O Senhor dos Atos Falhos
- Sara Goes
- há 1 hora
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Ao citar Tolkien para defender seu cliente no julgamento da trama golpista, o advogado expôs, sem querer, os atos falhos de sua própria metáfora
A comparação feita pelo advogado Igor Vasconcelos Laboissieri durante o julgamento do tenente-coronel Sérgio Cavalieri levou para o Supremo Tribunal Federal um trecho de As Duas Torres, parte da obra O Senhor dos Anéis. Para a maior parte do público, esse universo se resume às cenas grandiosas dos filmes dirigidos por Peter Jackson, lançados entre 2001 e 2003, uma trilogia que consumiu valores de produção astronômicos e ampliou a popularidade mundial da história. Mas o romance de J. R. R. Tolkien, filólogo e professor de Oxford, nasceu de um trabalho minucioso de criação linguística e cultural. Toda a ambientação, das linhagens às línguas, foi criada por alguém que estudava profundamente a história da linguagem. A obra literária é, portanto, muito mais complexa e densa do que a adaptação cinematográfica sugere.
Nesse universo, personagens icônicos não existem apenas como figuras de fantasia, mas como funções narrativas que representam forças morais e políticas. Há o mago que guia os povos livres, o líder corrompido que abandona a ética para servir ao poder absoluto, o herói improvável encarregado de destruir o artefato que ameaça o mundo e o protetor da natureza que observa lentamente a destruição até perceber que não pode mais hesitar. Essa estrutura narrativa ajuda a contextualizar a cena evocada pelo advogado, em que o protetor da natureza, o guardião conhecido como Barbárvore, afirma que a palavra “morro” é apressada demais para descrever algo com tamanha história. No livro, essa fala não se refere a crimes ou responsabilidades jurídicas, mas ao tempo profundo da terra, algo muito distante de processos democráticos.
Ao trazer esse trecho, o advogado não comete um erro de interpretação, mas em um ato falho demonstra que fez uma escolha ideológica clara. A intenção é suavizar, com uma metáfora poética, a gravidade da conduta investigada, transformando um conjunto de ações golpistas em algo supostamente complexo demais para ser nomeado com precisão. O morro não é o réu e tampouco sua trajetória. O morro é a tentativa de renomear o crime, de reduzir o ato político e jurídico de uma articulação golpista a uma elevação inofensiva.
Para compreender por que isso não se sustenta, vale explicar de forma transparente o ponto central da obra. O Senhor dos Anéis conta a história da disputa pelo controle de um artefato criado por um líder que se corrompeu e transformou sua busca por ordem em tirania. Há uma guerra pela sobrevivência da democracia fantástica daquele mundo e uma escolha constante entre ação e omissão. O protetor da natureza hesita até perceber que sua floresta está sob ataque real, momento em que abandona a contemplação, convoca seu povo e marcha contra a fortaleza inimiga. Não existe passividade virtuosa na obra. Quando a ameaça se impõe, agir é o único caminho.
No julgamento brasileiro, a tentativa de golpe não é uma alegoria. É uma sequência de atos planejados, descritos nos autos do STF e pela Procuradoria-Geral da República como a articulação de uma organização criminosa. Dentro dessa estrutura, o chamado Núcleo 3 tem papel definido. Esse grupo é descrito como responsável por coletar informações sensíveis, monitorar autoridades, planejar prisões ilegais e executar a transição entre a guerra cognitiva e as ações operacionais de ruptura. São operadores treinados em táticas de guerra híbrida e psicológica, alinhados ao objetivo político de impedir o funcionamento das instituições democráticas. Essa função, em uma leitura analógica, corresponderia à tropa clandestina que serve ao tirano na narrativa fantástica.
Se a defesa quis brincar de comparação literária, então a própria lógica da obra obriga a ampliar a analogia. Quem ocupa na política brasileira o papel do líder corrompido que tenta se manter no poder a qualquer custo seria aquele que, segundo denúncias e votos já registrados, insuflou ataques às urnas, estimulou desconfiança contra o sistema eleitoral e encorajou atos de ruptura. É justamente esse personagem real que o ministro Luiz Fux procurou proteger com um voto de quase catorze horas, repleto de repetições e malabarismos retóricos, destinado a afastar a responsabilidade daquele que deu causa à cadeia de eventos golpistas.
Nesse cenário, o ministro Fux não aparece como um guardião da democracia. Sua atuação se aproxima justamente da figura que relativiza a ameaça, que tenta negar a articulação golpista e que se vale de longas digressões para suavizar o ataque praticado. Se a leitura proposta pela defesa for levada adiante, o Fux ocuparia o papel de quem, no romance, se recusa a reconhecer a devastação mesmo quando ela já se revela evidente. Ele não é o protetor da natureza. Ele é o intérprete literalista que insiste em ignorar o poder destrutivo do artefato nas mãos do tirano, um defensor do golpe que tenta minimizar a marcha que levou às portas da ruptura.
A metáfora, portanto, volta-se contra quem a invocou. O advogado escolheu um trecho que fala sobre a lentidão da terra para defender uma tese sobre prudência judicial, mas o enredo da obra mostra exatamente o oposto. Mostra que, diante da destruição, a hesitação é cumplicidade. Mostra que o mundo só resiste quando as forças livres reconhecem a ameaça e agem. Mostra que contemplar demais aquilo que avança para destruir tudo não é sabedoria, mas ingenuidade.
O STF não julga um morro, muito menos uma colina poética. Julga uma tentativa real de derrubar a ordem democrática. Ao contrário do que sugere a defesa, não faltam elementos históricos para compreender o que aconteceu. Os fatos estão documentados. Os papéis estão atribuídos. O enredo é claro. É a tentativa de transformar um ataque à República em metáfora lírica que não resiste a nenhuma leitura consistente, nem literária, nem jurídica, nem política.
Se alguém tentou ocultar a devastação com palavras bonitas, a literatura de Tolkien oferece justamente a lição contrária. Quando uma ameaça organizada se apresenta, a demora não salva ninguém. Ela apenas favorece aqueles que pretendem destruir o que existe.




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