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A Nova Doutrina Monroe: Como Trump Reativa a guerra nas Américas

  • Foto do escritor: Rey Aragon
    Rey Aragon
  • há 7 horas
  • 27 min de leitura

Sob o pretexto de combater o narcotráfico, os Estados Unidos deslocam seu eixo estratégico para a América Latina, transformando o Caribe e a Venezuela em teatros de coerção militar e jurídica — enquanto a China consolida sua influência econômica e o Brasil se torna alvo potencial da diplomacia do medo.


Trump volta ao poder prometendo paz, mas prepara o continente para um novo tipo de guerra. Com a Ucrânia nas costas da Europa e o Irã fora do radar, Washington reativa a velha Doutrina Monroe em versão algorítmica: sanções, lawfare, força naval e narrativas de “narcoterrorismo” pavimentam o terreno para intervenções no quintal que tenta se libertar.

A América Latina volta ao centro do tabuleiro — e o Brasil precisa decidir se será colônia de novo ou protagonista de sua própria soberania.

O novo mapa do poder



Nas primeiras semanas de outubro de 2025, a América Latina atravessa uma guinada geopolítica em silêncio ruidoso: enquanto a Europa digere o ônus da guerra na Ucrânia, os Estados Unidos redesenham o tabuleiro no Caribe e no Atlântico Sul. Em alto-mar, embarcações suspeitas são atacadas com letalidade, sob a bandeira do combate ao narcotráfico — operações que estendem os tentáculos da lei americana sobre águas limítrofes à Venezuela. No Conselho de Segurança da ONU, vozes do mundo inteiro expressam alarme diante do que chamam de “intervenção dissimulada”.


Ao mesmo tempo, na esfera financeira e judicial, a disputa por CITGO — refinaria estratégica da Venezuela nos EUA — avança em tribunais de Delaware. Sanções e designações judiciais mantêm Caracas sob cerco, enquanto o Tesouro concede licenças temporárias que, na prática, condicionam o controle de ativos venezuelanos. E, como se não bastasse, Washington dobrou a recompensa por Nicolás Maduro, sinalizando que o punho coercitivo do “narcoterrorismo” está mais vigilante do que nunca.


Esse é o ponto de intersecção de três vetores transformadores: a descentralização do custo europeu da guerra (empurrado para UE/OTAN), a centralização coercitiva no mundo latino-caribenho — com a Venezuela no epicentro — e o uso renovado de arcabouços jurídicos para invadir limites de soberania nacional com pretextos antinarcóticos. É sobre essa nova cartografia de poder que este continente vive uma dança de sombras — e que este artigo vai desvendar, seção por seção, com os fios que conectam o Caribe militarizado, os trilhos chineses e o “fardo latino” que Washington não abriu mão.

A tese central — O deslocamento de Trump 2.0



Quando Donald Trump retornou à Casa Branca em janeiro de 2025, o mundo já não era o mesmo — e o império norte-americano tampouco. A guerra na Ucrânia transformara-se num buraco negro de recursos, e a China consolidava sua influência silenciosa sobre os portos, ferrovias e cadeias logísticas do Sul Global. Diante desse cenário, a administração Trump executou uma manobra clássica das potências em declínio: recuar das frentes distantes e recentrar o poder sobre o próprio hemisfério.


O que Trump chama de “nova doutrina de segurança” nada mais é do que a reedição modernizada da Doutrina Monroe, embalada pelo discurso de combate ao narcotráfico. Sob a fachada do pragmatismo pacifista, os Estados Unidos terceirizaram a guerra europeia para a OTAN, transformando-a num ônus político e financeiro da União Europeia, e voltaram-se com força total para a América Latina. A prioridade passou a ser clara: recuperar o controle das antigas zonas de influência e impedir que a China, a Rússia e os BRICS consolidem sua presença no continente.


Essa reorientação estratégica tem nome e data: Executive Order 14157, assinada em janeiro de 2025. O decreto cria uma nova moldura legal que permite aos EUA designar cartéis, facções e redes criminais como “organizações terroristas”. Essa simples mudança semântica amplia exponencialmente o alcance da jurisdição americana, abrindo espaço para operações militares, sanções financeiras e intervenções extraterritoriais sob o argumento de combate ao “narcoterrorismo”. É o tipo de ferramenta jurídica que transforma qualquer país em território potencial de intervenção.


Ao mesmo tempo, o Comando Sul (SOUTHCOM) foi reconfigurado como epicentro da nova doutrina. O Caribe passou a ser o palco experimental de operações de “interdição letal” contra embarcações supostamente ligadas ao tráfico. Sob o manto da legalidade americana, fragatas e drones atuam em águas próximas à Venezuela, projetando força e intimidando vizinhos. Trata-se de um poder que se afirma sem precisar declarar guerra: basta redefinir o inimigo e expandir o conceito de ameaça.


O cálculo de Trump é duplo. No plano externo, ele retoma o controle narrativo de que os EUA ainda são o árbitro da ordem hemisférica. No plano interno, transforma a “guerra aos cartéis” em ativo político, reforçando o discurso nacionalista e securitário que sustenta sua base. É a política externa convertida em espetáculo doméstico, onde cada operação no Caribe serve de combustível para o populismo militarizado que o elegeu.


Por trás da retórica, o objetivo é mais simples — e mais perigoso. A América Latina tornou-se a última fronteira de poder real dos Estados Unidos, a zona de contenção que resta a um império em declínio. Ao empurrar a guerra da Ucrânia para a Europa e recuar do Oriente Médio, Washington libera recursos e foco para o “reconhecimento de terreno” no seu antigo quintal.

