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Entre o corpo e a terra

  • Foto do escritor: Rey Aragon
    Rey Aragon
  • 19 de jul.
  • 15 min de leitura

Fricção, alienação digital e reconstrução política da subjetividade


Este não é um texto sobre fuga. É um ensaio sobre enfrentamento. Sobre a escolha de viver o atrito da terra, a lentidão do tempo real, a densidade da subjetividade encarnada. Um manifesto contra a captura algorítmica, pela reinvenção do território como espaço político da existência.


Prólogo: quando o silêncio dói e o atrito cura


Há um tipo de silêncio que não pacifica, mas arde. Um silêncio que não é ausência de som, mas excesso de ruído reprimido — ruído de si mesmo, do mundo, daquilo que não se soube nomear. Silêncio onde tudo que não foi resolvido se instala: o corpo que se repete, o pensamento que gira em falso, a alma que adoece na anestesia da pressa. Esse silêncio, tão comum na vida contemporânea, não é escolha — é sintoma. Sintoma de uma subjetividade que perdeu o direito de hesitar.


No capitalismo da fluidez, a vida deixou de ser travessia e tornou-se deslizamento. Um fluxo contínuo de comandos, respostas, notificações e decisões automatizadas. Vivemos cercados por sistemas que antecipam nossos desejos antes mesmo que os formulemos. Tudo é suavizado, calibrado, gamificado. Nada dói — e, por isso mesmo, nada transforma. A dor foi substituída pelo desconforto difuso; o conflito, pela escolha predefinida; o tempo da dúvida, pela resposta instantânea. A subjetividade é moldada como um perfil operacional: eficaz, previsível, adaptável. Mas a que custo?


A ideologia da fricção zero — esse regime técnico, afetivo e ontológico que organiza o mundo para que nada nos atrapalhe — é, na verdade, a mais sofisticada forma de obstrução da vida plena. Ao eliminar o atrito, elimina-se também o tempo do pensamento, da hesitação, da criação. A vida deixa de ser acontecimento e passa a ser consumo. O sujeito não age mais — ele reage. Não escolhe — confirma. Não vive — funciona.


E é precisamente nesse contexto que emerge uma forma de rebelião silenciosa: a recusa da fluidez. A recuperação da fricção. Não como nostalgia de tempos mais lentos, mas como gesto de reencontro com a complexidade perdida. A fricção, neste ensaio, não será tratada como falha do sistema, mas como condição do humano. Aquilo que nos permite sentir, pensar, tropeçar e — sobretudo — nos transformar. Porque é no atrito entre pele e mundo que se produz o sentido. É na resistência do real que se descobre a liberdade.


Mas essa fricção não é apenas social ou técnica. Ela é, antes de tudo, ontológica. Diz respeito ao modo como habitamos o mundo, nos percebemos, nos relacionamos. E é por isso que este ensaio parte de um lugar outro: o território como fricção. A experiência como território. Atravessar esse percurso exige mais do que pensamento — exige coragem. A coragem de renascer onde todos aprenderam a funcionar. A coragem de hesitar onde tudo grita por velocidade. A coragem de viver onde tudo pede apenas performance.


Este texto é um sopro contra a anestesia. Um manifesto filosófico em defesa do atrito. Um gesto político contra a vida algoritmica. Aqui, o leitor não será poupado do conflito. Ao contrário: será convidado a caminhar sobre pedras, a desacelerar os dedos, a errar os passos. Porque apenas a fricção cura aquilo que o silêncio digital tentou apagar. Porque a subjetividade não floresce em terreno liso — mas em solo que fere, mas fecunda.


A era da fricção zero: quando a vida se torna interface



Tudo começou com a promessa de que seria mais fácil. Um clique a menos, uma resposta mais rápida, um caminho mais curto. A ideologia da fricção zero não se impôs com tanques ou censura, mas com sorrisos, facilidades e um slogan irresistível: “Não pense, apenas flua”. Em nome da conveniência, a história foi sendo apagada em favor da interface. A linguagem virou comando. A escolha virou confirmação. E a vida — aquela coisa suja, lenta, ambígua, imprevisível — virou produto.


