As veias abertas da floresta
- Redação
- 22 de jul.
- 22 min de leitura

O genocídio Yanomami e a máquina de extermínio no capitalismo amazônico
Este é o texto inaugural de uma série que acompanhará a jornada corajosa das ativistas Sara Vivacqua e Cláudia Ferreira nas terras Yanomami. Com poucos recursos e enfrentando riscos reais, elas decidiram entrar na floresta para escutar, denunciar e resistir. Este primeiro artigo traça uma análise crítica da violência histórica contra o povo Yanomami, marcada pelo avanço do garimpo, pela omissão do Estado e por uma máquina de extermínio que segue operando.
Preâmbulo

Este artigo nasce, também, da coragem. Coragem encarnada em duas mulheres, Cláudia Ferreira e Sara Vivacqua, que neste momento atravessam, com os próprios corpos e quase nenhum apoio institucional, os limites da Terra Indígena Yanomami, um território sob disputa brutal, invadido por garimpeiros ilegais, atravessado por rotas do narcotráfico e vigiado por olhos que matam.
Elas não vão com helicóptero, nem com seguranças, nem com garantias. Vão com cadernos, celulares, câmeras, e um princípio ético inegociável: dar voz a quem está sendo silenciado pelo mercúrio, pela fome e pelas balas. Entrar nesse território hoje não é apenas um ato de solidariedade. É um ato frontal de enfrentamento a um sistema de extermínio que envolve facções criminosas, redes políticas blindadas, agentes do garimpo e parlamentares que mandam matar e continuam impunes.
Denunciar ali é arriscar a vida. Porque não se trata apenas de floresta, trata-se de uma zona de guerra invisibilizada, onde o ouro alimenta esquemas de poder, e a morte é administrada por interesses financeiros e políticos que se protegem com silêncio, blindagem e violência.
O que Cláudia e Sara estão fazendo é raro, urgente e profundamente perigoso. Elas não estão indo por vaidade nem por espetáculo. Estão indo porque sabem que o genocídio Yanomami não acabou, ele apenas mudou de roupa, de estratégia, de linguagem. E enquanto os que matam se reorganizam, as que lutam resistem com a única arma que não pode ser comprada, a verdade.
Este artigo acompanha, amplifica e honra esse gesto. Porque se a floresta está sendo devorada em silêncio, o jornalismo deve ser grito. Um grito que rasgue a blindagem dos poderosos, que confronte os coniventes, que convoque os justos. E que diga, sem meias-palavras, quem denuncia pode morrer, mas quem se cala já está morto por dentro.
Este texto é parte da luta. E cada linha escrita aqui carrega o peso e o risco que Cláudia e Sara decidiram carregar com os próprios passos. Que ele sirva não só como denúncia, mas como escudo, memória e justiça.
Um povo, um abismo

Em pleno século XXI, sob os olhos de satélites, câmeras de alta definição, relatórios internacionais e redes sociais hiperconectadas, um povo milenar agoniza em silêncio dentro da maior floresta tropical do planeta. O genocídio Yanomami não é uma tragédia remota ou um acaso histórico: é uma operação sistemática, prolongada e funcional aos interesses do capital extrativista, da geopolítica energética e da necropolítica racializada que estrutura o Brasil desde a invasão colonial.
Não se trata de um “caso de saúde pública”, nem de “crise humanitária” como prefere dizer a burocracia institucional. Trata-se de uma máquina de extermínio que, sob diferentes formas, cruz, pólvora, retroescavadeira, seringas contaminadas, mercúrio, drones, algoritmos e decretos presidenciais, opera desde o primeiro contato. O que estamos testemunhando, com números tão brutais quanto reais, é o andamento de um projeto de aniquilação: aniquilação de corpos, de mundos, de cosmologias, de futuro.
A cada denúncia ignorada, a cada pista clandestina reativada, a cada criança morta por diarreia ou pneumonia evitável, renova-se o pacto estrutural entre a violência colonial e o capitalismo periférico. Esse pacto não é casual. Ele é funcional. Ele é lucrativo. Ele é, sobretudo, estrategicamente invisibilizado.
A morte dos Yanomami é o efeito colateral planejado de uma engrenagem que transforma floresta em lucro, vida em subproduto, território em ativo financeiro. O genocídio é lento porque precisa parecer inevitável. Precisa parecer fruto do descaso, não da intenção. Precisa parecer improviso, não projeto. Mas um povo inteiro não morre por acaso.
Este artigo é, portanto, um contra-dispositivo. Um instrumento de denúncia, sim mas também de memória histórica, de crítica radical e de convocação ética. Através de uma análise dialética que combina história profunda, realidade material, cosmologia indígena e a leitura crítica do presente, buscaremos compreender e evidenciar que o drama Yanomami não é um erro, é uma engrenagem. E que, para detê-la, não bastam palavras comovidas ou gestos simbólicos. É preciso romper com o modelo que a sustenta.
