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Precisamos falar sobre Flávio Bolsonaro

  • Foto do escritor: Sara Goes
    Sara Goes
  • 21 de ago.
  • 8 min de leitura

Flávio Bolsonaro costura a articulação internacional do bolsonarismo, transformando segurança pública em plataforma política e abrindo espaço para a ingerência dos EUA no Brasil


Pouco depois de Camilo Santana assumir o Ministério da Educação e Augusta Brito ocupar sua vaga no Senado, uma cena aparentemente banal chamou minha atenção no plenário. Enquanto a maioria dos senadores se agitava em insultos e especulações sobre a futura sabatina de Cristiano Zanin para o STF, Flávio Bolsonaro conversava de forma surpreendentemente cordial com a senadora cearense. Conhecida por sua firmeza, ex-PCdoB e agora integrante do PT, Augusta era uma figura distante do universo bolsonarista.

Um funcionário circulava servindo café. Alguns senadores sequer olhavam para ele, outros apenas abriam espaço para a xícara. Flávio, ao contrário, cumprimentou o servidor com atenção e pareceu apresentá-lo a Augusta Brito, que acompanhou o gesto com simpatia. O contraste era evidente: em meio a um ambiente de tensão, marcado por hostilidade e cálculo, o filho mais velho de Jair Bolsonaro surgia como alguém capaz de construir pontes discretas, quase imperceptíveis, mas politicamente reveladoras.

Esse pequeno episódio, perdido na rotina do Senado, ilustra o modo como Flávio Bolsonaro opera: sem arroubos, sem escândalos, cultivando conexões em gestos laterais. Uma forma de política subterrânea que, longe de ser irrelevante, ajuda a explicar como ele se tornou o herdeiro mais funcional do espólio bolsonarista.


Longe da baixaria

Em mensagens interceptadas pela Polícia Federal, o deputado Eduardo Bolsonaro atacou o próprio pai, Jair Bolsonaro, em 15 de julho de 2025. Escreveu: “VTNC SEU INGRATO DO CARALHO!”, e prosseguiu, “Me fudendo aqui! Você ainda te ajuda a se fuder aí! Se o IMATURO do seu filho de 40 anos não puder encontrar com os caras aqui, PORQUE VOCÊ ME JOGA PRA BAIXO, quem vai se fuder é você E VAI DECRETAR O RESTO DA MINHA VIDA NESTA PORRA AQUI!”. O tom da mensagem evidencia a intensidade das disputas internas da família que, vez ou outra, ultrapassam os bastidores.

Os choques entre Jair e seus filhos não surgiram agora. A mensagem de Eduardo, capturada pela Polícia Federal em julho de 2025, apenas atualiza um padrão antigo. Em 2017, diante de uma crise, Jair chegou a dizer a Eduardo que não iria visitá-lo na Papuda caso fosse preso. Três anos depois, em 2020, orientou Gustavo Bebianno a processar Carlos Bolsonaro, chamando o filho de “moleque” que precisava aprender limites. Essas passagens revelam que, longe da imagem de coesão, a relação entre o pai e os filhos sempre foi atravessada por choques de autoridade e de poder.

A mesma lógica que aparece na mensagem de Eduardo contra Jair também se manifesta nas disputas entre irmãos. Um exemplo emblemático ocorreu em 2017, quando o fotógrafo Lula Marques registrou uma cena no plenário da Câmara e acabou virando pivô de uma briga pública entre Carlos e Eduardo. Os dois trocaram ataques nas redes sociais, disputando quem teria mais peso na comunicação digital do clã. Esse episódio antecipou o formato atual da divisão de funções e mostrou que a guerra de influência dentro da família não era exceção, mas parte da rotina.

Os filhos também mantêm uma relação conflituosa com Michelle Bolsonaro. Episódios relatados mostram resistências e até boicotes à madrasta, que nunca foi plenamente aceita pelo clã. As rusgas se intensificaram em momentos simbólicos, como nas festas de fim de ano, em que os filhos evitaram confraternizar com ela, revelando o distanciamento e a tensão velada. No episódio da falsificação do cartão de vacina, a atitude de Michelle expôs ainda mais a fragilidade dessa relação. Em vez de defender Jair ou demonstrar zelo pela filha Laura, preferiu se isentar da investigação declarando que já havia se vacinado, deslocando para si mesma a blindagem e deixando marido e filha expostos à crise.

Em meio a tantos barracos e brigas que marcaram Jair com os filhos, os filhos entre si e até com Michelle, nem mesmo Laura é poupada. A adolescente é sumariamente ignorada, até mesmo em situações em que supostamente teria sofrido discriminação. Nesse quadro de disputas permanentes, Flávio Bolsonaro, o zero um, segue como exceção. É o único que permanece ileso das baixarias familiares, preservando uma imagem distante das disputas mais viscerais do clã.

