Bolsonarismo tenta emplacar nova Vaza Jato contra Moraes
- Sara e Rey
- há 8 horas
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Apresentado como “relatório investigativo”, o dossiê da Civilization Works contra Moraes virou peça central de uma audiência na Câmara usada pela extrema direita para atacar o STF, pedir anistia aos golpistas e tentar reescrever o 8 de janeiro
Contribuiu: Fernando Horta

A denúncia do think tank Civilization Works contra o ministro Alexandre de Moraes serviu como ponto de partida simbólico e político para a audiência pública realizada em 7 de agosto pela Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados. Sob a justificativa de debater violações processuais envolvendo os réus do 8 de janeiro, a sessão se transformou em palco de discursos inflamados, teorias conspiratórias e ataques diretos ao STF, à imprensa e ao próprio ministro. Coube ao deputado Coronel Meira (PL-PE) a condução da audiência, iniciada com uma invocação religiosa que conferiu tom solene e quase litúrgico ao encontro: “Vamos iniciar os trabalhos nessa tarde, pedindo a Deus que nos oriente como sempre, que nos proteja e que nos coloque no rumo certo para realmente a gente poder passar a viver uma democracia plena no nosso Brasil.” A menção direta à proteção divina, feita em tom solene e quase litúrgico, estabeleceu o clima espiritual da audiência, marcada por uma retórica de cruzada moral contra as instituições.”
A sessão teve participação de parlamentares, ativistas, advogados ligados à extrema direita e ex-detentos, que relataram supostos abusos nas prisões de envolvidos nos atos golpistas. Investigado por tentativa de golpe e pelo uso ilegal da Abin, o deputado Delegado Ramagem (PL-RJ) foi autor do Requerimento nº 134/2025, que propôs ouvir advogados e juristas ligados aos réus como forma de denunciar supostas violações ao devido processo legal. Outros dois requerimentos ampliaram o tom de ataque institucional: o Requerimento nº 247/2025, de Coronel Meira (PL-PE), baseado nas denúncias de Michael Shellenberger e David Ágape, e o Requerimento nº 248/2025, de Marcel van Hattem (Novo-RS), que pediu a convocação de jornalistas e do ex-chefe da Assessoria de Enfrentamento à Desinformação do TSE, Eduardo Tagliaferro. As falas dos parlamentares, estrategicamente alinhadas às denúncias do think tank Civilization Works, sustentaram a narrativa de que o STF criou uma 'força-tarefa judicial secreta' para legitimar prisões em massa com base em curtidas e postagens nas redes sociais. A ofensiva ocorreu em um momento em que o Congresso já estava simbolicamente ocupado por setores da extrema direita, fortalecidos politicamente após a decretação da prisão domiciliar de Jair Bolsonaro, que catalisou uma onda de mobilizações em sua defesa e reacendeu os discursos contra o Supremo Tribunal Federal. Em comum, a tese de que o Estado brasileiro teria se tornado um instrumento de repressão política contra conservadores, respaldada por documentos e declarações amplificados por veículos estrangeiros simpáticos à extrema direita, que acusam o STF de promover uma judicialização autoritária em parceria com big techs, o TSE e setores da imprensa tradicional.
O advogado/influencer Jeff Chiquini atacou diretamente a Procuradoria-Geral da República, acusando-a de omissão em relação a denúncias de tortura contra o ex-assessor Felipe Martins: “Felipe Martins foi preso por documentos sem validade por parte do Estado. Que Estado é esse que usa documento falso para acusar uma pessoa?”, questionou. Ele também afirmou que o ex-assessor do Planalto “trouxe esse fato [de tortura] e agora as autoridades querem investigar. Vão investigar.”
O ex-presidiário Jackson Rangel afirmou ter passado “368 dias trancafiado”, relatando que foi alimentado com “carne de cavalo”, perdeu 33 quilos, entrou em depressão e foi submetido a tratamento psiquiátrico. Ao lado de suas filhas, a esposa de outro detento identificado apenas como “Clezão” acusou, aos gritos, Alexandre de Moraes de ter “assassinado” seu marido nos porões do presídio.”.
A tônica dos discursos buscou construir uma narrativa de perseguição ideológica. “Nós enfrentamos a cortina de ferro da imprensa brasileira e da imprensa capixaba”, afirmou um dos oradores. Outro participante acusou Moraes de chefiar uma estrutura informal de censura e vigilância, citando nomes de assessores que teriam atuado em articulação com a Polícia Federal e o TSE para monitorar e punir críticos do Judiciário.
O conteúdo da audiência revelou um grau elevado de paranoia conspiratória. As falas escalaram em hostilidade: Moraes foi chamado de “ditador da toga”, “canalha” e “vilipendiador da Constituição”, acusado até de debochar de senadores e rasgar documentos públicos. Em dado momento, um dos participantes sugeriu: “A gente tem que isolar o Alexandre de Moraes. Eu gostaria de saber como ele recebe a remuneração dele. Isso é interesse público.”
A sessão também foi marcada por apelos explícitos à anistia de envolvidos no 8 de janeiro. “Eu peço que essa Casa de Leis insista na defesa desses perseguidos. Quando não há mais saídas jurídicas e recursais, a anistia é a única”, disse um dos oradores. A deputada Bia Kicis aplaudiu os discursos e afirmou que “hoje, mais do que restabelecer a justiça, precisamos restabelecer a paz e a dignidade desse país que está sendo aviltado a toda hora”.
A senadora Damares Alves também foi mencionada como participante ativa dos bastidores da audiência, embora tenha saído antes do fim. “Nós vamos visitar os presos dos Estados Unidos, mas no Brasil a gente não pode entrar. Como é que uma comissão de direitos humanos não pode entrar no presídio, gente?”, protestou uma parlamentar.
A sessão terminou com gritos de “Fora Alexandre de Moraes” e acusações de que o Brasil vive sob a “ditadura do pensamento único”. O deputado Marcel van Hattem defendeu que Alexandre seja “inscrito nos quadros de violadores das prerrogativas da advocacia” e cobrou o impeachment do ministro. O senador Eduardo Girão afirmou que “onde quer que estejamos, vamos proteger a população brasileira desses bandidos que aí estão, corruptos, larápios”.
Longe de promover um debate técnico sobre garantias processuais, a audiência revelou uma estratégia política de deslegitimação institucional. Transformou o espaço legislativo em arena de revanche simbólica contra o STF, com forte carga ideológica e apelos à impunidade.
A audiência ocorreu no mesmo dia em que circulavam novas denúncias contra o STF, e enquanto os autores da petição que acusa o tribunal de violações discursavam na Câmara. Parlamentares bolsonaristas seguem pressionando pela anistia dos réus do 8 de janeiro e pela abertura de uma CPI contra Moraes, em meio a uma escalada discursiva de confronto institucional.
Capítulo 1 - O tribunal informal da extrema direita