Aqui, o compromisso é com a verdade, mas não com a neutralidade. Porque diante de um genocídio em curso, a neutralidade é cumplicidade.
A história profunda: o povo, a floresta, a ancestralidade

Antes de serem vítimas, os Yanomami são uma civilização. Antes de serem dados em relatórios, são gente, são mundo, são floresta. E antes de serem ameaçados de extinção, foram, e seguem sendo, um dos mais sofisticados exemplos de convivência radical com o ambiente, com os espíritos, com a comunidade, com o tempo. Para compreender a tragédia que hoje se desenrola sobre seus corpos e territórios, é preciso, antes de tudo, reconhecer a história milenar que carregam. E mais: reconhecer que essa história não é do passado, ela é viva, ela pulsa nas folhas, no barro, no pó do yãkoana, nos cantos que reverberam nos shabonos.
Estudos arqueogenéticos e linguísticos apontam que os Yanomami descendem de linhagens humanas que cruzaram o Estreito de Bering há cerca de 15 mil anos, vindo da Ásia, e estabeleceram-se nas regiões de floresta densa entre o que hoje conhecemos como norte do Brasil e sul da Venezuela. Essa travessia milenar foi também uma travessia cosmológica: não foi apenas o deslocamento de corpos, mas de saberes, de espíritos, de formas de ver e de estar no mundo. Os Yanomami nunca conceberam o território como “recurso”, porque sua noção de território é inseparável de sua própria existência espiritual e coletiva.
O nome "Yanomami" significa, em suas línguas, “os seres humanos verdadeiros”. Não por arrogância, mas por reconhecimento de uma matriz existencial fundada no vínculo com os outros humanos, com os animais, com as plantas, com os rios e com os xapiripë: os espíritos da floresta que habitam os múltiplos planos do cosmos. Nesse mundo multivivo, a floresta não é cenário nem cenário é floresta, é corpo social e ontologia. Um ser vivo com alma, tempo, humor e direitos.
A vida comunitária organiza-se em torno dos shabonos, grandes estruturas circulares coletivas que abrigam famílias extensas e que condensam, ao mesmo tempo, a materialidade da existência e o simbolismo da coletividade. Cada shabono é uma célula viva de autonomia e de ética compartilhada. Não há Estado. Não há propriedade privada. Não há polícia. O que há são lideranças que emergem pelo respeito, pela escuta, pela capacidade de mediar conflitos e convocar os espíritos em tempos de crise.
A floresta ensina. A floresta regula. A floresta pune. E essa pedagogia ancestral opera sem escolas, sem manuais, sem dogmas, mas com uma precisão sofisticada e sensível que escapa à lógica ocidental. As crianças aprendem observando, brincando, participando. O tempo é outro. O tempo é do rio. O tempo é do ciclo. O tempo é da memória. Nada no mundo Yanomami é feito para acelerar. Tudo é feito para durar.
Mas essa temporalidade da floresta, da roça e do rito é justamente o que incomoda a máquina ocidental, fundada na produção incessante, na aceleração forçada, na transformação de tudo em mercadoria, inclusive do tempo. Desde os primeiros contatos, com missionários, frentes militares, projetos desenvolvimentistas, o que se tentou fazer com os Yanomami foi impor-lhes uma temporalidade de fora. A estrada Perimetral Norte, nos anos 1970, foi literalmente um rasgo no tempo da floresta. Um corte. Um trauma. E, com ela, vieram a malária, o sarampo, o contato assimétrico, os mapas, os censos, as promessas e os enterros.
Mas a resistência Yanomami não é passiva. Ao contrário: ela é profunda, criativa, ritual e política. Ao longo de décadas, os Yanomami não apenas resistiram, eles reformularam formas de convivência, mantiveram línguas vivas, refizeram alianças, lutaram pela demarcação de suas terras e ergueram uma das cosmovisões mais potentes do planeta. Em sua filosofia, não existe superioridade entre espécies. Não existe “progresso” como meta. O que existe é reciprocidade, interdependência, escuta.
Sua linguagem é complexa, rica, metafórica. Seus mitos falam de mundos sobrepostos, de espíritos que cantam, de homens que viraram peixes, de árvores que viraram gente. Suas danças não são apenas arte, são manutenção do mundo. Seus cantos não são apenas expressão, são diálogo com o invisível.
A história profunda dos Yanomami, portanto, não é uma história de “atraso”, como ainda querem fazer crer certos setores da política e da mídia. Tampouco é uma história “romântica”. É uma história de complexidade social, de refinamento filosófico e de compromisso ecológico radical. E, mais do que isso, é uma história que desafia radicalmente os fundamentos do modo de vida que os oprime. É isso que o sistema quer silenciar. É por isso que matam os Yanomami: porque eles são a prova viva de que é possível existir fora da lógica da morte.
