O ouro falso da ostentação: o funk, o trap e a vitrine do capital
- Heitor Aragon

- há 20 horas
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Enquanto o sistema vende o sonho da liberdade através do consumo, o som das periferias luta pra não ser engolido pela própria vitrine.
O ouro falso da ostentação: quando o funk vira vitrine do capital Não dá pra culpar o moleque da quebrada por querer vencer. Num país em que o elevador social foi arrancado do prédio, o mínimo que se espera é que alguém tente subir pelas escadas mesmo que elas estejam quebradas. É aí que o funk, nascido como grito de resistência e afirmação da favela, começou a ser transformado em mercadoria.
A indústria cultural, com seu faro apurado pra lucrar com tudo que pulsa, percebeu o potencial de transformar o sonho da favela em produto. As marcas, os carros importados, os cordões de ouro tudo isso virou parte da estética da vitória vendida pelo capitalismo. Mas é importante entender: isso não é “culpa” do artista. É sintoma. O sistema coopta o desejo legítimo de quem quer sair da miséria e o transforma em propaganda de consumo.
O “favela venceu” virou slogan de marketing. A ostentação virou a única narrativa possível de sucesso. E no fundo, é cruel porque o próprio sistema que exclui o favelado é o mesmo que o usa como símbolo de superação, enquanto segue explorando o resto.
O funk não perdeu sua essência: ela só foi embalada pra presente e vendida no shopping. Entre o brilho do ouro e o eco do tamborzão, existe um povo tentando sobreviver e é esse povo que o capitalismo tenta calar com cifras e likes.
O império do consumo e a hegemonia do “eu”
Gramsci já avisava: o poder não se mantém só pela força, mas pelo consenso, pela hegemonia cultural. E no Brasil de hoje, essa hegemonia usa corrente de ouro, perfume caro e legenda no Instagram.
O funk e o trap, quando entram na engrenagem do mercado, passam a ser não apenas sons, mas formas de ensinar a desejar. O capital precisa vender o sonho antes de vender o produto e é aí que a ostentação entra como ideologia. A ideia de que “vencer” é ostentar, de que “liberdade” é poder consumir, e de que o “sucesso” é individual, vira um dogma cultural.
A coletividade que antes movia o morro, o baile, o movimento é substituída pelo culto ao eu. O sistema faz o trabalhador acreditar que o problema não é o patrão, é a falta de esforço. Que a pobreza é falha pessoal, e não projeto político.
É a velha tática do capital: transformar desigualdade em narrativa de mérito.
No fim, o sujeito não quer mais mudar o sistema quer vencer dentro dele.
E essa é a vitória perfeita do capital: quando o oprimido passa a desejar os mesmos símbolos que o oprimem.
Funk e trap conscientes: quando o baile vira espaço de pensamento
Mesmo dentro da lógica do mercado, há quem use o beat pra fazer o povo pensar.
O funk e o trap conscientes nascem dessa contradição: a de usar a mesma base que o capital transformou em produto pra lançar ideias, provocações e críticas sociais.
É a juventude periférica transformando a dor em discurso, a revolta em som, a realidade em verso.
Essas músicas não se colocam “acima” da ostentação elas a enfrentam de dentro, questionando o próprio sistema que vende o luxo como vitória.
Enquanto o mercado transforma tudo em performance e consumo, o som consciente devolve sentido à palavra: fala de injustiça, de política, de futuro, não como pregação, mas como experiência de quem vive o que canta.
O algoritmo pode até tentar decidir o que é sucesso, mas não consegue medir a força simbólica de um refrão que carrega consciência. O baile, antes visto como espaço de alienação, é também lugar de debate, de arte e de resistência. Porque quando o povo pensa dançando, o sistema treme e o grave vira mais do que som: vira movimento.




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