A Venezuela é o laboratório. O Equador, o ensaio político. A Colômbia, o aviso. E o Brasil, o prêmio de longo prazo.


O mundo presencia, portanto, a metamorfose da hegemonia americana: um império que já não domina por consenso, mas por controle — jurídico, financeiro e informacional. A doutrina Trump 2.0 não se define pela guerra aberta, mas pela guerra contínua, feita de sanções, leis, drones e narrativas.

Um império que se retrai, mas não se resigna.

E que, para preservar sua supremacia, transformou a América Latina no novo campo de batalha da soberania.

A engrenagem jurídica de 2025



A nova fase da ofensiva norte-americana sobre a América Latina não começou com movimentações de tropas, mas com uma canetada. Em janeiro de 2025, Donald Trump assinou a Executive Order 14157, um decreto que redefine os fundamentos legais da política externa dos Estados Unidos e cria o instrumento perfeito para o expansionismo jurídico do império. A medida permite que o governo americano classifique cartéis, facções e redes criminosas como “organizações terroristas estrangeiras”, equiparando o narcotráfico ao terrorismo internacional. Sob o pretexto de combater o crime transnacional, o que se inaugura é uma nova etapa da velha doutrina de controle: a legalização da ingerência.


O gesto é aparentemente técnico, mas carrega implicações profundas. Ao transformar cartéis em terroristas, Washington passa a ter jurisdição universal para agir em qualquer território sob a justificativa de autodefesa e proteção hemisférica. É o mesmo raciocínio que permitiu a guerra ao terror nos anos 2000, agora adaptado para o entorno latino-americano. O inimigo muda de nome, mas o método permanece o mesmo: criar uma ameaça difusa, ampliar os limites do direito internacional e operar sem autorização de ninguém. O conceito de soberania nacional se dissolve quando o poder que define o inimigo é o mesmo que o combate.


Por trás desse decreto, há uma arquitetura legal meticulosamente construída ao longo de décadas. A IEEPA (International Emergency Economic Powers Act) autoriza bloqueios de ativos e sanções contra qualquer pessoa ou governo considerado uma ameaça aos “interesses americanos”. O Kingpin Act, de 1999, permite congelar bens e proibir transações financeiras de indivíduos supostamente ligados ao tráfico. Já o MDLEA (Maritime Drug Law Enforcement Act) concede à Guarda Costeira e à Marinha o direito de interceptar embarcações “suspeitas” em águas internacionais, mesmo sem vínculo com os Estados Unidos. Com esses três pilares, o império criou um corpo jurídico paralelo, capaz de agir fora das fronteiras e acima das normas multilaterais.


Essa engrenagem opera com precisão cirúrgica porque substitui a guerra aberta pelo lawfare. Em vez de invasões, o império aplica sanções; em vez de tropas, usa tribunais; em vez de fuzis, manipula narrativas legais e financeiras. O direito, que deveria limitar o poder, é convertido em arma de poder. A lei se torna o campo de batalha onde se disputam recursos, influência e legitimidade. O novo belicismo norte-americano não precisa de tanques — basta uma assinatura presidencial e um parágrafo ambíguo no Federal Register.


A retórica que sustenta esse sistema é igualmente estratégica. Expressões como “ameaça híbrida”, “crime transnacional” e “cooperação hemisférica” são repetidas nos discursos do Departamento de Estado como mantras morais. Por trás dessas palavras está a lógica de que a segurança substituiu a soberania como eixo da política internacional. A narrativa é simples e eficaz: quem questiona a autoridade dos Estados Unidos não está apenas discordando de uma potência — está ameaçando a segurança global. Esse raciocínio transforma o império em juiz, júri e executor das próprias causas.


Desde 2020, a Venezuela é o principal laboratório dessa doutrina, com sanções econômicas, bloqueios de ativos e o cerco sobre a estatal PDVSA. Mas agora a engrenagem se expande. O Equador se aproxima da linha de subordinação ao firmar acordos militares e permitir bases estrangeiras em seu território; a Colômbia é punida com a retirada do selo de “combate exemplar ao narcotráfico”; e o Brasil é observado à distância, testado por discursos internos que flertam com a tipificação de facções como grupos terroristas. Tudo faz parte de uma mesma lógica: abrir precedentes jurídicos para transformar soberanias nacionais em zonas de operação do império.


A Executive Order 14157 é, portanto, o novo rosto do expansionismo norte-americano. Ela inaugura um modelo de guerra sem guerra — uma guerra de decretos, de narrativas e de códigos. A arma não é o míssil, mas a minuta; não é a tropa, mas o dispositivo legal que autoriza a exceção permanente. No século XXI, os Estados Unidos já não precisam invadir para controlar: basta legislar sobre o território dos outros.

O teatro Caribe–Venezuela: soberania sob cerco



O Caribe tornou-se, em 2025, o epicentro silencioso da nova guerra de baixa intensidade travada pelos Estados Unidos. As águas que separam a Flórida da costa venezuelana abrigam hoje um tabuleiro de forças navais, drones de vigilância e operações que se autodeclaram “antinarcóticas”, mas que na prática configuram um cerco militar informal. O Comando Sul (SOUTHCOM), reestruturado pela administração Trump, transformou a retórica do combate ao tráfico em doutrina de controle regional. Não há tanques cruzando fronteiras, mas há fragatas norte-americanas patrulhando zonas marítimas estratégicas, interceptando embarcações, realizando operações letais e recolhendo informações em tempo real sob o argumento de que “ameaças difusas exigem respostas imediatas”.