No centro dessa mutação está a racionalidade técnica do capital, que nunca se contentou em explorar apenas o tempo de trabalho: ela quer agora o tempo da subjetividade. A ideologia da fricção zero é a forma contemporânea mais acabada dessa racionalidade. Não se trata apenas de eliminar filas ou cliques — trata-se de eliminar o pensamento, o desvio, o impasse. Tudo que resiste à automatização se torna “falha do sistema”.


Como alertava Marcuse (1964), a tecnologia pode ser repressiva quando incorpora a lógica da dominação como norma cultural. É exatamente isso que vemos hoje: a fluidez como imperativo moral. “Não atrase. Não pergunte. Não hesite.” A positividade tóxica, como diagnosticou Han (2022), opera como anestesia: tudo precisa ser leve, ágil, intuitivo. Mas o que se apresenta como leveza é, na verdade, um peso insuportável: o peso de uma subjetividade que foi desativada.


Bill Gates chamou de “capitalismo sem atrito”. Zuboff (2020) preferiu o termo “capitalismo de vigilância”. Eu propus: é capitalismo de antecipação ontológica. O nome pouco importa, desde que se compreenda o projeto: transformar o mundo em um circuito contínuo de previsibilidade e aderência, onde o dissenso, o erro e o tempo da elaboração sejam tratados como bugs.


A fricção, que antes era espaço da escolha, da dúvida, da deliberação, foi reposicionada como obstáculo. E assim, lentamente, o atrito foi sendo desativado — primeiro nos sistemas, depois nas relações, depois na alma. A vida passou a ser modelada como uma sequência de interações otimizadas, onde tudo deve funcionar. Mas quando tudo funciona, nada se transforma.


E é aí que o sujeito deixa de ser sujeito. Já não age: é agido. Já não pensa: responde. Já não vive: opera.


A fricção zero, portanto, não é apenas uma lógica técnica. É uma forma de dominação ontopolítica. Porque ao eliminar a fricção da vida, elimina-se a possibilidade da vida como experiência histórica. Substitui-se o tempo vivido pelo tempo calculado. A hesitação, pela antecipação. O conflito, pela harmonia operacional. A subjetividade, pelo perfil.


A era da fricção zero é a era em que a vida deixa de ser travessia e vira função. A subjetividade deixa de ser campo de disputa e vira sistema operacional. O humano, enfim, torna-se algoritmo de si mesmo.


E o mais perverso de tudo: isso nos parece normal.


Porque a hegemonia, como dizia Gramsci, é mais eficaz quando é invisível. Quando faz com que o mundo seja como é — e pareça que nunca poderia ser diferente.


Mas poderia. E é por isso que estamos aqui.


Subjetividade capturada: entre o automatismo e a morte interior



A subjetividade não é uma essência. É uma construção histórica, social, política e afetiva. Ela se forma no atrito entre o sujeito e o mundo, na tensão entre desejo e limite, entre linguagem e silêncio, entre o que é e o que ainda pode ser. Mas o que acontece quando essa tensão é sistematicamente dissolvida? Quando o atrito é programaticamente apagado? Quando viver é reduzido a confirmar o que já foi decidido?


É isso que a ideologia da fricção zero opera em escala global: a captura da subjetividade antes mesmo que ela se forme. O sujeito contemporâneo não nasce — ele é modelado. Modelado por fluxos preditivos, interfaces responsivas e decisões delegadas a sistemas técnicos que funcionam acima da consciência. A subjetividade deixa de ser uma elaboração e se torna um produto pré-formatado — eficiente, performático, funcional.


Nesse novo regime, o tempo da interioridade é invadido. O silêncio é substituído por notificações. A dúvida, por sugestões. O desejo, por antecipações. Como mostrou Lukács (1971), a reificação no capitalismo transforma as qualidades humanas em funções quantificáveis. Agora, com a mediação algorítmica contínua, não é apenas o trabalho que é reificado, mas a própria experiência de existir.