Marcada por depoimentos inflamados, apelos emocionais e promessas de provas jamais apresentadas, a audiência pública assumiu o formato de um tribunal informal, sem contraditório, com os convidados repetindo acusações já conhecidas sob a fachada de uma suposta cruzada em defesa da liberdade de expressão e da justiça.
O jornalista David Ágape, coautor, junto com Eli Vieira, do relatório investigativo publicado pela Civilization Works, deu início à escalada retórica acusando o STF de criar uma “força-tarefa paralela” para perseguir opositores políticos:
“O STF, mais especificamente o gabinete do ministro Alexandre de Moraes, criou uma força-tarefa paralela dentro do TSE para investigar os presos do 8 de janeiro (...) Nossa apuração mostra que esse gabinete informal, criado durante as eleições de 2022 para perseguir opositores do establishment, continuou ativo após a posse de Lula.”
Ele descreveu um suposto ambiente de espionagem institucional, com coerção a servidores públicos e decisões judiciais orientadas por critérios ideológicos:
“Durante a apuração, descobrimos que o TSE enviou solicitações para parceiros externos, pedindo que se infiltrassem como espiões em grupos privados de WhatsApp (...) O TSE, pelo menos durante a gestão de Moraes, foi desvirtuado. Tornou-se uma máquina de perseguição.”
“O STF não é Alexandre de Moraes. Todos devem ser responsabilizados pelo que fizeram. E essa hora está chegando.”
O jornalista Eli Vieira, coautor do relatório, reforçou o tom conspiratório com uma exposição baseada em trocas de mensagens e interpretações pessoais de dados extraoficiais, atribuindo motivações ideológicas às prisões:
“A primeira irregularidade foi o recebimento da lista de detidos via WhatsApp (...) Identificamos quatro indícios de que a prisão foi motivada por opinião política.”
“Esse projeto é antidemocrático, antiliberdade, e se quisermos ser uma democracia liberal de fato, precisamos estirpar esse mal pela raiz.”
A participação de Michael Shellenberger, fundador da Civilization Works e responsável pela publicação internacional do relatório, alinhou as denúncias a uma crítica geopolítica mais ampla:
“O que aconteceu no Brasil foi um ataque direto à democracia (...) As pessoas que fizeram falsas acusações de tentativa de golpe foram, na verdade, as que executaram um golpe real — um golpe para eliminar o candidato da oposição e destruir seu movimento.”
“A situação atual no Brasil está chamando atenção da mídia (...) Vivemos em países diferentes, mas estamos espiritualmente vinculados pelo compromisso com a liberdade e com a democracia.”
O deputado Coronel Meira (PL‑PE) aproveitou a audiência para repercutir uma notícia publicada durante a sessão, afirmando que o site Metrópoles acabara de divulgar a demissão do fotógrafo que registrou um gesto obsceno feito por Alexandre de Moraes durante um jogo entre Corinthians e Palmeiras, na Neo Química Arena, em 7 de agosto de 2025. A leitura da notícia, conduzida em tom dramático e acompanhada por interjeições coreografadas dos presentes, intensificou o clima de conspiração e paranoia da audiência. O caso envolvia o fotojornalista Alex Silva, demitido pelo Estadão uma semana após registrar o gesto de Moraes. Embora o jornal alegasse tratar-se de uma reestruturação interna sem relação com o episódio, o fotógrafo, com 23 anos de carreira, disse não ter sido informado sobre os motivos da demissão.
E concluiu com a defesa de um projeto de lei que institucionaliza a narrativa de perseguição:
“Entramos com um projeto de lei aqui na Câmara (...) que institui no Brasil o Dia do Preso Político. Então, o dia 9 de janeiro vai ficar registrado como o Dia do Preso Político no Brasil.”
O deputado Marcel van Hattem (Novo‑RS) lançou mão de uma manobra retórica ao afirmar, durante a audiência, que os Estados Unidos estariam prestes a anunciar “mais sete sanções” contra brasileiros com base na Lei Magnitsky. A declaração, feita sem apresentar qualquer comprovação, ampliou o clima conspiratório da sessão e foi usada como tentativa de conferir gravidade internacional a uma agenda legislativa de motivação política interna. Embora existam brasileiros incluídos em listas de sanções dos EUA, suas designações ocorreram sob outros marcos legais, voltados a crimes como terrorismo ou lavagem de dinheiro, e não com base na Lei Magnitsky.
Capítulo 2: Entre silêncios e distorções: o que o tal relatório não diz sobre o 8 de janeiro