Essas ações são juridicamente sustentadas pela MDLEA e pela nova EO 14157, que conferem à Marinha americana autoridade para intervir em águas internacionais contra alvos “não identificados” ligados ao tráfico de drogas. Na prática, isso significa que qualquer navio civil próximo à costa venezuelana pode ser abordado, e seus tripulantes, detidos, sob jurisdição dos Estados Unidos. A operação mais recente, ocorrida no início de outubro, resultou na destruição de quatro embarcações e na morte de mais de vinte tripulantes — um episódio que motivou protestos formais de Caracas e críticas no Conselho de Segurança da ONU. Washington classificou o incidente como “legítima defesa preventiva”, um conceito que o direito internacional ainda tenta decifrar.


A Venezuela está no centro desse jogo porque representa, para o império, o símbolo e o obstáculo. É o último Estado da América Latina que mantém uma política externa autônoma, alianças consistentes com Rússia, China e Irã, e uma das maiores reservas de petróleo do planeta. Sua simples existência como projeto político soberano é intolerável para a doutrina de contenção americana. Por isso, o país é submetido a um cerco multifacetado: militar no mar, financeiro nos tribunais e informacional na mídia internacional. A disputa judicial sobre a CITGO, refinaria venezuelana nos Estados Unidos, é apenas a face visível de uma estratégia mais ampla de asfixia. A cada rodada no tribunal de Delaware, a Venezuela perde um pedaço de seu patrimônio sob o pretexto de “indenizar credores internacionais” — um eufemismo jurídico para o confisco de ativos.


A dimensão simbólica desse cerco é igualmente decisiva. O discurso oficial norte-americano descreve a Venezuela como “Estado narcoterrorista” e seu governo como “organização criminosa”. Essa narrativa não busca apenas deslegitimar Maduro; ela serve de aviso a todos os países que tentem seguir caminhos próprios fora da órbita de Washington. O mesmo léxico aplicado ao Oriente Médio durante a “guerra ao terror” agora é usado para moldar a percepção pública do Caribe e da América do Sul. Ao criminalizar um governo inteiro, os Estados Unidos fabricam o consenso moral necessário para intervir sem chamar de intervenção.


Enquanto isso, a presença militar se expande de forma gradual e constante. Satélites de observação, radares embarcados e drones de vigilância operam em sincronia com unidades navais de aliados regionais. Em discursos recentes, oficiais do SOUTHCOM afirmaram que “a luta contra o narcotráfico é uma luta pela democracia hemisférica”. Na prática, é o mesmo argumento usado durante a Guerra Fria para justificar golpes e bloqueios: proteger a liberdade transformando-a em monopólio. A retórica da segurança, que deveria proteger os povos, é hoje a principal ferramenta para submeter suas soberanias.


O resultado é um paradoxo histórico. O país que durante décadas foi demonizado por “ameaçar a estabilidade regional” tornou-se, pela força dos fatos, o campo de prova da expansão extraterritorial americana. Cada embarcação abatida no Caribe, cada sanção aprovada pela OFAC, cada decisão judicial em Delaware reforça a tese de que o império abandonou a diplomacia e abraçou o lawfare como substituto da política. A Venezuela é a linha de frente de um experimento geopolítico que vai muito além de suas fronteiras: um ensaio para medir até onde o direito internacional pode ser dobrado antes de se romper.


O cerco, portanto, não é apenas físico. É jurídico, econômico, narrativo e simbólico. O que está em disputa não é apenas o petróleo venezuelano, mas a possibilidade de qualquer país latino-americano manter um projeto de desenvolvimento soberano fora das regras de Washington. A ofensiva contra Caracas é um aviso de que o império ainda se considera o árbitro das margens do hemisfério — e está disposto a provar isso, mesmo que precise incendiar o Caribe para manter as aparências de paz.

Equador – o laboratório da securitização e da ingerência



O Equador tornou-se, em 2025, o caso mais visível do novo modelo de dependência política promovido pelos Estados Unidos na América Latina. Após anos de instabilidade e crises sucessivas, o governo de Daniel Noboa transformou o país em um experimento de securitização total, combinando austeridade econômica, expansão militar interna e reaproximação acelerada com Washington. O discurso oficial fala em “combater o narcotráfico” e “restaurar a ordem”, mas a prática revela uma engenharia política de subordinação. O que se ensaia em território equatoriano é a transformação da segurança nacional em moeda de troca diplomática — e da soberania em concessão temporária.


O ponto de inflexão ocorreu no início de 2024, quando Noboa firmou com os Estados Unidos uma série de acordos militares e de cooperação em segurança que reabriram as portas para a presença direta de pessoal norte-americano em território equatoriano. Esses tratados, consolidados em um Status of Forces Agreement (SOFA), concedem imunidade jurídica a agentes estrangeiros e flexibilizam o controle do Estado sobre operações conjuntas. Em 2025, a Assembleia Nacional aprovou uma reforma constitucional permitindo a instalação de bases militares estrangeiras, medida que será referendada em consulta popular marcada para novembro. Sob o pretexto da “guerra contra o narcotráfico”, o país volta a aceitar tropas de um exército estrangeiro que há mais de uma década havia sido expulso da base de Manta.


Esse retorno da presença militar coincide com uma crise social sem precedentes. A explosão de protestos contra o fim dos subsídios ao diesel, o aumento do custo de vida e o desemprego levou o governo a decretar estado de emergência em dez províncias. As forças armadas passaram a patrulhar as ruas, e as prisões se multiplicaram em meio a denúncias de abusos e torturas. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos anunciaram um novo acordo de compartilhamento de dados e biometria para “enfrentar o crime transnacional”. Na prática, o que se estabelece é uma rede de vigilância mútua que conecta as agências de segurança equatorianas ao aparato norte-americano de inteligência, transformando o país em mais um nó da teia global de monitoramento do império.