O resultado é o que chamamos de alienação de segunda ordem: não mais apenas a separação entre o sujeito e o produto do seu trabalho, mas a separação entre o sujeito e sua própria potência de decidir, sentir, imaginar e hesitar. O sujeito é conduzido antes mesmo de desejar. Sua autonomia é expropriada. Sua linguagem é substituída por respostas prontas. Sua vida é organizada como um cronograma de produtividade emocional.


Essa alienação é possível porque os sistemas operam a partir da exploração técnica das heurísticas cognitivas, dos vieses comportamentais e da lógica da adesão espontânea. O metaintermediário não impõe: ele seduz. Ele compreende, acolhe, entrega soluções. E, em troca, captura. Como advertiu Gramsci (2012), a hegemonia opera melhor quando parece liberdade. E a ideologia da fricção zero é precisamente isso: uma forma de servidão que se apresenta como conforto.


Estamos diante de um modelo de existência onde pensar cansa, escolher atrasa, e errar é inaceitável. Um mundo onde a interioridade virou algoritmo e a linguagem virou interface. Onde o silêncio interior — aquele que gera pensamento, arte, filosofia — foi substituído por uma enxurrada de fluxos que não deixam tempo para elaborar o vivido.


Nesse processo, a subjetividade morre antes de nascer. O sujeito não vive em si, mas no reflexo de suas respostas. Ele não se conhece: ele é lido por um sistema que o representa melhor do que ele mesmo. A consciência deixa de ser espaço de deliberação e se torna painel de monitoramento.


Mas o que é a subjetividade sem o direito de hesitar? O que é o humano sem a fricção do conflito interno, da contradição, do não-saber?


A resposta é clara e brutal: é uma existência domesticada. É um organismo funcional. É uma alma automatizada.


Essa captura, no entanto, não é total. E é neste espaço entre o automatismo e o grito que ainda resiste — entre a morte interior e a fagulha de recusa — que começa a possibilidade de outro mundo.


Um mundo com atrito. Um mundo que dói. Mas que pulsa.


Território e descolonização subjetiva: a fricção como reexistência



Há uma dimensão da existência que não se ensina, nem se programa. Ela não cabe em aplicativos, calendários ou sistemas de gestão emocional. Essa dimensão se revela no contato com o que escapa à mediação: o tempo do mundo sem relógio, o silêncio sem algoritmo, o corpo sem função. É aí que começa o território — não o território cartográfico, mas o território existencial.


O território, aqui, é mais do que chão: é chão interior. É o lugar onde o sujeito se reconhece como inacabado, contraditório, lento. Onde a linguagem não precisa ser eficiente. Onde o tempo pode ser cíclico, e não apenas produtivo. Onde a dor não precisa ser silenciada — ela pode ser elaborada.


Na era da fricção zero, habitar um território real é um ato revolucionário. Porque rompe com a abstração da vida digitalizada, rompe com a normatividade algorítmica, rompe com a subjetividade operável. Recuperar o território é reexistir — isto é, existir de novo, com outra densidade, outro tempo, outra relação com o mundo.


E isso só é possível no atrito. No desconforto. No silêncio que incomoda. Na ausência de notificações. No vento que demora. Na dúvida que permanece. No dia que não rende. Na dor que não resolve, mas transforma.


A vida no interior, a vida junto à terra, não é fuga. É enfrentamento. Enfrentar o próprio tempo. Enfrentar o barulho interno que as máquinas abafavam. Enfrentar a memória, a angústia, a finitude. Enfrentar a condição humana sem intermediários.


Essa é a fricção que constrói. Uma fricção que não é técnica, mas ontológica. Não é atraso, é reencontro. Não é ineficiência, é sabedoria. O tempo do território é o tempo da hesitação. O tempo da fricção é o tempo da elaboração.


E é nesse tempo que o sujeito renasce — não como perfil, mas como pessoa. Com contradições, com sombras, com perguntas. Com raízes.


As ideias que moram no chão têm mais sabedoria que qualquer IA. Porque elas sabem que a vida pulsa no atrito — entre o nascer e o morrer, entre o querer e o poder, entre o saber e o suportar. É aí que a subjetividade se reinventa, fora dos manuais, longe dos fluxos. No barro. No tropeço. Na escuta. No conflito.