Ponte RJ / EUA

Flávio construiu essa posição a partir de uma trajetória própria. Formado em direito e empresário, elegeu-se deputado estadual no Rio em 2002, ainda jovem, e permaneceu por quatro mandatos consecutivos. Durante esse período, consolidou laços com setores empresariais, forças de segurança e o Judiciário fluminense. Essa formação moldou o contraste com os irmãos: enquanto Eduardo assumiu o papel de agitador ideológico e Carlos o de operador digital, Flávio cultivou a imagem de político institucional, com trânsito em Brasília e capacidade de articulação legislativa. Essa combinação lhe deu o papel de fiador do clã nos espaços formais de poder.

A engrenagem internacional que envolve o bolsonarismo se articula diretamente com o trumpismo. Eduardo é o representante natural dessa conexão, mas Flávio traduz a retórica externa em movimento político interno. Sua aposta mais ousada nesse sentido é a tentativa de importar a doutrina de segurança dos Estados Unidos para o Brasil, por meio da reclassificação das facções criminosas como organizações terroristas. Essa manobra não é apenas semântica, mas uma chave de alinhamento. Ao reproduzir o discurso norte-americano, Flávio se apresenta como defensor de um Brasil que precisa se integrar a uma agenda global de combate ao chamado narcoterrorismo, mesmo que isso contrarie a legislação brasileira e a posição oficial do governo Lula.

O ponto de inflexão ocorreu em maio de 2025, quando o governo do Rio de Janeiro produziu um relatório internacionalizando a guerra contra o crime, com apoio explícito de Flávio. O documento afirmava que cerca de 90% dos fuzis apreendidos em 2024 eram de origem norte-americana e introduzia a tese de conexões entre PCC, CV e o Hezbollah. Na condição de presidente da Comissão de Segurança Pública do Senado, Flávio defendeu que o relatório fosse levado diretamente a Washington, contornando o governo federal. A operação fluminense foi descrita como paradiplomacia, e de fato assim se configurou: ao falar por um estado, abriu-se uma trilha internacional de segurança que fragilizou a unidade da política externa brasileira. A narrativa não era apenas policial, mas eleitoral. Transformava a violência do Rio em tema global e oferecia aos EUA a corresponsabilidade por uma guerra que, até então, permanecia doméstica.

Esse movimento expõe o peso de Flávio como operador político do clã. Ao contrário de Eduardo, cuja atuação é marcada pelo histrionismo nas redes, o Zero Um constrói sua força no campo institucional e se apresenta como articulador internacional. Nesse contexto, até sua esposa, Fernanda Bolsonaro, acabou associada a essa engrenagem. Em 2020, a oposição denunciou tentativas de blindagem em torno dela, quando se acusou o Planalto de pressionar a Receita Federal para abafar investigações de supostos ilícitos. O episódio não teve desdobramentos, mas deixou registrada a vulnerabilidade do núcleo familiar. Já em agosto de 2025, a Polícia Federal encontrou um rascunho de pedido de asilo político a Javier Milei, na Argentina, vinculado a um usuário identificado como “Fernanda Bolsonaro”. Não se sabe se o texto partiu dela ou se Jair utilizou seu perfil, mas o fato é que a associação reforça a centralidade de Flávio como fiador da articulação externa do clã, estendendo sua influência até aos membros mais próximos de sua esfera pessoal.

O cenário externo ampliou ainda mais a pressão em agosto de 2025, quando os Estados Unidos deslocaram navios de guerra para o Caribe, sob pretexto de combater o narcotráfico e cercar a Venezuela. O movimento, que reproduz padrões históricos de intervenção na região, serviu também como pano de fundo para a narrativa de Flávio. O Brasil respondeu com reforço militar em Roraima, mas o debate já havia transbordado para dentro do país. A ideia de narcoterrorismo, cultivada desde maio, encontrava agora um ambiente internacional que a legitimava, ligando a segurança nacional à geopolítica hemisférica.

Esse jogo duplo se refletiu na estratégia eleitoral de Flávio. No lugar de disputar diretamente a Presidência, ele se coloca como fiador da construção de uma bancada robusta no Senado, capaz de sustentar qualquer governo de direita que venha a se consolidar. Pesquisas já o apontam como favorito no Rio em 2026, e seu projeto declarado é eleger dois senadores aliados em cada estado, ampliando a influência legislativa do bolsonarismo. Ao mesmo tempo, ele nacionaliza a pauta do narcoterrorismo, apresentando-se como defensor da ordem e da cooperação internacional contra o crime. É, em essência, uma tentativa de transformar o capital eleitoral da segurança pública em poder institucional para o clã.