O discurso oficial dos dois governos pinta esse processo como um avanço civilizatório. Noboa fala em “restaurar a confiança internacional”, e Washington o descreve como “parceiro confiável na luta contra o narcotráfico”. No entanto, a semântica do elogio encobre o significado real da operação: o Equador converte-se em base avançada de dissuasão regional, uma plataforma estratégica entre o Pacífico e a Amazônia para conter a influência econômica e política da China e do BRICS. Cada passo dado sob o signo da segurança é, na verdade, um passo em direção à dependência. Cada tratado assinado reforça o modelo de soberania delegada, em que a defesa do território nacional é terceirizada a potências estrangeiras.


A crise equatoriana também cumpre uma função pedagógica. Ela serve como advertência aos países que resistem à doutrina norte-americana: quem não se submete pela economia, submete-se pela segurança. A austeridade imposta pelo FMI, o aumento da dívida externa e a fragilização das instituições democráticas criam o terreno fértil para que o discurso securitário se imponha como inevitável. O medo do crime substitui o debate sobre desigualdade, e a militarização torna-se a solução para todos os problemas. Assim, o colapso social é convertido em justificativa para o controle externo.


Ao olhar o Equador de 2025, é possível enxergar o laboratório de um novo tipo de intervenção: mais discreta, mais burocrática e mais eficaz. Não há invasão, não há tanques nas ruas, não há discursos triunfais. Há apenas decretos, memorandos e cláusulas escondidas em tratados de “cooperação técnica”. O resultado é o mesmo de sempre — um país soberano transformado em enclave estratégico. A diferença é que agora a ocupação se faz com o consentimento dos governantes locais, e com o aplauso de quem acredita estar sendo protegido.


O Equador é o espelho de um projeto maior: o da América Latina securitizada, governada pelo medo e monitorada pela tecnologia. O império já não precisa ocupar para dominar; basta oferecer proteção a quem teme o caos.

Colômbia – a descertificação e o aviso ao continente



A Colômbia sempre foi o principal laboratório da política antidrogas dos Estados Unidos. Durante décadas, recebeu bilhões de dólares em assistência militar, equipamentos, inteligência e treinamento sob a bandeira do Plano Colômbia, que transformou o país em vitrine do intervencionismo legalizado. Mas em setembro de 2025, pela primeira vez em três décadas, o Departamento de Estado anunciou que Bogotá havia sido “descertificada” — ou seja, declarada incapaz de cumprir suas “obrigações de combate ao narcotráfico”. O gesto, mais do que uma sanção técnica, foi um ato simbólico: o império retirava o selo de fidelidade do seu mais fiel aliado na região.


A justificativa oficial soou vaga, quase burocrática. Washington alegou “falta de resultados consistentes” e “retrocesso nas políticas de erradicação”. Na prática, porém, a decisão foi um recado político ao governo de Gustavo Petro, que desde 2022 tenta reformular a política antidrogas com base em direitos humanos e redução de danos, rompendo com o paradigma punitivista que os Estados Unidos exportaram para o mundo. A descertificação é o preço pela tentativa de autonomia. Petro ousou propor o que os organismos internacionais já reconhecem há anos: que a guerra às drogas fracassou. E por isso foi punido.


A consequência imediata foi o congelamento de linhas de cooperação e a suspensão de parte da assistência financeira americana. Mas o impacto mais profundo é simbólico: a Colômbia deixou de ser o bom aluno do império e passou a ser o exemplo disciplinado pela insubordinação. Essa é a verdadeira função da “certificação antidrogas”: um mecanismo de controle diplomático disfarçado de política pública. Quando Washington concede o selo, recompensa a submissão; quando retira, sinaliza ao continente o custo da independência.


O gesto também tem um efeito pedagógico. Em meio à expansão da influência chinesa e à aproximação da Colômbia com fóruns regionais autônomos, a descertificação serve como aviso aos demais: nenhum país está imune ao poder corretivo da burocracia americana. É a diplomacia do castigo, praticada sem necessidade de intervenção militar. Um simples comunicado do Departamento de Estado pode rebaixar a credibilidade de um governo e pressionar seus mercados, seus financiadores e suas elites. O império não precisa mais ocupar o território — basta retirar o carimbo de confiança.


A ironia histórica é cruel. O país que mais sacrificou vidas em nome da aliança antidrogas agora é punido pelo mesmo discurso que ajudou a construir. O modelo de obediência se tornou obsoleto: a Colômbia, antes paradigma, tornou-se exceção. Petro tenta equilibrar soberania e pragmatismo, abrindo diálogo com a Venezuela e se aproximando de agendas ambientais e sociais alinhadas ao BRICS. Washington reage como sempre: rotulando o gesto de “ameaça à estabilidade regional”.


A descertificação, portanto, não é um episódio isolado, mas uma peça de um tabuleiro maior. Enquanto o Equador se submete pela via da segurança e a Argentina pela via militar-financeira, a Colômbia é punida pela via moral, para restabelecer a hierarquia hemisférica. O recado é claro: os Estados Unidos toleram governos progressistas desde que obedeçam; o problema começa quando tentam pensar com cabeça própria.