Por isso, cada pista de pouso destruída é importante. Mas não basta. O genocídio não se encerra com helicópteros, nem com notas de pesar. Só cessará quando o mundo parar de ver os Yanomami como “outros” a serem integrados e começar a vê-los como mestres de outra possibilidade de vida.
O primeiro contato e a máquina colonial: da cruz à retroescavadeira

Toda história de contato é, também, uma história de violência. Quando os primeiros missionários, militares e funcionários do Estado brasileiro chegaram às margens dos rios habitados pelos Yanomami, não traziam apenas presentes, remédios ou palavras novas. Trouxeram, com eles, uma forma de ver e organizar o mundo que não reconhecia como legítima nenhuma outra existência além da sua.
O que os livros escolares ainda chamam de “encontro” foi, na verdade, a abertura de uma ferida profunda. Um corte civilizacional. Um ataque à própria ontologia do povo Yanomami. Para os xapiripë, os espíritos da floresta que sustentam a ordem do mundo, a chegada de brancos, com suas palavras estranhas, seus tecidos, seus aparelhos, suas pressas e seus interesses, foi um desequilíbrio, uma ruptura da harmonia do cosmos. E os sintomas dessa ruptura não tardaram a aparecer.
Nos anos 1940, com a interiorização das frentes religiosas católicas e protestantes, iniciou-se a tentativa de evangelização dos Yanomami. O discurso da salvação espiritual, porém, vinha sempre acoplado a uma ideia de inadequação: os Yanomami eram “primitivos”, “nus”, “atrasados”, “pagãos”. Era preciso salvá-los da floresta, como se a floresta fosse o erro, e não o cerco civilizatório em curso. A “cruz” era, portanto, o primeiro instrumento da desestruturação.
Nos anos 1960 e 70, sob a ditadura militar, a lógica da salvação se converteu em projeto de desenvolvimento nacionalista. A construção da Perimetral Norte, parte do plano de integração da Amazônia ao “mercado nacional”, cortou o território Yanomami como uma lâmina. Levas de trabalhadores, máquinas pesadas, acampamentos, lixo, doenças e mapas chegaram sem aviso e sem volta. Não se tratava apenas de ocupar o espaço. Tratava-se de reescrever o território como mercadoria, como ativo de infraestrutura. Para isso, era preciso apagar a floresta enquanto sujeito e os Yanomami enquanto povo.
O que se seguiu foi devastador. Sem imunidade para as doenças comuns da sociedade envolvente, centenas de Yanomami morreram de sarampo, gripe, hepatite, malária. Foram verdadeiras epidemias genocidas, documentadas inclusive por organismos internacionais e organizações indígenas. E, no entanto, a resposta estatal foi o silêncio, quando não a cumplicidade.
Nos anos 1980, com a explosão do garimpo ilegal alimentado pela especulação internacional em torno do ouro, o território Yanomami passou a ser literalmente invadido por dezenas de milhares de garimpeiros, armados, organizados, incentivados por empresários e políticos locais. Os impactos foram imediatos: contaminação por mercúrio, explosão da malária, violência sexual contra mulheres e meninas, deslocamentos forçados, destruição de roças, massacre de comunidades inteiras.
O caso Haximu, em 1993, entrou para a história como o primeiro genocídio indígena reconhecido pelo Estado brasileiro. Dezesseis Yanomami foram mortos a tiros e facadas por garimpeiros, em um ataque bruta e simbólico. Era a reedição colonial, agora com motosserra e munição: a floresta deve morrer para que o lucro possa viver.
A Terra Indígena Yanomami só foi demarcada oficialmente em 1992, após intensa mobilização nacional e internacional, da Hutukara Associação Yanomami, de antropólogos, ativistas, jornalistas, artistas e da própria sociedade Yanomami. Mas a demarcação, embora necessária, foi apenas uma linha no mapa. O que se seguiu foi uma guerra invisível, de baixa intensidade, mas constante: um processo de desmonte, negligência, deslegitimação e reocupação ilegal.
Essa guerra nunca cessou. Apenas mudou de forma, de linguagem, de velocidade. A cruz virou retroescavadeira. O evangelho virou fake news. O exército voltou, agora com drones e satélites. O capital aprendeu a operar com mais sofisticação, mas com os mesmos objetivos: transformar o território Yanomami em ouro, cassiterita, soja, gado e energia.
A partir de 2019, com o governo Bolsonaro, esse processo se radicalizou. O presidente e seus ministros não apenas incentivaram abertamente o garimpo em terras indígenas, como atacaram verbalmente os povos originários, desmontaram órgãos de fiscalização (Funai, Ibama, Sesai), travaram políticas públicas e permitiram conscientemente a retomada da lógica de extermínio. O contato voltou a ser letal. Com aval oficial.