O relatório “Arquivos de 8 de janeiro: por dentro da força-tarefa judicial secreta do Brasil para prisões em massa”, publicado pela Civilization Works e assinado por David Ágape e Eli Vieira, apresenta-se como peça investigativa, mas atua como artefato político. Sua estratégia consiste em inverter papéis, transformando golpistas em vítimas e instituições democráticas em agentes de repressão. Apesar de mobilizar linguagem jurídica e denunciar supostos abusos de poder por parte do STF, o relatório omite o contexto fático, manipula evidências, deslegitima o sistema judiciário brasileiro e tenta transfigurar um atentado à democracia em suposta perseguição política.
Omissão do contexto: o 8 de janeiro foi uma tentativa de golpe com planejamento documentado

O relatório da Civilization Works começa com a afirmação de que “milhares de apoiadores de Jair Bolsonaro, indignados com a suposta fraude eleitoral [...], invadiram prédios do governo em Brasília” e que “muitos eram idosos e nenhum estava armado”.A escolha por descrever os golpistas como “manifestantes indignados”, inofensivos e desarmados ignora a extensa documentação que comprova o caráter insurrecional dos atos. A operação contou com logística estruturada, financiamento empresarial, discursos públicos de incitação e convocação explícita à ruptura institucional.
A minuta golpista apreendida na casa de Anderson Torres, a invasão coordenada aos prédios dos Três Poderes, o fretamento de ônibus por empresários aliados e a omissão cúmplice de setores militares foram amplamente comprovados por CPIs, sentenças judiciais e pareceres do Ministério Público. Ao ignorar esse conjunto de evidências, o relatório escancara seu verdadeiro objetivo: reescrever o 8 de janeiro como protesto espontâneo reprimido pelo Estado.
Suposta “estrutura paralela” ignora o regime de exceção em flagrante

