Cuidado: a CIA está de olho em você
- Rey Aragon

- 27 de jun.
- 8 min de leitura
Atualizado: 28 de jun.
Ex-agentes treinados para operar guerras psicológicas e sabotagem política agora controlam seu feed como se fosse território de guerra. Só que a guerra é contra você, e você nem percebeu que está no campo de batalha.

O escândalo que quase ninguém viu
Você provavelmente nunca ouviu falar de Aaron Berman. Mas ele, muito provavelmente, já decidiu o que você viu, ou deixou de ver nas redes sociais. Durante 15 anos, Berman foi analista sênior da CIA, envolvido na elaboração dos relatórios de inteligência diários entregues aos presidentes dos Estados Unidos. Hoje, ele é o chefe da equipe da Meta que determina o que deve ser classificado como desinformação no Facebook e no Instagram.
E ele não está sozinho.
Nos últimos anos, a Meta (holding que controla Facebook, Instagram e WhatsApp) recrutou discretamente dezenas de ex-agentes da CIA, do FBI e do Departamento de Defesa para cargos-chave nas áreas de moderação de conteúdo, segurança, confiança e definição de políticas públicas. A denúncia, feita em detalhes pela reportagem investigativa Meet the Ex-CIA Agents Deciding Facebook’s Content Policy (MintPress News, 2022), expôs uma estrutura que operava à vista de todos, mas que quase ninguém se deu ao trabalho de enxergar.
Esses agentes, que antes operavam guerras de informação nos bastidores da política externa norte-americana, agora comandam com autoridade e sigilo a máquina global de moderação das redes sociais mais acessadas do planeta. Eles não estão apenas apagando postagens. Estão escrevendo as regras. Decidindo o que é verdadeiro, o que pode circular, o que deve ser rotulado, escondido ou banido. Trata-se de uma nova arquitetura de controle, mais limpa, mais elegante e, sobretudo, mais eficaz do que os antigos modelos de censura estatal.
O mais grave? Nenhuma das grandes corporações de mídia tratou o caso como escândalo. Nenhuma CPI foi aberta. Nenhum chefe de Estado do Sul Global reagiu publicamente. Nenhuma matéria ganhou destaque nos telejornais. Se fosse uma infiltração russa, iraniana ou chinesa, seria manchete em todas as capas. Mas como se trata do “ocidente democrático”, o silêncio reina.
Só que esse silêncio é parte do problema.
Quem são eles? Os rostos da moderação securitária
Aaron Berman talvez seja apenas a face mais visível de algo muito maior. Depois de uma década e meia na CIA, envolvido diretamente com operações de inteligência e análise estratégica global, Berman assumiu, em 2019, a liderança da equipe de políticas de desinformação da Meta. Sua missão é escrever, revisar e aplicar as regras que definem o que pode ou não ser publicado nas maiores plataformas sociais do planeta. Em um vídeo institucional, ele descreve com naturalidade sua nova função: “Coordeno o time que determina as políticas sobre o que é considerado desinformação em nossas plataformas.”
A lista é longa e crescente: Emily Vacher, ex-agente do FBI por mais de uma década, hoje comanda áreas ligadas à segurança e confiança na Meta. Cameron Harris, que atuou como analista da CIA até 2019, passou a integrar projetos internos sobre credibilidade de informações. Scott Stern, Bryan Weisbard, Deborah Berman: todos com histórico em agências de inteligência, todos contratados para atuar diretamente em áreas ligadas à curadoria de conteúdo, análise de riscos informacionais e “integridade eleitoral”.
Em comum, eles compartilham algo além do currículo: são profissionais treinados para lidar com ameaças à segurança nacional dos Estados Unidos. Isso significa que, ao longo de suas carreiras, estiveram envolvidos com temas como contrainteligência, guerra psicológica, propaganda, vigilância e manipulação de narrativas: todas competências agora recicladas para o ambiente digital civil.
A pergunta inevitável é: por que uma empresa de tecnologia precisa de tantos ex-agentes de segurança nacional no comando da moderação de conteúdo? A resposta está longe de ser técnica. O que está em jogo é a transformação da moderação em um campo de operação política, onde o olhar treinado da inteligência substitui qualquer conceito público de liberdade de expressão. A plataforma já não atua apenas como intermediária neutra: ela assume o papel de árbitro global da verdade, com gente de Langley no centro da mesa.
É como colocar ex-militares da ditadura para decidir o que pode ou não ser publicado na imprensa democrática. Só que, desta vez, a censura vem vestida de "compliance".