O que está em curso é um processo de reordenação disciplinar da América Latina. Cada país recebe a lição que o império considera necessária. No caso colombiano, a mensagem é particularmente simbólica: mesmo quem serviu por décadas pode ser descartado se ousar reinterpretar a doutrina. O selo de “parceiro confiável” nunca foi sobre drogas — sempre foi sobre obediência. E, quando a obediência vacila, o selo é revogado.

Argentina – o alinhamento de alta intensidade



Entre todos os governos latino-americanos de 2025, nenhum abraçou tão abertamente a agenda norte-americana quanto o de Javier Milei. Desde sua posse, o presidente argentino transformou o país em um modelo de alinhamento total: ideológico, militar, econômico e simbólico. Sob a retórica da liberdade de mercado e do anticomunismo visceral, Milei não apenas rompeu com a tradição diplomática de equilíbrio regional, mas também entregou à Casa Branca um raro ativo político: um aliado incondicional no Cone Sul, disposto a abrir mão de soberania em nome de prestígio internacional.


O movimento começou de forma acelerada. Em abril de 2024, a Argentina formalizou o pedido para se tornar “parceiro global da OTAN”, um gesto inédito para um país sul-americano. Poucos meses depois, em maio, o governo autorizou exercícios navais conjuntos com o porta-aviões USS George Washington e anunciou a compra de caças F-16 de fabricação norte-americana, substituindo o acordo anterior com a China. Em 2025, o ritmo se intensificou: o decreto presidencial DNU 697/2025 autorizou a entrada de tropas estrangeiras no território argentino para os exercícios “Tridente”, realizados em Mar del Plata, Puerto Belgrano e Ushuaia, com a participação direta de fuzileiros navais dos Estados Unidos e de aliados da OTAN. Pela primeira vez desde a ditadura, militares norte-americanos voltaram a pisar oficialmente em solo argentino com status diplomático.


A justificativa de Milei foi previsível: “reforçar a integração hemisférica na luta contra o crime e o terrorismo”. Mas o contexto revela outro propósito. O governo buscava reconstruir sua credibilidade internacional após o colapso econômico interno, e encontrou nos Estados Unidos o fiador ideal. Em troca da abertura militar, Washington recompensou Buenos Aires com apoio financeiro direto: um pacote de estabilização cambial, swap de US$ 20 bilhões e promessas de investimentos privados em energia e mineração. Cada dólar de ajuda trazia embutida uma cláusula política — a Argentina se tornava o novo “posto avançado” da política de contenção americana no Cone Sul.


A subordinação foi além da defesa. No plano diplomático, Milei alinhou-se com a agenda global dos Estados Unidos e de Israel, reproduzindo discursos de confronto ideológico e atacando abertamente organismos multilaterais que defendem a autodeterminação dos povos. Internamente, passou a usar a retórica do “inimigo interno” para justificar cortes sociais e repressão a protestos. A narrativa da liberdade transformou-se, assim, em instrumento de controle: o liberalismo econômico como fachada de autoritarismo político.


No campo simbólico, o gesto mais emblemático foi a aproximação pessoal de Milei com Trump. O presidente argentino se apresenta como herdeiro direto da “revolução conservadora” americana, citando o ex-presidente dos EUA em discursos e replicando sua estética política — o populismo performático travestido de antiestablishment. Essa simbiose ideológica cria uma aliança que vai além dos acordos formais: é uma afinidade de método. Ambos governam pelo choque, pela negação do consenso e pela teatralização da política como espetáculo.


A Argentina de 2025 é, portanto, a antítese da soberania latino-americana. Ao abrir suas bases, suas finanças e sua diplomacia, o país assume o papel de satélite consentido do império, renunciando à autonomia estratégica que caracterizou sua política externa por décadas. O resultado é um paradoxo histórico: o mesmo país que, nos anos 2000, integrou a frente sul-americana contra a ALCA agora se coloca como corredor logístico para a presença militar da OTAN no Atlântico Sul.


Para os Estados Unidos, o alinhamento argentino cumpre uma função dupla. De um lado, projeta poder sobre a região e pressiona o Brasil — único ator com peso geopolítico suficiente para resistir. De outro, cria um símbolo de sucesso para a doutrina trumpista na América do Sul: a ideia de que é possível desmontar o Estado, privatizar o território e ainda chamar isso de soberania. Milei é, nesse sentido, o embaixador perfeito do novo imperialismo.


A Argentina converteu-se em uma vitrine. Um país transformado em laboratório de austeridade e obediência, onde a ideologia de mercado serve de disfarce para a dependência total. O alinhamento de alta intensidade não é apenas diplomático; é estrutural. E, como toda vitrine, sua função é pedagógica: mostrar ao continente o destino reservado àqueles que trocam soberania por aplausos.

O eixo China–BRICS: portos, trilhos e o novo campo gravitacional da soberania



Enquanto os Estados Unidos recorrem à força e ao lawfare para preservar sua influência, a China consolida seu poder na América Latina pela via oposta: a da infraestrutura, do comércio e da interdependência material. Pequim não precisa de bases militares, nem de decretos extraterritoriais. Sua presença se mede em quilômetros de ferrovia, cabos de fibra óptica e portos de águas profundas. Em 2025, esse processo atingiu um ponto de maturidade geopolítica: a América Latina tornou-se um dos vetores mais dinâmicos da Nova Rota da Seda, e o BRICS, ampliado e reorganizado, consolidou-se como alternativa sistêmica ao eixo atlântico.