O relatório acusa Moraes de criar uma “estrutura paralela de inteligência” para conduzir uma repressão ilegal, desconsiderando que o ataque simultâneo aos Três Poderes justificou o uso do regime de flagrante. As prisões imediatas, seguidas de audiências de custódia, e a centralização inicial dos processos foram medidas públicas, documentadas e fundamentadas pela Constituição.
No direito brasileiro, o regime de flagrante permite prisões imediatas, com posterior audiência de custódia. A centralização inicial dos processos visou dar uniformidade e garantir celeridade na análise judicial, evitando a dispersão de decisões conflitantes. O próprio STF publicou, em 10 de janeiro de 2023, despacho público com a lista das medidas adotadas, inclusive com os fundamentos constitucionais e legais que sustentaram a centralização provisória das decisões cautelares.
A acusação de “prisões em massa” desconsidera as decisões individualizadas e as absolvições já proferidas

O relatório acusa o STF de prender arbitrariamente com base em relatórios “informais”, desconsiderando que centenas de absolvições já foram concedidas, que há medidas cautelares em curso, e que as decisões se apoiam em provas técnicas, perícias, rastreios e depoimentos. A afirmação de que “a maioria não havia cometido vandalismo” contradiz as sentenças já publicadas, que individualizaram condutas e aplicaram penas conforme a gravidade dos atos.
A acusação de que “a maioria não havia cometido vandalismo” também é falsa. As denúncias da PGR e as decisões judiciais se baseiam em laudos periciais, imagens de câmeras de segurança, postagens públicas, depoimentos e rastreios de celulares. Até junho de 2025, cerca de 2 mil pessoas foram denunciadas, das quais mais de 800 receberam penas por associação criminosa, dano qualificado, tentativa de abolição violenta do Estado de Direito e golpe de Estado. Outras centenas foram absolvidas ou receberam penas alternativas, o que comprova a individualização das decisões.
O uso de dados da base GestBio foi autorizado e restrito à identificação de réus em processo criminal

O relatório tenta caracterizar o uso da base biométrica do TSE como mecanismo clandestino de repressão. O que omite, porém, é que o uso da base GestBio foi autorizado formalmente pelo ministro relator, com finalidade exclusiva de identificação de presos em flagrante. A LGPD permite o tratamento de dados para cumprimento de obrigação legal, o que se aplica ao caso. Não há qualquer evidência de uso extrajudicial, político-partidário ou desvio funcional.
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), em seu Art. 7º, inciso III, permite o tratamento de dados pessoais para o cumprimento de obrigação legal ou regulatória. O uso da base se restringiu a essa finalidade e os dados foram acessados por servidores públicos em ambiente institucional controlado. Nenhuma prova apresentada pelo relatório comprova que houve uso para fins político-partidários ou desvios extrajudiciais.
A crítica ao modelo de audiência de custódia ignora a jurisprudência em situações excepcionais

O relatório acusa o STF de transformar audiências de custódia em simulações de legalidade, ignorando que o CNJ reconheceu a excepcionalidade do momento e que o próprio Supremo já aplicara modelos semelhantes em outros contextos de crise institucional. As audiências seguiram com presença de juízes, defensores e membros do MP, conforme exigido. A centralização de decisões está prevista no regimento interno do STF em casos de repercussão nacional e crimes contra a ordem democrática.
As audiências foram realizadas com a presença de juízes, defensores e membros do MP, respeitando os trâmites mínimos exigidos. O fato de Moraes centralizar decisões cautelares em um cenário de ataque coordenado às instituições está amparado pelo regimento interno do STF e pelos precedentes de casos de repercussão nacional. O que o relatório chama de "suspensão do juiz natural" foi, na verdade, a aplicação do juízo natural de competência do Supremo em matéria penal com réus relacionados a crimes contra a ordem democrática.
A acusação de “justiça seletiva” ignora o histórico e os parâmetros do próprio STF

Ao comparar os atos de 8 de janeiro com invasões passadas feitas por movimentos sociais — como o MST e outros grupos de esquerda — o relatório tenta relativizar a gravidade do episódio golpista, afirmando que os protestos da esquerda jamais receberam tratamento semelhante. Esta comparação ignora que:
Nenhuma ocupação do MST mirou simultaneamente os três poderes da República;
Nunca houve financiamento empresarial massivo e internacional para esses atos;
Não existiram planos de ruptura institucional, como a minuta golpista ou a tentativa de prisão do ministro Alexandre de Moraes.
A resposta institucional foi proporcional à gravidade do crime: tentativa de golpe de Estado, com ataque coordenado ao STF, vandalização da sede da Corte e depredação do Congresso. Não se trata de seletividade, mas de proporcionalidade à ameaça.
A tentativa de desacreditar o STF se alinha com uma ofensiva internacional contra a soberania do Judiciário brasileiro