De Langley a Menlo Park: como a inteligência virou moderação
Durante a Guerra Fria, a CIA treinou milhares de agentes para combater o “perigo comunista” em todo o mundo. Intervenções militares, sabotagens, infiltrações em sindicatos, campanhas de desinformação e assassinatos de lideranças populares eram considerados instrumentos legítimos da política externa norte-americana. O nome disso era doutrina. E ela funcionava. Funcionava tão bem que a América Latina foi uma de suas maiores vítimas, do golpe de 1964 no Brasil à Operação Condor no Cone Sul. Aquilo era o velho modelo: guerra suja, operações secretas, sangue e chumbo.
Mas o mundo mudou e a guerra também
Hoje, a guerra é silenciosa, algorítmica e digital. O inimigo já não precisa ser derrotado com tanques. Basta ser descredibilizado, silenciado, desmonetizado. A figura do soldado deu lugar ao engenheiro de dados; a do espião, ao moderador de conteúdo. E o centro de operações já não fica em Langley, sede da CIA, mas em Menlo Park, na Califórnia, onde fica a sede da Meta.
A migração de ex-agentes de inteligência para as big techs não é um desvio ocasional. É uma estratégia. Nos últimos anos, ex-funcionários da CIA, do FBI, da NSA e do Departamento de Defesa foram contratados em massa por empresas como Facebook, Twitter (X), Google e TikTok. Eles entraram pelas portas da frente, com crachás, salários e cargos com nomes bonitos: “gerente de integridade eleitoral”, “especialista em políticas de segurança” ou “chefe de confiança e autenticidade”.
No papel, a justificativa parece inquestionável: quem melhor para combater desinformação do que quem foi treinado para identificar ameaças à segurança nacional? Mas essa pergunta esconde outra, mais incômoda: quem define o que é ameaça? Quem decide o que é desinformação? Quem controla os critérios?
Quando as mesmas pessoas que serviram a governos envolvidos em guerras ilegais, operações psicológicas e espionagem global passam a controlar o que pode ou não ser dito no principal espaço público da contemporaneidade, temos um problema, um problema estrutural. Porque a lógica da inteligência militar não é compatível com o pluralismo democrático. Ela se baseia em segredo, controle, manipulação. Não em diálogo, transparência ou liberdade.
A digitalização da doutrina da segurança nacional vem ocorrendo diante de nossos olhos. Mas, agora, ela não usa o selo do Estado. Ela veste hoodie, senta em open space e se esconde atrás dos termos de uso de plataformas privadas que, na prática, funcionam como um braço invisível da política externa norte-americana.
Censura 5.0: quando a política de conteúdo serve ao império
Durante muito tempo, nos acostumamos a imaginar a censura como algo tosco, explícito: um agente do Estado apreendendo jornais, retirando livros de circulação, cortando trechos de músicas ou perseguindo artistas. A censura era algo que víamos e que, por isso, podia ser denunciada. Hoje, ela se tornou quase invisível. E exatamente por isso, mais perigosa.
A nova censura não precisa de polícia. Basta um clique. Uma diretriz. Um ajuste no algoritmo. Um novo filtro nas políticas de comunidade. Ou, simplesmente, o silêncio. É a censura 5.0: algoritmizada, personalizada, disfarçada de boa intenção.
A lógica por trás dessa nova forma de silenciamento não é mais estatal no sentido clássico — é corporativa, automatizada e globalizada. No caso da Meta, ela é também profundamente geopolítica. Ao colocar ex-agentes da CIA e de outros órgãos de inteligência no comando da moderação de conteúdo, a empresa transforma a definição do que é "desinformação" ou "discurso de ódio" em um exercício de poder imperial. Em vez de refletir valores democráticos universais, as diretrizes de conteúdo passam a refletir os interesses estratégicos dos Estados Unidos.
Quem define o que é ameaça à democracia? O que é interferência estrangeira? O que é conteúdo danoso? E, mais importante: contra quem essas categorias são aplicadas? Não é difícil perceber os padrões.
Páginas da esquerda global, movimentos anticapitalistas, canais de denúncia sobre Palestina, Venezuela, China, Irã ou Cuba vivem sob o risco constante de desmonetização, limitação de alcance ou exclusão. Já conteúdos de extrema-direita nos Estados Unidos, discursos de ódio racista ou campanhas coordenadas de desinformação sobre países do Sul Global muitas vezes permanecem intocados, ou recebem punições simbólicas, brandas, reversíveis.
Não se trata de erro técnico. Trata-se de assimetria política
A política de conteúdo das big techs não é neutra. E quando ela é comandada por quem foi treinado para defender, proteger e promover os interesses globais do império, o que temos não é moderação. É gestão algorítmica do consenso. É censura com carimbo do Vale do Silício. E, como toda censura sofisticada, ela não cala gritando. Ela apenas reduz o volume até que ninguém mais ouça.
