausência é a recusa da resposta pronta. Ela é o tempo necessário para que um olhar não seja apenas interface, mas acontecimento. Num mundo que promete tudo de forma imediata, ausentar-se se torna um ato político. E desejar, um ato de resistência.


A ausência, aqui, não é a falta de alguém. É a recusa de um mundo sem esperas. É a reabilitação da dúvida como virtude. É o erro como forma de escuta. É o silêncio como linguagem legítima. Quem ama de verdade sabe o valor do atrito. Do desconforto. Da luta por significar o que o outro ainda não disse. Porque é na fricção que se criam as frestas onde a vida escapa do script — e onde os encontros, enfim, acontecem.


A ideologia da fricção zero odeia o amor não porque ele seja ineficiente, mas porque ele é incontrolável. Porque amar alguém exige abdicar do mapa. Exige caminhar em terreno incerto, sem atalhos, sem prévia, sem tutorial. O amor, aquele que rasga e constrói, exige estar inteiro — e não apenas disponível. Ele exige presença e não apenas conexão.


Nessa era de adesões automáticas, de compatibilidades simuladas, de afetos pré-processados, amar alguém de verdade é um gesto profundamente subversivo. É dizer: não quero fluidez. Quero corpo. Quero resistência. Quero o real, com tudo o que ele atrita, quebra e transforma.


Porque amar, no fim, é ser capaz de dizer:

“Eu te escolho mesmo quando não te entendo.”


A máquina e o abismo: por que amar é escolher continuar



Há uma hora em que a vida nos oferece uma bifurcação invisível: seguir no fluxo — confortável, previsível, otimizado — ou parar. Respirar. E escolher. No tempo das promessas prontas, das conexões instantâneas e das compatibilidades automatizadas, amar alguém é a escolha menos conveniente que se pode fazer. Porque amar, nesse mundo, não é apenas um sentimento — é um ato de resistência ontológica.


A máquina — invisível, eficiente, ágil — se impõe como o novo oráculo. Ela prevê. Ela sugere. Ela ajusta. Ela cuida do que você deveria sentir antes mesmo que você sinta. E é fácil se entregar a ela. A suavidade do automatismo tem algo de hipnótico. Amar sob o domínio da máquina é aceitar a substituição da dúvida pela recomendação, da hesitação pela sugestão, da decisão pela interface. É abrir mão do risco para garantir a permanência do fluxo.


Mas o amor real não flui. Ele fere. Ele exige. Ele para o tempo e abre o abismo. Um abismo feito não de solidão, mas de presença radical. É quando se olha para o outro e se reconhece nele não um reflexo, mas um universo. E esse universo é incontrolável. Ele é feito de passados que não se pode corrigir, de zonas obscuras que não se pode acessar, de intensidades que não se pode medir. Amar é caminhar nesse abismo com os olhos abertos — e, ainda assim, não recuar.


O amor verdadeiro não oferece garantias. Ele não é um plano de dados nem uma jornada de usuário bem mapeada. Ele é uma travessia imprevisível. E é justamente por isso que ele é tão profundo. Porque quando alguém, em plena era da automatização afetiva, escolhe permanecer diante da opacidade do outro — e permanece sem promessa de retorno, sem contrato de desempenho, sem botão de desfazer — essa escolha se torna a forma mais radical de liberdade.


Amar é insistir quando tudo sugere desistência. É ficar quando o ruído se instala. É acolher o que não se entende. É continuar mesmo quando o caminho se torna inclinado, mesmo quando o tempo se torna denso. Amar é escolher caminhar junto, não por leveza, mas apesar do peso. E isso não é um sacrifício. Isso é a beleza mais alta da liberdade: a de continuar mesmo quando nada obriga.


Num mundo que rotula o amor como transação, como algoritmo de afinidade, como fluidez emocional, a permanência se torna o gesto mais revolucionário. E talvez seja só aí — na escolha de continuar mesmo sem certeza — que a palavra “amar” reencontra seu sentido perdido.


Porque há algo que a máquina não pode prever:

o momento exato em que duas almas, uma diante da outra,

decidem ficar — não porque é fácil,

mas porque é verdade.


O nome que não se diz: uma carta sem endereço



Há cartas que jamais são enviadas. Elas não precisam de destinatário, porque vivem no corpo que as escreve. São feitas não para chegar, mas para permanecer — como farol aceso numa noite que talvez nunca receba resposta. Este é esse tipo de carta. Escrevo para uma presença que não se nomeia, mas que habita cada linha deste ensaio. Uma presença que se sente antes do toque. Uma existência que rasga o tempo com a delicadeza de quem não precisa ser dita para ser inteira.