O relatório se ancora em fontes ligadas a grupos de extrema direita nos Estados Unidos, como Michael Shellenberger, e integra uma ofensiva mais ampla contra o sistema judiciário brasileiro. A própria Civilizations Works, responsável pela publicação, tem atuação coordenada com o mesmo ecossistema de desinformação que impulsionou os ataques ao TSE nas eleições de 2022.
A acusação de que Moraes usou “um e-mail pessoal (alegemeos@uol.com.br) para receber dossiês clandestinos” tem nítido viés conspiratório e jamais foi comprovada por perícia. A escolha de divulgar o documento em dois idiomas, em portais alinhados com a extrema direita internacional, e com referências enviesadas ao caso de Donald Trump, reforça que se trata de uma peça de propaganda, não de jornalismo investigativo.
Entre a denúncia enviesada e o direito à verdade

O relatório da Civilization Works deve ser analisado como parte de uma estratégia de inversão simbólica: transformar os golpistas em vítimas e o STF em usurpador da democracia. Não se trata de corrigir abusos (que, se existirem, devem ser processados segundo os canais institucionais), mas de deslegitimar preventivamente o papel do Supreo na contenção do autoritarismo bolsonarista e na proteção do Estado de Direito.
A crítica legítima ao Judiciário não pode se confundir com ataques organizados à sua legitimidade. A tentativa de golpe de 8 de janeiro foi real, documentada e parte de uma engrenagem transnacional de extrema direita. O Judiciário brasileiro respondeu dentro de suas atribuições e, como qualquer poder, deve seguir sendo fiscalizado. Mas isso não autoriza a disseminação de peças acusatórias manipuladas, que, longe de promoverem justiça, apenas acobertam criminosos.
Capítulo 3: Civilization Works: um think tank obscuro

Think tanks surgiram, historicamente, como centros de pensamento estratégico e produção de conhecimento para subsidiar políticas públicas. Mas, no século XXI, essa definição foi sequestrada por estruturas altamente ideológicas, muitas vezes criadas como ferramentas de guerra híbrida, sem compromisso com a ciência, a verdade ou a democracia. Essas organizações operam sob a fachada da “neutralidade técnica”, mas escondem sua função real: desestabilizar instituições e plantar narrativas tóxicas no ecossistema da informação.
A Civilization Works é um exemplo emblemático desse novo tipo de think tank, sem sede física conhecida, sem lista pública de financiadores, sem corpo técnico visível, sem lastro acadêmico. Sua página oficial traz promessas vagas de “defesa da civilização” e “liberdade de expressão”, mas não apresenta nenhuma comprovação concreta de quem está por trás, qual sua metodologia de trabalho ou qual legitimidade científica ou institucional possui. Ou seja: um organismo de fachada, disfarçado de entidade civil, mas funcionando como instrumento tático da guerra cultural internacional promovida pela extrema direita global.
Esse modus operandi não é inédito. O que diferencia esses grupos é o fato de operarem em rede transnacional, com fluxos de financiamento opacos, servidores hospedados em jurisdições de proteção fiscal e narrativas estrategicamente construídas para atacar alvos políticos específicos, sempre em sintonia com os interesses do Vale do Silício, do lobby ultraliberal norte-americano, e de operadores do eixo MAGA / Steve Bannon / Peter Thiel. Quando atacam figuras públicas, instituições ou políticas sociais progressistas, não o fazem por acaso, fazem parte de uma ofensiva coordenada para destruir o campo democrático por dentro.
A Civilization Works é obscura porque precisa ser. A ausência de rastros, endereços, lideranças e financiadores é parte do seu design operacional. O que sabemos é que ela opera com linguagem estratégica da guerra cultural e alinhamento semântico com a ultradireita global. E agora, opera dentro do Brasil.
Quem é Eduardo Tagliaferro

