Intimidade à venda: proposta de lei levanta alerta sobre exploração de dados
- Redação

- 13 de ago.
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Especialistas alertam que o PLP 234 de 2023, apresentado como “empoderamento de dados”, pode legalizar a exploração comercial da intimidade dos brasileiros e ampliar a desigualdade no ambiente digital

Por Fabiana Cunha, Henrique Pinto Coelho, Raquel Rachid e Leandro Modolo
Sua vida digital pode virar moeda de troca. O Projeto de Lei Complementar 234 de 2023, apresentado pelo deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), propõe que cada cidadão possa negociar suas informações pessoais em uma plataforma nacional administrada pelo poder público. O governo chama isso de empoderamento de dados, mas especialistas alertam que, na prática, a medida pode abrir caminho para transformar a intimidade em produto e o brasileiro em fornecedor compulsório de informações.
A proposta altera legislações como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor, abrindo caminho para que cidadãos negociem suas informações pessoais por meio de uma plataforma nacional administrada pelo poder público. Nesse modelo, o titular dos dados poderia autorizar empresas a utilizarem suas informações mediante pagamento, com incidência de uma contribuição específica destinada à Seguridade Social. O texto prevê alíquotas de Cofins que variam entre 10% e 12% sobre a receita de empresas que explorem dados de mais de cinquenta mil titulares. A abrangência inclui não apenas pessoas físicas, mas também proprietários de dispositivos conectados, como equipamentos de Internet das Coisas e máquinas que trocam informações entre si.
A Nota Técnica publicada em 28 de julho de 2025 pela Estratégia Latino-Americana em Inteligência Artificial (ELA-IA) e pelo Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN), assinada por Fernanda Ribeiro, Mariana Valente, Iason Gabriel, Rafael Zanatta, Pedro Augusto P. Pereira e Sérgio Amadeu da Silveira, adverte que a proposta vai muito além de uma inovação regulatória e representa riscos concretos à proteção de dados pessoais e à privacidade. Os especialistas afirmam que, embora o discurso oficial fale em empoderar o cidadão, a realidade do mercado digital é marcada por forte assimetria de poder e informação. Nesse cenário, vender dados pode não ser uma escolha livre, mas sim uma imposição econômica ou tecnológica, o que transforma a intimidade em mercadoria e o cidadão em fornecedor compulsório de dados.
O documento alerta que a suposta autonomia oferecida pela lei pode ser ilusória. Empresas com poder econômico e tecnológico consolidado podem se aproveitar da fragilidade regulatória para induzir titulares a negociar informações sem plena compreensão dos riscos. A ausência de definições claras sobre conceitos como agregação e custódia de dados aumenta a incerteza e cria espaço para interpretações que favoreçam interesses comerciais. A própria plataforma oficial de negociação, prevista no projeto, pode se converter em um instrumento de legitimação de práticas abusivas, uma vez que a relação entre empresas e cidadãos não se dá em condições iguais.
A tributação prevista, ainda que apresentada como uma forma de redistribuição e fortalecimento da Seguridade Social, levanta questionamentos sobre seu impacto real. Sem mecanismos de proteção, há possibilidade de que o custo seja repassado ao consumidor final. Além disso, ao tributar diretamente a exploração de dados pessoais, o Estado corre o risco de institucionalizar a lógica de que a coleta massiva e o uso econômico dessas informações são atividades legítimas e desejáveis, mesmo quando envolvem dados sensíveis. Para os autores da nota, é fundamental avaliar as implicações éticas e sociais desse modelo, pois a privacidade não deve ser tratada como recurso negociável sem salvaguardas sólidas.
Outro aspecto central é a tramitação acelerada do projeto no Congresso Nacional. O PLP 234 de 2023 precisa passar por comissões como Defesa do Consumidor, Comunicação, Ciência e Tecnologia, Finanças e Constituição e Justiça. Entretanto, segundo a nota técnica, o debate público sobre a proposta ainda é insuficiente, e não houve participação ampla da sociedade civil, da academia e de organizações de direitos digitais. Os autores defendem que essa discussão seja precedida de estudos de impacto e consultas públicas, com transparência e diversidade de vozes, para que a regulação do mercado de dados seja construída de forma democrática e baseada em evidências.
A nota técnica enfatiza que a relação entre Estado, empresas e cidadãos não pode ser reduzida à lógica de mercado. Dados pessoais não são apenas um ativo econômico, mas um elemento central da identidade, da dignidade e da autonomia de cada indivíduo. Sem garantias robustas de proteção, transparência e equidade, a promessa de empoderamento corre o risco de se tornar um instrumento para aprofundar vulnerabilidades já presentes no ecossistema digital. A proposta, no formato atual, pode significar que o preço da inclusão digital seja a renúncia à própria privacidade.




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