O que une todas essas etapas, da cruz à estrada, da moto à escavadeira, é a mesma lógica: o Estado e o capital não reconhecem a floresta como sujeito, nem os Yanomami como povo soberano. Eles são, na melhor das hipóteses, obstáculos a serem administrados. Na pior, estorvos a serem eliminados.
E, ainda hoje, sob uma nova gestão, a engrenagem colonial continua viva. Apesar dos avanços recentes, que trataremos nos tópicos seguintes, o trauma histórico do contato violento permanece aberto. Porque não se tratava de um erro. Tratava-se de um projeto.
O garimpo como guerra biopolítica: mercúrio, estupro e fome

Se o colonialismo foi, desde o início, uma operação de apropriação territorial e racialização da vida, o garimpo ilegal contemporâneo em terras Yanomami é sua forma mais crua, explícita e impune. Mais do que uma atividade econômica fora da lei, o garimpo constitui hoje um dispositivo biopolítico de guerra, cujos alvos não são apenas os minérios do subsolo, mas os corpos, as águas, os alimentos, as infâncias e o próprio futuro do povo Yanomami.
Nos anos recentes, particularmente entre 2019 e 2022, a Terra Indígena Yanomami sofreu uma verdadeira ocupação. Estimativas apontam para a presença de mais de 20 mil garimpeiros em território indígena, operando com infraestrutura logística comparável a pequenas cidades: pistas clandestinas de pouso, balsas com dragas potentes, acampamentos armados, conexões com redes de comunicação, transporte, crédito informal e lavagem de dinheiro. Tudo isso em conluio com agentes públicos, políticos locais, empresários do setor aurífero e, em muitos casos, facções do crime organizado como o Primeiro Comando da Capital (PCC).
Mas o que o garimpo extrai não é apenas ouro. O que ele cava são os pilares da existência Yanomami. A destruição do ambiente implica a destruição da cultura. O mercúrio usado no processo de separação do ouro contamina os rios e, com eles, os peixes, os corpos, o leite materno, o solo, os rituais. Um estudo da Fiocruz, de 2024, mostrou que 84% dos Yanomami avaliados em áreas afetadas apresentavam níveis elevados de mercúrio no organismo. Em 10% dos casos, os índices eram críticos, com risco de lesões neurológicas permanentes, especialmente em crianças.
Essa contaminação não é acidental. É parte do funcionamento mesmo da atividade. O mercúrio, como o garimpo, não negocia com a vida, apenas com a extração. E seus efeitos são silenciosos, progressivos, irreversíveis. O corpo Yanomami torna-se então um campo de batalha, um alvo químico da engrenagem extrativista.
Mas há outros tipos de veneno circulando pelos rios. Há o veneno do estupro, da fome e do abandono. Relatórios de organizações indígenas, da imprensa e de órgãos de saúde revelam um padrão de violência sexual sistemática contra meninas Yanomami, praticada por garimpeiros em troca de comida, sabão, arroz, iscas. Há registros de estupros coletivos, gravidez forçada, prostituição infantil, abuso de mulheres com deficiência. Tudo isso em aldeias isoladas, onde a presença do Estado se resume ao sobrevoo de helicópteros e ao silêncio institucional.
E quando a roça é destruída pela movimentação das máquinas e a caça foge com o barulho dos motores, vem a fome. Não a fome da carência passageira, mas a fome estrutural, a fome que atinge crianças com braços finos e olhos opacos, a fome que interrompe o crescimento, que dificulta a cicatrização, que fragiliza o sistema imune. Uma fome colonial, uma fome planejada, uma fome como arma.
Essa fome, esse veneno, essa violência de gênero, tudo isso compõe uma tecnologia de guerra que opera com sofisticação brutal. Não são explosões, não são tanques. São rotas de abastecimento aéreo, são gramas de ouro lavadas em moedas digitais, são acordos parlamentares que silenciam investigações, são decretos que suspendem operações de fiscalização. É um genocídio de baixa intensidade — porque precisa ser sustentável no tempo. E, quanto mais lento, mais rentável.
Mas essa guerra não age sozinha. Ela é tolerada, protegida, financiada. Durante o governo Bolsonaro, o garimpo em terras indígenas deixou de ser uma ilegalidade tolerada para se tornar uma política de fato. Propostas legislativas como o PL 191/2020 buscaram legalizar a mineração em terras indígenas; a Funai foi aparelhada por militares e ruralistas; o Ibama teve cortes orçamentários e de pessoal; a vigilância aérea foi reduzida; denúncias não foram investigadas. Tudo conspirava para a continuidade da morte.