Até pouco tempo atrás, o nome de Eduardo Tagliaferro era conhecido apenas nos bastidores da ciberinteligência institucional. Técnico, discreto, atuava como chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), estrutura criada durante a gestão do ministro Edson Fachin e intensificada sob Alexandre de Moraes. Seu trabalho era técnico, voltado ao mapeamento de redes de desinformação e proteção do processo democrático, especialmente durante o período eleitoral e os eventos que culminaram nos ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023.
No entanto, desde que deixou o TSE, Tagliaferro se tornou uma peça central numa narrativa cuidadosamente arquitetada. Reapareceu em 2025, agora exilado na Europa, com o perfil perfeito para alimentar uma operação internacional: ex-técnico com acesso privilegiado, alegando perseguição, e prometendo "revelações bombásticas" contra a Suprema Corte brasileira. É um enredo sob medida para alimentar o imaginário conspiratório da extrema direita nacional e internacional.
Mais do que um denunciante, Tagliaferro agora cumpre um papel simbólico: o do “arrependido técnico” que se volta contra as instituições que antes defendeu. Não é a primeira vez que isso ocorre, esse tipo de personagem é comum em campanhas de guerra híbrida: alguém que traz um suposto verniz técnico à denúncia, o suficiente para gerar manchetes, agitar redes sociais, abastecer influenciadores extremistas e produzir impacto na opinião pública, mesmo sem qualquer prova concreta.
Sua aliança com a Civilization Works, uma organização sem histórico institucional no Brasil, levanta todas as suspeitas. Por que ele escolheu justamente esse think tank obscuro para fazer suas denúncias? Por que divulgar documentos e acusações em inglês, em redes voltadas ao público internacional, ao invés de buscar os canais institucionais brasileiros? A resposta é política: a denúncia de Tagliaferro não visa justiça, visa desgaste. E seu discurso, ao ser amplificado por influenciadores bolsonaristas e veículos da ultradireita global, cumpre seu papel tático com precisão.
O que eles pretendem não depende de materialidade

O objetivo dessa operação é claro: deslegitimar Alexandre de Moraes como pilar de contenção institucional contra o avanço autoritário da extrema direita no Brasil. Ao construir uma narrativa internacional de “abusos” e “vigilância ilegal”, o que os operadores dessa trama almejam não é a justiça, é o descrédito. Querem transformar o ministro num símbolo da repressão judicial, apagar seu papel central na contenção do golpe de 2023 e convertê-lo em vilão da democracia. A aliança entre Eduardo Tagliaferro e a Civilization Works, organização sem sede, sem transparência, sem história, serve precisamente para isso: exportar a narrativa bolsonarista em embalagem global, dialogando com os ecos do trumpismo, com os algoritmos do Vale do Silício e com os operadores internacionais do lawfare.
Mas a pergunta-chave é: essa denúncia precisa de provas para cumprir seu papel? A resposta, infelizmente, é não. No campo da guerra híbrida, a verdade é irrelevante. O que importa é gerar ruído, fissurar instituições, plantar dúvida, alimentar redes de ódio e enfraquecer a confiança social. A desestabilização já é, por si só, o objetivo. Vivemos em tempos onde o simples ato de acusar, mesmo sem qualquer materialidade, é suficiente para produzir caos, pânico moral, narrativas virais e erosão institucional. E quanto mais sofisticadas forem as ferramentas tecnológicas e comunicacionais envolvidas, mais eficaz é a operação.
A verdade é que o Brasil se tornou laboratório da guerra híbrida internacional, onde think tanks fantasmas, influenciadores digitais e exilados performáticos articulam operações de desgaste contra a democracia, travestidas de denúncias técnicas. A Civilization Works não existe como espaço de reflexão. Ela existe como arma. É um instrumento da extrema direita transnacional, ideologicamente alinhada ao MAGA e à lógica tecnolibertária do Vale do Silício, que vê nas democracias do Sul Global apenas obstáculos ao domínio geopolítico e ao lucro irrestrito. Tagliaferro é apenas o rosto técnico de uma engrenagem maior, e sua denúncia, mesmo sem consistência, cumpre sua função: atacar, corroer e enfraquecer.
Diante disso, cabe ao jornalismo democrático, às forças progressistas e às instituições republicanas não subestimarem o inimigo. Essa não é só mais uma fake news. É uma ofensiva calculada, com financiamento, estratégia e objetivos geopolíticos. Se não for enfrentada com inteligência, verdade e firmeza, será apenas mais uma peça da engrenagem que quer ver a democracia brasileira de joelhos.
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