Descolonizar a subjetividade é reaprender a habitar o território com fricção. É resistir à captura por sistemas que querem administrar o desejo, parametrizar o afeto, automatizar o tempo. É dizer: “não aceito ser otimizado”. É lembrar que a dúvida é um direito. Que o silêncio é um lugar. Que a lentidão é uma forma de existência.


A fricção da terra não é romantizada aqui. Ela dói. Ela corrói certezas. Ela exige solitude, coragem, entrega. Mas ela também cura. Porque ela devolve ao sujeito o que o algoritmo roubou: o direito de ser mais do que previsível. O direito de ser real.


Contra a fricção falsa: sobre a ilusão do atrito controlado


O sistema é inteligente. Ele aprendeu que a suavidade total desumaniza, e que a ausência completa de conflito gera inquietação. Então criou um truque: a fricção controlada. A dor simulada. O impasse coreografado.


No capitalismo da fricção zero, não se eliminam todos os atritos — apenas os que poderiam gerar transformação real. No lugar deles, instala-se uma fricção performática, superficial, administrável. Uma fricção que simula conflito, mas mantém o fluxo intacto. É o estresse do trânsito sem sentido. O deadline inútil. A ansiedade do like. O conflito nas redes, controlado por algoritmos que lucram com o engajamento. Tudo dói, mas nada muda.


É o sofrimento domesticado: a dor transformada em estímulo. O incômodo em capital. A fricção como espetáculo.


Na cidade grande, o sujeito sente o atrito o tempo todo — mas é um atrito que o paralisa, não o liberta. O tempo é escasso, mas não por escolha. O cansaço é crônico, mas não leva à pausa. As emoções são intensas, mas não têm lugar para se elaborar. O corpo sofre, mas continua funcionando. A mente gira, mas não sai do lugar.


Essa fricção falsa é o novo ópio das subjetividades automatizadas. Ela oferece o simulacro do conflito para impedir que o sujeito perceba o verdadeiro campo de disputa: o tempo, a linguagem, a imaginação. Ao manter o indivíduo ocupado com atritos operacionais, o sistema evita que ele se depare com a fricção ontológica: aquela que desorganiza para reorganizar. Que quebra para libertar.


Por isso, não basta falar em atrito. É preciso perguntar: qual fricção estamos vivendo? E a serviço de quem ela opera?


A fricção falsa gera estafa, mas não autoconhecimento. Gera ansiedade, mas não elaboração. Gera reatividade, mas não práxis. E, o mais perverso: faz com que o sujeito acredite que está vivendo intensamente, quando, na verdade, está apenas sendo consumido.


É nesse ponto que o ensaio rompe com o conforto da crítica e avança na reconstrução do sentido. Porque só a fricção verdadeira — aquela que fere, que freia, que nos obriga a escutar — pode reorganizar a subjetividade.


Não se trata de idealizar o sofrimento. Trata-se de reivindicar o direito ao atrito que liberta, em oposição à dor que aprisiona. O atrito que não é administrado por uma plataforma. Que não pode ser gamificado. Que não gera engajamento. Mas que germina rupturas.


Em outras palavras: o atrito que cura não é aquele que o sistema nos oferece. É aquele que escolhemos viver — quando deixamos de funcionar, e começamos a existir.


Rehab ontológico: a dor como espaço de criação


O capitalismo digital quer nos convencer de que viver é deslizar. Que pensar é buscar. Que decidir é clicar. Que sofrer é falha. Que hesitar é disfuncional. Ele construiu um mundo onde tudo deve ser leve, fluido, conveniente. Um mundo que promete conforto e entrega anestesia. Que oferece eficiência e produz esvaziamento. Um mundo em que o humano é só mais um processo otimizado.


Mas há um ponto em que o fluxo quebra. Um ponto em que o corpo começa a não responder. Em que a alma — não no sentido espiritual, mas naquilo que ainda resta de inconformidade e desejo não capturado — se recusa a continuar funcionando. Esse ponto é a dor. A dor real. A dor que não pode ser ignorada. A dor que não pode ser clicada.