É preciso dizer sem rodeios: o garimpo ilegal em território Yanomami é uma forma de extermínio. E mais: é uma forma de governo. Um modo de governar pela omissão, pela ausência, pela cumplicidade. Um modo de permitir que o capital atue com liberdade total — desde que a morte aconteça longe das câmeras.
E mesmo agora, após a mudança de governo e a intensificação das operações federais, a lógica permanece viva. O mercúrio ainda está nos corpos. A terra ainda está ferida. O trauma ainda está gravando sua tatuagem invisível na psique coletiva das aldeias. E os interesses econômicos que sustentam o garimpo, do sistema financeiro aos mercados internacionais de commodities, seguem intactos.
Trata-se, portanto, de reconhecer que o garimpo é mais do que ilegal. Ele é estrutural. Ele é ideológico. Ele é a expressão contemporânea do capitalismo de pilhagem que construiu a história do Brasil. E enquanto isso não for desfeito na raiz, na cultura, na economia e no Estado, a guerra continuará.
O bolsonarismo como vetor genocida

O genocídio Yanomami, como já foi dito, não é um acidente da história ou uma exceção pontual. É a consequência direta e estrutural da lógica colonial e racial que organiza o Estado brasileiro desde sua origem. No entanto, entre os anos de 2019 e 2022, essa engrenagem de morte ganhou um novo impulso, mais violento, mais cínico e mais sistemático. Com Jair Bolsonaro na presidência da República, o Estado deixou de apenas tolerar a violência contra os povos indígenas: passou a operá-la como método, como projeto de poder, como política de governo.
Desde a campanha eleitoral, Bolsonaro já sinalizava qual seria sua posição. Declarou que não demarcaria "nem um centímetro" de terra indígena, atacou os Yanomami por "ocuparem grandes extensões improdutivas", e defendeu a abertura da Amazônia à exploração econômica "como o americano fez com o Oeste". A lógica era clara: para o bolsonarismo, os povos originários não eram sujeitos de direito, mas entraves ao mercado, à expansão do agronegócio, à mineração e à narrativa desenvolvimentista. Eles eram o “empecilho cultural” que impedia a floresta de se converter em lucro.
Esse discurso não ficou na retórica. Foi transformado em ação coordenada. A Fundação Nacional do Índio (Funai) foi desmontada e aparelhada por militares e ruralistas. O Ibama e o ICMBio sofreram cortes profundos e perseguições a servidores que insistiam em cumprir a lei. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) foi negligenciada, especialmente durante a pandemia, quando mais se precisava dela. E o Projeto de Lei 191/2020, enviado ao Congresso pelo próprio Executivo, buscava legalizar a mineração em terras indígenas, uma tentativa escancarada de institucionalizar o garimpo e normalizar a pilhagem.
Enquanto isso, as operações de fiscalização federal na Terra Indígena Yanomami foram interrompidas, os helicópteros da Polícia Federal deixaram de voar, e os garimpeiros voltaram a ocupar com força brutal o território, incentivados pela omissão e, muitas vezes, pelo estímulo direto do governo. O resultado foi devastador: entre 2019 e 2022, a presença de garimpeiros na TI Yanomami mais que triplicou. Explodiram os casos de malária, desnutrição infantil e contaminação por mercúrio. Aldeias foram abandonadas. Crianças morreram sem assistência. Mulheres foram violentadas. E o Estado, diante disso tudo, permaneceu em silêncio ou pior, zombando.
Bolsonaro chegou a insinuar que as denúncias de violência sexual contra meninas Yanomami eram "armação da esquerda". Reagiu com sarcasmo diante de relatórios de saúde pública e ignorou apelos internacionais. Esse deboche, essa desumanização da dor alheia, faz parte da lógica do poder necropolítico que o bolsonarismo instaurou. Ao negar o sofrimento dos Yanomami, ele naturalizava sua morte. E ao deslegitimar suas vozes, autorizava publicamente sua eliminação.
Tudo isso não se deu por acaso. Foi sustentado por uma aliança poderosa entre o garimpo ilegal, setores do agronegócio, igrejas fundamentalistas, facções criminosas, parte das Forças Armadas e grandes plataformas digitais. Esse sistema operava de forma articulada: enquanto o garimpo contaminava os rios, deputados ruralistas bloqueavam qualquer avanço no Congresso; enquanto mulheres indígenas denunciavam estupros, pastores negociavam "conversões" em troca de comida; enquanto os xapiripë eram silenciados, empresas internacionais lucravam com o ouro ilegal que saía da floresta e circulava por bancos, carteiras digitais e mercados globais.
Foi por isso que diversas organizações levaram o caso à Corte Penal Internacional em Haia. Porque não se trata de omissão. Trata-se de uma política de Estado com consequências letais, cujas evidências materiais e documentais são vastas. O genocídio Yanomami não é uma figura de linguagem. É uma realidade concreta, verificável, com autores identificáveis. E o bolsonarismo, com sua ideologia anti-indígena, extrativista e autoritária, é a engrenagem que deu nova forma e intensidade a esse projeto de extermínio.