O passado de Flávio permanece como sombra. Ele carrega o histórico de acusações de corrupção e vínculos com milícias, superado por vitórias processuais que foram narradas como perseguição política. Essa narrativa fortalece sua base e legitima sua permanência, mas não apaga os riscos. Ao alinhar-se explicitamente com Washington contra o governo brasileiro, Flávio torna-se símbolo da tensão entre soberania nacional e ingerência externa. Sua força política depende de sustentar esse fio delicado: falar a língua do eleitorado conservador, negociar com o establishment e, ao mesmo tempo, se apresentar como peça indispensável de uma rede internacional de extrema direita.

O futuro imediato revela três frentes a monitorar. A primeira é legislativa, com tentativas de expandir a Lei Antiterrorismo para incluir o crime organizado. A segunda é diplomática, marcada por novas iniciativas de paradiplomacia de segurança e entrega de relatórios a Washington. A terceira é geopolítica, em torno da presença militar dos EUA no Caribe e da pressão por reclassificação de facções. Juntas, essas engrenagens projetam 2026 como o palco em que Flávio Bolsonaro emerge, não necessariamente como candidato, mas como operador central de um projeto que se sustenta na interseção entre política doméstica e redes internacionais de extrema direita.

É nesse contraste que se revela a diferença dentro da própria herança bolsonarista: enquanto Flávio avança na sombra com costuras silenciosas, os demais herdeiros se consomem em ruínas. Tarcísio arde no fogo cruzado de áudios e postagens, Eduardo caminha para a prisão, Carlos se perde em surtos digitais, Michelle é motor de divisões no PL, e Renan trafega entre a irrelevância e a caricatura. A herança política de Jair se mostra menos como continuidade e mais como disputa de escombros.

Flávio, o funcional

Nesse cenário de desgaste e contradições, Flávio Bolsonaro surge como o mais funcional, não por brilho próprio, mas pela frieza com que soube operar. Ao mesmo tempo em que preservou distância dos barracos familiares, alinhou-se ao trumpismo e lançou a narrativa de que facções brasileiras poderiam ser reclassificadas como grupos terroristas. Essa chave discursiva, aparentemente técnica, foi um gesto político de largo alcance: abriu espaço para que, quando os EUA deslocassem navios para o Caribe, houvesse um pretexto já pronto que vinculava a violência no Brasil a uma agenda hemisférica de narcoterrorismo.

Flávio não comandou tropas nem decretou a ingerência, mas costurou a moldura para que ela fosse possível. Transformou a segurança pública do Rio em ensaio de paradiplomacia e testou até onde o bolsonarismo poderia levar a soberania brasileira ao limite da tutela estrangeira. A diferença é que, ao contrário dos irmãos histriônicos, Flávio aprendeu a agir em silêncio. Passa abaixo do radar, mas o fio que conduziu entre Washington e Brasília prova que não se trata de encenação. O Zero Um carrega consigo a marca das ligações incômodas com milicianos no Rio de Janeiro, expostas no caso Queiroz, nas rachadinhas e até no episódio pitoresco da “loja de chocolates” que tentou usar como cortina de fumaça. A maneira como atravessou esse escândalo o ensinou a operar com cautela, a se esconder sob uma aparência de normalidade e a transformar vulnerabilidade em aprendizado político. Não repetiu o erro dos irmãos, que fazem barulho e atraem investigações. Sua postura discreta foi moldada nesse laboratório de sobrevivência, onde até o desmaio no meio de uma entrevista virou símbolo de um personagem que se faz de coadjuvante para não ser o alvo.

Tal como naquele dia no plenário, em que um simples cumprimento ao garçom e a cordialidade com uma colega petista contrastou com o tumulto radicalizado por sua própria família, Flávio Bolsonaro segue operando no detalhe, no gesto lateral, onde quase ninguém presta atenção. E é justamente aí, nesse território da discrição, que ele constrói sua força silenciosa e se torna o mais perigoso dos herdeiros.

A pesquisa Genial/Quaest, realizada entre 13 e 17 de agosto de 2025, com 12.150 entrevistas presenciais e margem de erro de dois pontos percentuais, mostra que Flávio Bolsonaro surge como herdeiro político do pai, mas não consegue transformar essa posição em força consolidada. Ele aparece com algo entre 8% e 12% das intenções de voto no primeiro turno, desempenho relevante, mas distante da liderança. No segundo turno, perde para Lula por larga margem, reflexo de sua rejeição elevada, que chega a 60%. Comparado aos irmãos, Flávio é o mais competitivo, mas ainda fica atrás de Michele Bolsonaro, que alcança índices semelhantes ou superiores e tem rejeição menor. Já Eduardo aparece abaixo de 5% e Carlos não atinge 1%. O levantamento indica que Flávio é inevitável como nome da direita caso Jair não dispute, porém não garante competitividade suficiente para vencer fora do núcleo bolsonarista. Registro da pesquisa: TSE BR-02850/2025.

 
 
 

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