Essa dor não é metáfora. É sinal de contradição. É sintoma de que a subjetividade entrou em conflito com a estrutura. De que a vida deixou de caber no código. De que a consciência já não aceita a reificação passiva do mundo.


E é aí que começa a chance.


No momento em que tudo parece desabar — solidão, exaustão, luto, colapso — emerge algo que o sistema teme: a fricção insuportável que obriga a pausa, a escuta, a reconfiguração. Essa fricção não é programada. Ela não obedece ao design. Ela é o real que rompe.


Nesse lugar, não há mais atalhos. Não há menu suspenso. Não há automação. Há só o enfrentamento entre o sujeito e a materialidade de sua existência: seu corpo, seu tempo, sua história, seu território. É o retorno forçado àquilo que foi expropriado. E esse retorno não é místico — é dialético. Porque se dá no ponto exato da contradição entre o sujeito que foi formatado e o sujeito que ainda insiste em ser mais do que função.


Esse momento — doloroso, lento, frequentemente solitário — é o início da criação.


A dor, aqui, não é romantizada. Ela é situada. Inserida numa lógica de resistência ontológica. Porque ao contrário da dor funcional do sistema (o cansaço improdutivo, a ansiedade sem sentido, a culpa como controle), esta dor inaugura elaboração. Ela exige linguagem. Exige reconstrução. Ela exige política.


E o mais importante: ela devolve ao sujeito o tempo da negatividade — esse tempo suprimido pela ideologia da fricção zero. O tempo do “não sei”. O tempo do “não quero mais assim”. O tempo do impasse.


É nesse impasse que começa a reinvenção. Não como salto místico. Mas como processo material e subjetivo de reorganização da vida. A fricção, antes evitada, torna-se condição. Condição para pensar, para desejar, para agir com consciência. Não há liberdade sem consciência da opressão. E não há consciência sem dor.


Essa dor que elabora — esse atrito que reorienta — é, no fundo, o começo do reencontro com a práxis. O momento em que o sujeito deixa de apenas funcionar no mundo, e passa a inscrevê-lo de volta com sua negatividade crítica.


Reabilitar-se, neste sentido, é reaprender a viver em desacordo. É recuperar o direito de não fluir. De não aderir. De não corresponder. É afirmar que o erro, a lentidão, a hesitação não são falhas do sistema — são marcas da liberdade que resiste.


A fricção que dói, quando não instrumentalizada pelo capital, pode se tornar o solo da criação. Não uma criação estética ou performática, mas ontológica e política: a criação de si como sujeito que rompe o automatismo. Que reconstrói territórios. Que habita o tempo com consciência. Que recusa ser governado por antecipações.


É na dor que não serve, que não engaja, que não rentabiliza, que a vida reencontra sua densidade. E, com ela, a possibilidade de dizer: "não aceito mais viver sem atrito."


A fricção como ato político na era da submissão interfaceada


Resistir hoje é, antes de tudo, insistir na existência do atrito. Em tempos de submissão interfaceada, em que tudo é desenhado para fluir — decisões, afetos, identidades, desejos —, produzir fricção se torna uma forma radical de recusa. A fluidez, elevada à condição de valor absoluto, dissolveu a negatividade da experiência. Tudo precisa ser leve, adaptável, sem conflito. Mas a ausência de conflito não significa paz. Significa anestesia.


A política, sob esse regime, é transformada em painel de preferências. O dissenso é rebaixado a “problema de engajamento”, e a deliberação pública é substituída por métricas de adesão. A fricção foi sequestrada, convertida em obstáculo técnico. Na vida submetida à lógica algorítmica, até a discordância precisa ser rápida, eficiente, inofensiva. O pensamento virou confirmação. A linguagem virou gesto de aceitação. E a subjetividade, agora operável, perdeu seu tempo próprio.


Reinstalar o atrito onde ele foi tecnicamente apagado é, portanto, mais do que uma ação individual: é um gesto político. Quando escolhemos hesitar diante do automatismo, quando sustentamos o silêncio diante da avalanche de respostas, quando escolhemos escrever ao invés de reagir, estamos reorganizando o tempo, reinstaurando a possibilidade da consciência histórica. Porque sem atrito não há consciência. Sem lentidão não há elaboração. Sem negatividade não há transformação.