O símbolo mais evidente dessa transformação é o porto de Chancay, no Peru, que deve iniciar operações plenas até o fim de 2025. Construído com investimento majoritário da empresa estatal chinesa COSCO Shipping, Chancay permitirá o trânsito direto de mercadorias entre a América do Sul e a Ásia, reduzindo em mais de duas semanas o tempo de transporte marítimo até Xangai. Não é apenas um empreendimento logístico — é uma declaração de época. Pela primeira vez, o Pacífico latino-americano se integra a um circuito comercial fora da dependência atlântica. O mapa do poder global começa a se dobrar em novas linhas de gravidade.


Mas Chancay é apenas o início de um desenho mais amplo. O projeto da ferrovia bioceânica Brasil–Peru, que voltou à pauta com o apoio dos governos do Brasil, Bolívia e China, representa a espinha dorsal dessa integração. Se concluída, ligará o coração produtivo do continente — o Centro-Oeste brasileiro — ao Pacífico, criando um corredor logístico que atravessa a Amazônia e conecta diretamente a economia sul-americana ao mercado asiático. Para Washington, esse corredor é uma ameaça estratégica: ele quebra o monopólio histórico das rotas atlânticas e desloca o eixo econômico do continente para o oriente. O controle dos fluxos, mais do que o controle dos territórios, é o que define o poder no século XXI.


A influência chinesa vai muito além da infraestrutura física. Em 2025, a China consolidou-se como principal parceiro comercial de 21 países latino-americanos, incluindo Brasil, Chile, Peru e Uruguai. Seu investimento direto estrangeiro ultrapassa os US$ 160 bilhões, com foco em energia, mineração, telecomunicações e portos. O Banco dos BRICS, presidido por Dilma Rousseff, expandiu linhas de crédito para obras de integração e desenvolvimento tecnológico, enquanto o comércio em moedas locais — yuan e real — começa a reduzir a dependência do dólar. É uma reconfiguração silenciosa, mas profunda: o deslocamento gradual do centro de gravidade financeiro e produtivo da região.


A reação dos Estados Unidos é de inquietação e contradição. Incapaz de competir em escala produtiva, Washington responde com mecanismos de contenção: pressões diplomáticas, sanções seletivas, campanhas de desinformação e a retórica do “risco chinês”. Cada porto inaugurado é tratado como uma ameaça, cada contrato tecnológico é visto como infiltração. A ofensiva discursiva contra a Huawei, contra os satélites de cooperação espacial e contra o uso de moedas alternativas ao dólar revela o temor de que a América Latina escape do circuito de dependência que a mantém submissa há mais de um século.


No plano simbólico, essa disputa é mais que econômica — é civilizacional. De um lado, o império decadente que opera pelo medo e pela coerção; do outro, uma potência que se expande pela lógica da infraestrutura e da reciprocidade econômica. É uma disputa entre a força e a oferta. E, no meio, os países latino-americanos tentam equilibrar pragmatismo e soberania, oscilando entre dois modelos de futuro: o da subordinação atlântica e o da integração multipolar.


O eixo China–BRICS não é um bloco ideológico, mas um projeto de autonomia estratégica. Ele reabre a possibilidade histórica de a América Latina se conectar ao mundo sem precisar atravessar Washington. A integração portuária e ferroviária, a cooperação tecnológica e o comércio em moedas locais não são apenas mecanismos econômicos — são instrumentos de emancipação política. Por isso, a ofensiva americana sobre o continente deve ser lida também como reação a essa nova geometria. Quanto mais a região se integra ao Sul Global, mais o Norte reage com coerção.


Em 2025, a América Latina vive uma encruzilhada histórica. De um lado, o império que transforma leis em armas; de outro, o parceiro que transforma obras em alianças. Entre a coerção e a cooperação, o continente precisa escolher o tipo de dependência que está disposto a suportar — ou, talvez, pela primeira vez em dois séculos, decidir não depender de ninguém.

O mapa das correlações de força – soberanistas, entreguistas e híbridos



Em 2025, a América Latina voltou a se dividir em campos de força nítidos. O continente tornou-se um tabuleiro de tensões entre duas racionalidades antagônicas: de um lado, os governos que ainda defendem a autodeterminação dos povos e buscam uma inserção soberana no sistema internacional; de outro, os regimes que abraçaram a dependência como destino, oferecendo seus territórios e políticas ao controle geopolítico dos Estados Unidos. Entre esses polos, um grupo de países transita em ambiguidade — ora resistindo, ora cedendo — compondo o que pode ser chamado de zona híbrida da nova ordem hemisférica.


No primeiro campo estão os soberanistas, liderados pelo Brasil, pela Venezuela e pela Bolívia, com apoio progressivo de México, Cuba e Nicarágua. Esse bloco mantém, com diferentes intensidades, uma agenda de integração regional e de aproximação com o eixo China–BRICS. No caso do Brasil, a política externa de Lula volta a assumir o papel de mediadora global, defendendo uma multipolaridade pragmática e denunciando o neocolonialismo financeiro. A Venezuela, apesar do cerco, mantém sua linha de independência estratégica e sobrevive à guerra híbrida combinando alianças energéticas com China e Irã. A Bolívia, sob o governo do MAS, continua a resistir à pressão sobre o lítio e investe em projetos regionais de industrialização. Esses países compartilham uma convicção comum: a soberania não é um tema retórico, mas uma condição de sobrevivência.