O Brasil no alvo: quando o algoritmo fala inglês
A ideia de que decisões tomadas por executivos da Califórnia, com histórico em agências de segurança dos Estados Unidos, não teriam impacto direto sobre o debate público brasileiro é uma ilusão — e das mais perigosas. Na prática, o Brasil se tornou um laboratório privilegiado da guerra informacional global. Um campo de testes. Um espaço de modulação política em larga escala, operado sob a arquitetura de plataformas cujo idioma de origem é o inglês, mas cujas consequências reverberam em português e com efeitos devastadores.
Ao longo da última década, o Brasil foi palco de campanhas de desinformação massiva, manipulações eleitorais, sabotagens discursivas e, sobretudo, de uma profunda desestruturação da confiança pública. Parte desse processo foi orgânico, alimentado por redes políticas e interesses internos. Mas outra parte veio de fora e veio com o selo de validação dos algoritmos. O que é priorizado, o que é ocultado, o que é considerado confiável ou perigoso depende de parâmetros definidos nos centros imperiais da tecnologia, muitas vezes por pessoas que jamais pisaram em solo brasileiro, mas que tomam decisões que afetam diretamente nossa democracia.
Não é coincidência que páginas progressistas brasileiras enfrentem limitações de alcance sem explicação, enquanto influenciadores de extrema-direita, alinhados ao trumpismo global, consigam furar bolhas com enorme facilidade. O sistema de moderação não é apenas desigual, ele é geopoliticamente enviesado. E quando os algoritmos erram, ou "erram", o impacto é sentido nos bastidores das eleições, nas ruas polarizadas e na percepção coletiva da realidade.
Pior: quando se tenta contestar essa lógica, esbarra-se num muro de opacidade. O cidadão comum não sabe por que sua publicação foi retirada. O jornalista não consegue saber quem decidiu. O pesquisador não tem acesso às regras completas. E o Estado brasileiro, salvo raras exceções, assiste tudo de longe, omisso, como se a soberania informacional não fosse uma questão estratégica de primeira ordem.
O problema não é só o que as plataformas deixam passar. É o que elas decidem calar. E quando esse silêncio é produzido por estruturas informacionais comandadas por ex-agentes treinados para identificar inimigos do império, o risco não é apenas técnico. É existencial. Estamos sendo moderados por quem, historicamente, sempre quis nos controlar.
Por que você deveria se importar e o que podemos fazer?
Pode parecer distante, técnico ou até abstrato. Mas quando um grupo de ex-agentes da CIA treinados para operar guerras de informação, sabotar governos e fabricar consensos passa a controlar o que pode ou não ser dito nas plataformas que usamos todos os dias, isso diz respeito a todos nós. Porque não estamos falando apenas de “política de conteúdo”. Estamos falando de soberania, liberdade, democracia e verdade.
Hoje, a maior parte do que se chama de “debate público” acontece dentro de plataformas privadas. São nelas que as pessoas se informam, formam opinião, discutem política, se mobilizam. Se o ambiente onde isso ocorre é controlado por critérios ideológicos importados, sem transparência, sem regulação, sem accountability, qual o sentido de ainda falarmos em liberdade de expressão? Quem define o que é perigoso? Quem decide o que é aceitável? Quem tem o poder de banir uma ideia da arena pública e com base em que interesses?
A grande armadilha é fazer parecer que tudo isso é neutro, técnico, automático. Mas não é. É político. É geopolítico. É uma nova forma de colonialismo, em que a ocupação não se dá mais com armas, mas com dados, diretrizes e decisões invisíveis. E como todo projeto colonial, ele precisa de silêncio para prosperar.
Por isso, é preciso reagir. Exigir transparência total sobre os processos de moderação. Saber quem define as regras, com base em que critérios, e com quais interesses por trás. É preciso pressionar por regulação que enfrente o poder abusivo das plataformas, não para censurá-las, mas para evitar que continuem censurando sob o disfarce da segurança. É preciso recuperar o controle público sobre o espaço público digital.
Mas, acima de tudo, é preciso abrir os olhos. E nunca mais achar normal que nossos discursos, nossas ideias, nossas formas de existir sejam filtradas por quem sempre nos viu como ameaça.
Referências:
https://www.mintpressnews.com/meet-ex-cia-agents-deciding-facebook-content-policy/281307
https://znetwork.org/znetarticle/meet-the-ex-cia-agents-deciding-facebooks-content-policy-2
https://the-citizens.com/action/real-facebook-oversight-board
https://www.wired.com/story/facebook-knows-more-about-you-than-cia
https://orinocotribune.com/meet-the-ex-cia-agents-deciding-facebooks-content-policy
https://leaders.com/news/tech/cia-agent-joins-facebooks-info-crusade




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