A ideologia da fricção zero impôs uma nova normatividade existencial. Não se trata apenas de funcionar. É preciso funcionar bem, funcionar rápido, funcionar sem pensar. A política cede espaço à performance. A escuta cede à resposta. O tempo da elaboração cede ao tempo da execução. E assim, pouco a pouco, deixamos de viver a história — e passamos a ser vividos por ela.


Produzir fricção nesse cenário é recuperar a política como conflito, como descontinuidade, como negação ativa do dado. É dizer que nem tudo precisa ser automático. Que nem tudo pode ser decidido por antecipação algorítmica. Que o erro, o cansaço, a hesitação, o impasse — essas experiências humanas fundamentais — são parte do processo de emancipação. Porque é no atrito que a subjetividade volta a respirar. E é só com ela desperta que a história pode voltar a acontecer.


Num mundo em que até a indignação é monetizada por plataformas, o verdadeiro gesto revolucionário pode ser a recusa em participar da aceleração contínua. Pode ser a criação de tempos outros. Pode ser a construção de espaços onde ainda seja possível tropeçar sem ser punido, duvidar sem ser corrigido, pensar sem ser interpretado por uma máquina.


Recusar a fricção falsa — aquela que o sistema encena para manter tudo como está — e reivindicar a fricção real — a que dói, a que exige, a que transforma — é uma forma de insurgência. Uma forma de dizer que a vida ainda nos pertence. Que o tempo ainda pode ser reaprendido. Que a política ainda pode ser reinventada.


Abraçar a fricção é insistir que a vida não cabe na antecipação. Que a liberdade não pode ser otimizada. Que o humano não será reduzido à função. A fricção, entendida aqui como campo de criação, de reinvenção e de confronto com a realidade, é a condição para a práxis. É o que nos devolve à condição de sujeitos históricos. E é por isso que hoje, mais do que nunca, é preciso lutar por ela.


Epílogo: semeando tempestades, colhendo céus


Há um momento, depois de toda fricção, em que o ar volta a entrar nos pulmões com outro peso. Um peso que não sufoca, mas sustenta. O corpo está cansado, sim, mas algo se reorganizou por dentro. Uma dobra se formou entre o que fomos forçados a ser e o que enfim nos autorizamos a descobrir. A vida ainda é dura, ainda exige, ainda fere. Mas agora ela pulsa com outra espessura. Porque o sujeito que renasce após o atrito já não é o mesmo.


Ele não voltou a ser o que era. Nem se tornou o que o sistema queria que fosse. Ele é outro. Ele hesita, demora, duvida, escuta. Ele criou fendas na rocha da fluidez. Abriu um espaço de respiração onde só havia automatismo. Semeou atrito onde tudo pedia deslize. E agora caminha — não com leveza programada, mas com densidade consciente.


Essa travessia não é individual. Ela é histórica. Ela é coletiva. Ela é política. O que estamos tentando fazer, neste ensaio, não é uma defesa da dor pelo sofrimento, nem da lentidão como fuga, nem da terra como romantismo. É um chamado para reorganizar a subjetividade a partir daquilo que nos foi expropriado: o direito de não funcionar como esperavam. O direito de falhar. O direito de não querer. O direito de sentir. O direito de existir fora do controle.


O mundo continuará tentando nos capturar. Continuará prometendo suavidade em troca da alma. Mas agora sabemos. Sabemos que o silêncio pode curar. Que a dúvida pode ser potência. Que o impasse pode ser criação. Que a fricção — quando vivida com consciência — é o terreno mais fértil da liberdade.


Semeamos tempestades. Porque era preciso romper o céu artificial do consenso. Porque era preciso rachar a lógica da fluidez com nossas perguntas. Porque era preciso sujar as mãos na terra da contradição. Mas agora, depois de tudo, vemos o céu. Não o céu idealizado dos aplicativos. Mas o céu real, irregular, instável, vivo.


O céu da história. O céu da práxis. O céu da fricção.


É nele que escolhemos continuar.





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