No extremo oposto estão os entreguistas, liderados pela Argentina de Milei e acompanhados por Paraguai, Uruguai e, em certa medida, o Equador de Noboa. São governos que adotaram o modelo de submissão estratégica como projeto de poder. Defendem o alinhamento automático com Washington, a militarização das fronteiras e a abertura irrestrita às corporações financeiras e tecnológicas do Norte. Sob o pretexto de modernização, desmontam políticas públicas, flexibilizam legislações trabalhistas e privatizam recursos naturais. Essa entrega não se limita à economia — é também cultural e simbólica. Reproduz-se o vocabulário do império: segurança, eficiência, meritocracia, livre mercado, como se o vocabulário fosse a senha para a legitimidade internacional.


Entre os dois polos há um grupo ambíguo, o bloco híbrido, formado por governos que oscilam entre autonomia e dependência, tentando conciliar pressões externas e estabilidade interna. O Chile, por exemplo, mantém um discurso democrático e progressista, mas ainda preso a acordos de livre-comércio que o subordinam ao eixo atlântico. O Peru vive um estado permanente de transição, com governos provisórios e uma elite política cooptada por interesses mineradores estrangeiros. A Colômbia, com a política antidrogas de Petro, tenta escapar do modelo americano, mas enfrenta o castigo da descertificação. Esses países representam a zona cinzenta da geopolítica regional — espaços onde as contradições entre soberania e dependência se tornam matéria-prima da instabilidade política.


Esse mapa de forças não é estático. Ele se reorganiza a cada crise, a cada decreto, a cada nova sanção ou investimento. Quando a China inaugura um porto, o campo soberanista se fortalece. Quando os Estados Unidos anunciam uma operação militar, o campo entreguista se expande. As fronteiras ideológicas da região são elásticas, mas o vetor da disputa é constante: quem controla o fluxo de energia, dados e infraestrutura controla o destino político do continente. A batalha pelo poder na América Latina é, antes de tudo, uma disputa sobre a soberania material — quem produz, quem transporta, quem financia, quem conecta.


Por isso, o verdadeiro mapa do continente em 2025 não se desenha por ideologias, mas por graus de autonomia. A questão essencial já não é esquerda ou direita, mas dependência ou soberania. As linhas que separam os países não são fronteiras geográficas, mas fronteiras de decisão: quem decide por si e quem delega a outros. O futuro da América Latina será definido não pelos discursos, mas por quem controla os portos, os satélites, os cabos e os algoritmos. A guerra em curso não é apenas militar ou informacional — é estrutural. E o campo de batalha é o próprio conceito de independência.

Cenários preditivos – os próximos movimentos da hegemonia



O avanço dos Estados Unidos sobre a América Latina em 2025 não é um episódio passageiro, mas o início de um ciclo prolongado de disputa pela hegemonia. As tendências já delineadas permitem antecipar quatro movimentos centrais para os próximos meses — cada um com implicações diretas sobre a soberania regional e a estabilidade política do continente.


O primeiro cenário é o da escalada controlada no Caribe. A combinação entre a nova doutrina de “narcoterrorismo” e as operações navais do SOUTHCOM tende a intensificar incidentes na costa venezuelana, especialmente em torno das áreas de prospecção de petróleo e das rotas marítimas do Golfo de Paria. A probabilidade de confrontos letais é alta, mas a de guerra aberta é baixa. Washington prefere o conflito administrado, aquele que mantém a pressão sem o custo da ocupação. O objetivo é prolongar o cerco, testar os limites do direito internacional e manter a Venezuela sob vigilância permanente.


O segundo movimento projeta-se sobre o Brasil, com a expansão da narrativa do “narcoterrorismo interno”. Nos últimos meses, parlamentares de extrema-direita vêm pressionando para classificar facções criminosas como “organizações terroristas”, reproduzindo o discurso norte-americano. Se essa retórica avançar, o país pode tornar-se alvo de cooperação coercitiva — uma forma de ingerência indireta em nome da segurança regional. Esse cenário é de risco médio, mas com alto impacto simbólico: ao adotar o vocabulário do império, o Brasil abriria brechas jurídicas para futuras intervenções sob o pretexto da “guerra global contra o crime”.


O terceiro cenário é o da pressão econômica via sanções e lawfare financeiro. A OFAC, o Tesouro e o Departamento de Justiça já operam em sincronia para rastrear fluxos regionais de capital e impor penalidades a empresas ou governos considerados “tolerantes com o narcotráfico”. Essa ofensiva tende a se expandir sobre bancos e setores energéticos ligados ao comércio com a China e a Rússia. O impacto provável é o aumento da dependência financeira de organismos controlados pelos EUA, como o FMI e o BID, e o enfraquecimento de mecanismos autônomos de crédito, como o Banco dos BRICS.


O quarto cenário é o da diplomacia coercitiva institucionalizada. Os Estados Unidos deverão transformar a retórica da “segurança hemisférica” em política oficial, por meio de um pacote legislativo que reforce a EO 14157. Essa nova moldura jurídica consolidaria o poder de intervenção extraterritorial do império sob justificativas múltiplas — drogas, terrorismo, cibersegurança, energia. Trata-se de uma normalização da exceção: transformar o estado de emergência em norma permanente.


Esses quatro vetores configuram um mesmo horizonte: o da hegemonia adaptada, um modelo de dominação que dispensa invasões e substitui tanques por decretos. A guerra híbrida, antes difusa, torna-se política de Estado. E, nesse ambiente, a resistência latino-americana dependerá não de bravura retórica, mas de inteligência estratégica — a capacidade de ler os sinais, antecipar as jogadas e construir alianças antes que as peças do tabuleiro se movam.