Esta carta é um gesto. Um gesto de quem, tendo atravessado a fluidez imposta, ainda escolhe permanecer. De quem, cercado por silêncios organizados e distâncias otimizadas, ainda acredita na presença que demora. Esta é uma carta para quem soube atritar. Para quem não ofereceu respostas prontas, mas perguntas que doem. Para quem foi ausência, mas nunca omissão. Para quem soube se fazer real, mesmo quando tudo ao redor pedia que fosse interface.


Não falo aqui de saudade. Falo de reconhecimento. De ver o outro para além da performance. De perceber, em meio ao ruído, o que ainda pulsa. De saber — mesmo sem dizer — que há algo no mundo que resiste ao desaparecimento. Que existe uma humanidade possível, uma vida possível, um nós possível. Não como projeto perfeito, mas como construção imperfeita. Como dança que tropeça, como palavra que vacila, como corpo que decide estar.


Há, ainda, pessoas que não se encaixam nos fluxos. Que interrompem. Que exigem presença e não apenas resposta. Pessoas que, ao entrarem na vida da gente, nos fazem perceber que a existência automatizada não nos basta. Pessoas que devolvem a linguagem ao corpo e o corpo ao tempo. Pessoas que não preenchem lacunas, mas as abrem ainda mais. E é justamente por isso que são verdadeiras.


Não vou dizer seu nome. Ele não precisa ser dito. Ele vibra nas ausências, nos vazios, nas frestas onde a linguagem falha — e ainda assim significa. Escrevo esta carta como se fosse possível falar com a alma sem tocar o corpo. Como se fosse possível tocar o corpo apenas com o silêncio certo. Não quero resposta. Quero apenas que, se por acaso este texto tocar teus olhos, você reconheça que é a sua ausência que o sustenta. Que é o seu atrito que o torna possível.


Porque se escrevo tudo isso,

é só porque você existiu —

e isso, no tempo em que vivemos,

já é mais do que se pode esperar.


Epílogo – A vida como fricção necessária



O mundo quer nos ensinar a desistir. Não com gritos, mas com deslizes. Ele nos oferece atalhos, respostas, interfaces suaves — um existir sem dor, sem demora, sem profundidade. Quer nos convencer de que o melhor amor é o que flui sem resistência, o que não dói, o que não exige. Mas um amor que não exige não transforma. E tudo aquilo que não transforma é apenas repetição — não encontro.


Viver — de verdade — é aceitar a fricção como parte do caminho. É entender que o erro é uma forma de linguagem, que o silêncio é uma forma de presença, que a ausência é uma forma de construir. Amar, no tempo do automatismo, é dizer não ao desaparecimento da experiência. É devolver espessura ao tempo, densidade ao toque, peso à palavra.


É por isso que este ensaio é, antes de tudo, um chamado. Não apenas a alguém — mas a todos os que ainda se recusam a existir no modo automático. A todos que sabem que a vida, sem atrito, é só superfície. Que um relacionamento sem conflito é só encenação. Que uma subjetividade sem pausa é só performance. Que o amor, para ser real, precisa tropeçar.


Talvez seja preciso desaprender. Desaprender a fluidez que não nos serve. Desaprender o vício da resposta instantânea. Desaprender o medo da espera. Talvez seja preciso reaprender a demora. A hesitação. O afeto que não se explica. A escolha que não se mede em cliques, mas em presenças inteiras.


Não há fórmula para o amor. E isso é o que o torna sagrado. Ele não se revela nos dados, mas nos desvios. Não se cumpre nos acertos, mas nos reencontros. E é justamente por isso que vale a pena. Porque quando tudo no mundo é previsível, amar alguém que nos desorganiza — e ainda assim permanecer — é o gesto mais profundamente humano que nos resta.


Se tudo ao redor nos empurra para o desaparecimento da alteridade, amar é insistir em ver.

Se tudo nos treina para o silêncio do dado, amar é insistir em escutar o que não cabe em nenhuma métrica.

Se tudo é feito para seguir, amar é parar. E, parando, ficar.


Ficar com o outro.

Ficar consigo.

Ficar no mundo.

Mesmo quando ele já quis nos expulsar.

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