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Do túnel ao token: como o Brasil passou a ser roubado sem barulho

  • Foto do escritor: Sara Goes
    Sara Goes
  • 4 de jul.
  • 4 min de leitura

Em 2005, o assalto ao Banco Central teve túnel, tapioca e fiado. Em 2025, veio sem rosto, sem alarme e sem memória. Um roubo bilionário dentro do próprio sistema financeiro expõe a rendição silenciosa do Estado na era digital

Em 2005, eu estudava em duas universidades públicas e estagiava em um projeto de inclusão digital para adultos. Era o Brasil de pleno emprego e poder de compra, com um governo acusado de destruir o país enquanto nos permitia viver com dignidade. Eu tinha vinte anos e levava uma rotina intensa, dividida entre aulas, vinholadas, um namoro que virou casamento e ônibus lotado. Nos intervalos, Marlboro Light e conversa fiada. Foi num desses momentos que um amigo me contou, com naturalidade, que estava sendo seguido pela Polícia Federal.

A mãe dele vendia tapioca e café em um carrinho de rua, na frente do escritório de contabilidade do pai, que funcionava na própria casa da família. Era daqueles escritórios simples, sem placa na fachada, um computador na sala e prateleiras cheias de pastas com declaração do Imposto de Renda da rua inteira feita por quem conhece cada CPF pelo nome. Na mesma rua, sob a fachada de uma empresa de grama sintética, ladrões cavavam um túnel de 78 metros em direção ao cofre do Banco Central. Durante três meses, tomaram café, comeram tapioca e compraram fiado com a senhora. Ela se queixava da exploração, dizia que os homens trabalhavam demais e nunca tinham dinheiro. Quando o túnel ficou pronto, saíram com 164,7 milhões de reais em espécie, sem disparar um único alarme. O assalto virou filme, disco, livro e mudou o clima de Fortaleza por meses. A cidade ficou suspensa entre a paranoia e o desejo, como se cada um pudesse esbarrar com parte da botija.

Depois do assalto, a Polícia Federal interrogou a família do meu amigo em horários aleatórios, seguiu seus passos, frequentou seus trajetos. Com o tempo, os agentes à paisana se tornaram parte da paisagem. Além do susto, a senhora ficou magoada porque aqueles homens sumiram sem pagar o fiado. O prejuízo era pequeno, mas simbólico. Ela não queria parte do roubo, queria apenas o que lhe era devido. Um crime que cruzou o cotidiano das pessoas comuns, com seus rastros e laços, com suas contradições visíveis e humanas.

Vinte anos depois, outro assalto ao Banco Central. Sem café, sem tapioca, sem rosto. Uma transferência ilegal de bilhões de reais, operada em silêncio dentro do sistema de liquidação de reservas. O roubo não atingiu agências, nem caixas eletrônicos, nem clientes. Mirou direto no coração do sistema financeiro nacional. Nenhum banco sofreu perda visível. Nenhum alarme soou. Apenas o núcleo do Banco Central, que viu bilhões evaporarem de contas que só deveriam existir no plano da segurança máxima.

O episódio desmonta a ficção tecnocrática de que a digitalização é, por si só, sinônimo de eficiência e modernidade. Quando o Estado terceiriza a operação de suas infraestruturas críticas, ele terceiriza também o poder. E poder, no mundo digital, não está apenas nos cargos ou nas leis, mas no controle sobre códigos, protocolos e fluxos de informação. Ao confiar a operação do sistema de pagamentos a empresas privadas, nacionais ou estrangeiras, o Estado abre mão da possibilidade de garantir por si mesmo a integridade dos dados que sustentam a economia.

A invasão revela que o Banco Central, ao mesmo tempo que regula e fiscaliza, não domina tecnicamente o que opera. Depende de terceiros, contratos opacos e tecnologias que não controla de ponta a ponta. Não por acaso, o ataque atingiu um ponto que deveria ser intocável, as reservas bancárias em trânsito entre instituições financeiras. E mais grave ainda, ele passou despercebido até que os valores já estivessem fora de alcance. O maior ataque hacker da história do país não vai gerar CPI, nem manchete indignada na capa da Veja, nem verbos inflamados nos editoriais. Vai sumir como sumiu o dinheiro, dissolvido na névoa técnica onde tudo parece acidente ou falha sistêmica.

Esse é o ponto de contato com a luta por soberania informacional. Soberania, nesse caso, não é apenas defender dados públicos contra o uso indevido por big techs. É garantir que as funções vitais do Estado, arrecadação, pagamento, justiça, eleições, segurança, sejam operadas por sistemas auditáveis, autônomos, geridos por servidores públicos sob controle democrático. Não basta o dado estar “no Brasil”. É preciso que esteja sob custódia pública, com capacidade de resposta e vigilância permanente.

O ataque que drenou bilhões do Banco Central sem que os bancos percebessem também drena a legitimidade de um modelo de governança digital que vendeu a ilusão da neutralidade técnica. A infraestrutura não é neutra. Ela é política. E o que está em jogo não é só o dinheiro que sumiu, é a possibilidade do Estado brasileiro continuar existindo como entidade soberana na era dos sistemas.

Quando o núcleo do sistema financeiro pode ser violado por meio de uma empresa terceirizada e as reservas da República podem ser lavadas em tokens criptografados, o que resta da autoridade pública? Em nome da eficiência, terceirizou-se a espinha dorsal do Estado. E agora, diante da invasão, o silêncio dos bancos revela quem ainda se protege, e quem ficou vulnerável.

Todos os envolvidos no assalto de 2005 foram mortos ou presos, e a fantasia se dissolveu na mesma lama por onde passaram. Ainda assim, permanece um desejo coletivo mal resolvido, uma pulsão popular que vibra diante de cada jutiçamento simbólico do sistema financeiro. Especialmente agora, em tempos de taxação BBB, quando até o Planalto exibe cartazes pedindo o óbvio: que os ricos paguem imposto. No assalto real, houve fiado, fumaça e memória. Todos os envolvidos, um por um, tiveram um fim trágico. No digital, não houve sequer vestígio. Um país que antes era atravessado por histórias agora é perfurado por algoritmos que não deixam nem lastro, nem rastro.


 
 
 

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