E mesmo agora, com outra configuração de governo, os efeitos do bolsonarismo continuam vivos. A contaminação por mercúrio ainda está nos corpos. Os rios seguem envenenados. O trauma é transmitido entre gerações. E muitos dos responsáveis seguem impunes, ocupando cargos, assentos parlamentares, redutos de poder econômico. O bolsonarismo foi — e continua sendo — um dispositivo de destruição dos povos originários. Não apenas por suas ações diretas, mas por ter institucionalizado o desprezo pela vida indígena como programa político.
Diante disso, não basta reconhecer os crimes. É preciso combatê-los com a mesma radicalidade com que foram cometidos. E isso começa por chamar as coisas pelo nome certo: o que houve, e ainda há, na Terra Yanomami não é uma tragédia natural, nem uma crise administrativa. É um genocídio. E como tal, exige justiça histórica.
As formas da resistência: Davi Kopenawa e a política da floresta

Diante da maquinaria de morte que se abateu sobre seu povo, os Yanomami não cruzaram os braços. Nem o fizeram quando os padres tentaram apagar seus cantos com catecismos, nem quando os militares abriram trilhas como cortes no corpo da floresta, nem agora, quando helicópteros despejam garimpeiros armados como se fossem grãos de soja em terras abertas. A resistência Yanomami não é um ato. É uma forma de vida. Ela se expressa no cultivo da roça, na caça cuidadosa, na não-acumulação, nos cantos cerimoniais, nas redes penduradas, nas cosmologias mantidas em segredo e nas palavras proferidas por aqueles que ousaram aprender a falar também a língua dos brancos. Entre esses, está Davi Kopenawa — xamã, diplomata do invisível, intelectual da floresta, tradutor entre mundos.
Davi é mais do que uma liderança indígena. Ele é o nome e o rosto da insurgência Yanomami no cenário internacional. Mas ele o é não porque buscou notoriedade, e sim porque teve coragem de falar, com todas as letras e em todos os idiomas, aquilo que a sociedade envolvente sempre se recusou a ouvir: que a floresta não é recurso, que os espíritos não são metáfora, que os brancos matam porque esqueceram como sonhar. Em A Queda do Céu, livro monumental escrito em parceria com o antropólogo francês Bruce Albert, Davi não apenas narra a violência sistemática contra seu povo, ele a pensa, a desmonta, a inscreve numa ontologia própria, onde a guerra não é apenas territorial, mas espiritual.
Kopenawa se tornou a ponte entre mundos. Falou na ONU, dialogou com o Papa, confrontou chefes de Estado, denunciou crimes em tribunais internacionais, mas nunca abandonou o xamanismo, a floresta, os cantos. Seu corpo carrega dois tempos: o do xapiripë e o do microfone. E é essa duplicidade que assusta tanto as elites brasileiras quanto os burocratas internacionais. Porque Davi revela, com sua fala pausada e sua convicção inabalável, que há uma racionalidade profunda na cosmologia Yanomami, uma racionalidade que desafia frontalmente a lógica da acumulação, da produtividade, da separação entre natureza e cultura.
E Davi não está só. Ao seu lado, há mulheres que cultivam e cuidam. Há jovens que aprendem o uso de drones para mapear invasões. Há velhos que guardam a memória dos massacres. Há crianças que crescem ouvindo as histórias que os brancos tentaram apagar. Há pajés que continuam a conjurar os espíritos, mesmo em meio aos ruídos das hélices e das motosserras. Essa é a política da floresta: uma política que não se confunde com partidos ou eleições, mas que se inscreve na própria continuidade da vida. Uma política de resistência radical, porque ela não quer apenas viver, mas quer viver em seus próprios termos.
A Hutukara Associação Yanomami, fundada por Davi e outros líderes, tornou-se o eixo dessa resistência articulada. Ela documenta violações, publica relatórios, organiza encontros, promove educação bilíngue, denuncia crimes e mobiliza redes de apoio no Brasil e fora dele. Ela também forma lideranças, traduz documentos, coordena com pesquisadores aliados e, acima de tudo, reafirma a soberania Yanomami sobre o seu território. Em outras palavras: ela organiza o sonho de um povo inteiro de continuar existindo.
Resistir, para os Yanomami, não é apenas se defender. É manter-se em movimento com a floresta. É transformar sofrimento em narrativa, luto em ritual, ruína em replantio. Não há heroísmo individualista, nem culto à figura do mártir. Há redes, há coletividade, há memória. Há um povo inteiro que, apesar de tudo, se recusa a morrer.
E essa recusa é revolucionária. Porque num mundo regido por algoritmos, consumo, devastação e pressa, os Yanomami ensinam algo que nenhuma universidade, nenhum think tank e nenhuma fundação bilionária conseguirá formular: que o futuro não está em dominar a floresta, mas em ser por ela aceito. Que resistir ao genocídio é, também, resistir ao tempo colonizador que destrói tudo o que não cabe na lógica da mercadoria.
Por isso, a luta de Davi Kopenawa e de seu povo não é apenas uma luta por território. É uma luta pelo mundo. Um mundo onde seja possível viver sem devastar, existir sem dominar, falar sem destruir o silêncio. Um mundo onde haja espaço para mais de um mundo. E se isso não for entendido, o genocídio continuará, talvez com novas roupas, novos discursos, novos governos. Mas continuará.
A resistência Yanomami é a última trincheira da Amazônia. E talvez, no fim das contas, a última chance de todos nós.
O hoje e o abismo: avanços, impasses e riscos no governo Lula

Em janeiro de 2023, pouco depois de assumir a presidência da República, Lula sobrevoou a Terra Indígena Yanomami e viu o que muitos antes dele fingiram não ver. Corpos desnutridos. Crianças à beira da morte. Rios contaminados. Roças destruídas. Comunidades devastadas. A cena não era nova — mas, naquele momento, foi reconhecida oficialmente como o que de fato era: uma emergência humanitária. E mais do que isso, uma emergência moral. O governo decretou estado de emergência sanitária, iniciou uma força-tarefa interministerial, reinstalou serviços básicos, retomou ações de fiscalização ambiental e passou a organizar ações de expulsão dos garimpeiros. Pela primeira vez em anos, o Estado retornava ao território não como predador, mas como presença reparadora.
Nos meses que se seguiram, os avanços foram significativos. Mais de 5.800 ações federais foram realizadas na TI Yanomami entre março de 2023 e junho de 2025. Pistas clandestinas foram destruídas, balsas incendiadas, aeronaves inutilizadas, acampamentos desmobilizados. A operação “Asfixia”, em junho de 2025, reduziu em 96% a presença garimpeira em determinadas regiões, impondo prejuízos de quase R$ 400 milhões às redes criminosas. Houve também aumento significativo no número de profissionais de saúde indígena, reativação de polos-base, fornecimento regular de alimentos e medicamentos, expansão do monitoramento via satélite e apoio à formação de jovens Yanomami no uso de tecnologias de vigilância territorial, como drones.
Mas seria um erro, e um erro perigoso, acreditar que o problema está resolvido. O garimpo, como já vimos, não é apenas uma atividade ilegal: é uma estrutura econômica, política e simbólica. E estruturas não se desmancham com decretos. Apesar da queda visível nas ações garimpeiras, há registros de rearticulações subterrâneas, com uso de novas rotas, alianças locais e cooptação de lideranças. Aviões continuam pousando à noite. Tropas clandestinas se reorganizam nas fronteiras. O capital é adaptável. E o ouro continua a valer muito mais do que uma vida indígena no mercado global.
Além disso, os efeitos do garimpo não cessam com a retirada das máquinas. Os rios continuam contaminados por mercúrio. As taxas de malária seguem altas em diversas regiões. O solo precisa de anos para se regenerar. As roças queimadas não se refazem do dia para a noite. A desnutrição deixa marcas profundas, especialmente em crianças. O trauma psicológico, os lutos coletivos, o medo das reocupações, tudo isso persiste. O garimpo é uma guerra com pólvora lenta, mas com efeitos duradouros.
O que o governo Lula fez até aqui deve ser reconhecido. Mas deve ser também tensionado. Porque a reconstrução exige mais do que ação emergencial. Exige compromisso estrutural. Exige uma refundação da presença do Estado nas terras indígenas, não mais como colonizador, mas como garantidor da autonomia e da proteção. E isso passa por algo que ainda não foi plenamente enfrentado: a punição dos responsáveis. Até agora, os grandes articuladores do genocídio Yanomami continuam impunes. Empresários que financiaram pistas, políticos que apoiaram projetos de mineração, autoridades que fecharam os olhos, militares que facilitaram a logística, todos seguem livres. E enquanto houver impunidade, haverá sinal verde para a repetição.
Há também riscos políticos evidentes. Com as eleições de 2026 se aproximando, o espectro da extrema-direita volta a assombrar o país. Parlamentares ligados ao agronegócio seguem pressionando pela legalização da mineração em terras indígenas. Disputas internas por orçamento e burocracias lentas colocam em risco a continuidade das ações. E há ainda a dificuldade crônica de articulação entre os diversos ministérios, cujas ações, muitas vezes, se atropelam ou se anulam. A emergência sanitária decretada em 2023, por exemplo, ainda não foi formalmente encerrada, não por precaução estratégica, mas por indecisão sobre o que virá depois.
O que se coloca, então, é a necessidade de um pacto real pela proteção dos povos originários. Um pacto que vá além da assistência pontual, além das fotos oficiais, além das promessas. Um pacto que reconheça que não se trata apenas de salvar vidas, mas de garantir que essas vidas possam continuar sendo o que são, do jeito que são, no tempo e no espaço que escolherem. Isso implica reconhecer a legitimidade das organizações indígenas, ouvir os xamãs, apoiar as escolas bilíngues, investir em políticas de revitalização cultural, permitir que os Yanomami sejam sujeitos plenos de sua própria reconstrução.
Porque o abismo que se abre hoje diante do povo Yanomami não é apenas o rastro do que foi feito. É também a interrogação sobre o que será feito a partir de agora. O Estado chegou tarde, mas ainda pode fazer diferente. Pode proteger, reparar, cuidar. Ou pode continuar oscilando entre a negligência e o espetáculo. Se escolher a segunda via, o genocídio apenas mudará de forma. Mas continuará.
E os Yanomami, mais uma vez, terão que resistir. Com suas redes, seus cantos, suas palavras, suas cosmologias e com a memória de tudo aquilo que a sociedade envolvente ainda se recusa a aprender.
Conclusões

A palavra genocídio não é suficiente para abarcar o que se passa com o povo Yanomami. Ela é juridicamente precisa, mas humanamente insuficiente. Porque o que está em curso é mais do que a eliminação física de um povo. É a tentativa de apagamento total de um modo de existência que desafia as bases mais profundas da racionalidade ocidental, do capitalismo predatório e da modernidade colonizadora. Matar os Yanomami é tentar matar a própria ideia de que outra forma de vida é possível. De que há mundos onde o tempo não se organiza em produtividade, onde a floresta não é recurso, onde o ouro não tem valor, onde o silêncio vale mais do que o barulho das máquinas.
Esse extermínio não é feito apenas com armas ou retroescavadeiras. Ele é produzido pela lentidão institucional, pela omissão diplomática, pela distorção midiática, pela cumplicidade das elites, pela normalização da catástrofe. É um processo. É uma engrenagem. E como toda engrenagem, precisa de peças: o político que silencia, o empresário que lucra, o juiz que arquiva, o jornalista que ignora, o consumidor que não pergunta de onde vem o ouro da sua aliança. Todos, de alguma forma, estão dentro do motor.
Mas há também os que resistem. Os que não aceitaram morrer. Os que continuaram plantando roça em terra envenenada. Os que transformaram dor em canto. Os que falaram no idioma do invasor sem abrir mão de sua língua. Os que filmaram, escreveram, denunciaram. Os que nasceram depois de tudo e, ainda assim, herdaram o fardo de reconstruir o que lhes foi tomado. Os Yanomami estão vivos. Não apenas biologicamente, mas cosmologicamente. Estão vivos porque continuam dançando, sonhando, convocando os xapiripë, contando seus mortos, reerguendo suas casas coletivas, narrando o mundo como quem o redesenha com a força da palavra.
É preciso entender que a luta Yanomami não é apenas pela sobrevivência — mas pela continuidade de uma cosmovisão, de um saber, de uma forma de habitar o mundo que talvez seja a última chance de todos nós. Eles não são os "nossos índios", como dizia a retórica colonizadora. Eles são o outro radical que nos interpela. São a linha de frente contra o colapso climático. São os guardiões de conhecimentos que o capitalismo tenta calar porque teme o que não pode compreender.
E, por isso, a defesa dos Yanomami não pode ser feita apenas com discursos, relatórios ou operações pontuais. Ela exige ruptura. Ruptura com a lógica do desenvolvimento que só existe à custa da destruição. Ruptura com o Estado que protege mais o garimpo que a vida. Ruptura com as fronteiras que dividem um povo inteiro para proteger interesses geopolíticos. Ruptura com a ideia de que os povos indígenas precisam ser “integrados”, “assistidos”, “civilizados”. Eles não precisam de tutela. Precisam de território, de respeito, de escuta, de autonomia.
Esse artigo é uma tentativa — limitada, talvez — de nomear a morte. Mas também é um chamado à vida. À vida que resiste em cada rede pendurada, em cada canto cerimonial, em cada criança que aprende sua língua, em cada drone usado para mapear o inimigo. Porque a floresta não está apenas sendo destruída. Ela também está lutando. E luta com todos os meios que tem: com raízes, com palavras, com corpos, com alianças.
Se ainda for possível falar em futuro, ele passará por aqui. Não por Brasília. Não por Davos. Mas por Surucucu, por Auaris, por Maturacá, por Parima. O futuro, se quiser existir, terá que aprender a ser Yanomami. E isso significa esquecer tudo o que nos ensinaram sobre progresso.
O nome da morte é projeto. O nome da vida é floresta. E a luta contínua.
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