O que fazer – agenda mínima de soberania



Em meio à ofensiva norte-americana e à reorganização das potências globais, a América Latina enfrenta um dilema histórico: reagir ou adaptar-se. A dependência não é um destino, mas o resultado da ausência de estratégia. Romper com ela exige uma agenda mínima de soberania, capaz de integrar defesa, economia, tecnologia e comunicação sob um mesmo horizonte político. Nenhum país, isoladamente, pode resistir a uma estrutura de dominação global. A resposta precisa ser coletiva, coordenada e tecnicamente sólida.


O primeiro passo é blindar juridicamente a soberania. Isso significa revisar tratados, acordos e legislações que permitem a extraterritorialidade da lei americana no território latino-americano. Cada cláusula de cooperação que autoriza inspeções, interceptações ou imunidades precisa ser reinterpretada à luz do direito internacional e dos princípios da ONU. O império opera através das brechas legais; o contra-ataque deve começar pela hermenêutica. Nenhum país é plenamente soberano se sua Constituição puder ser relativizada por um decreto estrangeiro.


O segundo passo é reconstruir a soberania econômica e financeira. A região precisa reduzir a dependência do dólar e das instituições controladas pelo eixo atlântico. Isso significa fortalecer o Banco dos BRICS, criar sistemas de compensação regionais em moedas locais, ampliar as trocas energéticas e comerciais dentro do Sul Global e recuperar o papel dos bancos públicos como motores do desenvolvimento. A soberania começa no câmbio, passa pelo crédito e termina na indústria. Enquanto a política monetária estiver subordinada aos humores de Wall Street, toda autonomia será retórica.


O terceiro eixo é o da soberania tecnológica e informacional. A guerra híbrida contemporânea é travada em redes, algoritmos e fluxos de dados. A América Latina precisa de infraestrutura digital própria, armazenamento soberano, software livre e controle público de suas comunicações estratégicas. Sem isso, a vigilância estrangeira continuará a ditar os limites da autonomia política. A defesa cibernética deve ser compreendida como parte da segurança nacional — e a comunicação pública, como parte da defesa. A soberania informacional não é um luxo intelectual: é a trincheira invisível de todas as outras soberanias.


O quarto pilar é a integração política real. O continente já produziu inúmeras siglas — Unasul, Celac, Mercosul —, mas ainda carece de uma cultura estratégica comum. A soberania latino-americana exige coordenação militar mínima, compartilhamento de inteligência, defesa conjunta de fronteiras e uma diplomacia solidária em foros multilaterais. O objetivo não é criar um bloco ideológico, mas um bloco de autoproteção — uma comunidade de destino. Sem isso, cada país continuará lutando sozinho contra o mesmo inimigo difuso e onipresente.


O último elemento é a construção de uma narrativa de futuro. Nenhum projeto soberano sobrevive se for apenas reativo. A América Latina precisa voltar a imaginar o que quer ser: uma potência civilizatória, não apenas uma fornecedora de commodities. Isso implica valorizar ciência, cultura, educação e tecnologia como dimensões da defesa nacional. O império venceu até aqui porque controlou o imaginário — transformou o medo em método. Reconstruir a soberania significa também reconstruir o desejo de autonomia.


Essa agenda não é uma utopia. É o mínimo necessário para que o continente volte a ter voz própria no século XXI. O futuro não pertence a quem tem mais armas, mas a quem controla as linguagens, os sistemas e os significados. E o maior desafio da América Latina é compreender que sua liberdade dependerá menos das fronteiras que protege e mais das narrativas que é capaz de sustentar.

O continente no ponto de virada



A América Latina está, mais uma vez, diante de uma encruzilhada histórica. Depois de dois séculos orbitando entre a esperança e a dependência, o continente volta a ser o campo de disputa entre impérios. A diferença é que, desta vez, o conflito não se dá por invasões diretas, mas por operações invisíveis, leis extraterritoriais e narrativas fabricadas. O domínio deixou de ser militar e passou a ser jurídico, informacional e financeiro. O inimigo já não ocupa territórios — ocupa linguagens, regulações e imaginários.


Os Estados Unidos entenderam que perderam o poder de definir o futuro do mundo, e tentam, portanto, definir o destino dos outros. A guerra no Caribe, o cerco à Venezuela, a manipulação da retórica do narcotráfico, as sanções e as certificações seletivas são parte de uma mesma estratégia: reafirmar a hegemonia sobre o que consideram seu quintal. Mas o tabuleiro mudou. O avanço da China, a consolidação do BRICS e a emergência de um eixo multipolar criaram uma nova física do poder. O que está em jogo já não é apenas a influência sobre territórios, mas o controle sobre as infraestruturas do século XXI — dados, energia, redes e cadeias produtivas.


O império reage porque teme o que não pode controlar. A América Latina, pela primeira vez em décadas, tem diante de si a chance de construir uma inserção soberana, apoiada em alianças horizontais e projetos comuns. Mas essa oportunidade é frágil e finita. Ela depende da coragem política de seus líderes e da maturidade dos povos para entender que a liberdade não é uma abstração moral — é uma arquitetura concreta. Ser livre, hoje, é ter cabos, satélites, fábricas, portos e algoritmos próprios. É poder decidir o que se comunica, o que se produz e o que se imagina.


O continente chega a 2025 com o mesmo dilema que o assombra desde o século XIX: continuar sendo periferia ou assumir-se como civilização. Os Estados Unidos continuam apostando no medo — o medo do caos, do crime, do inimigo invisível. Mas o medo, como toda arma imperial, perde força quando é nomeado. O verdadeiro poder nasce da consciência, e é essa consciência que começa a despertar nas ruas, nas universidades, nas redes e nas instituições. A América Latina começa a entender que não há neutralidade possível num mundo em guerra por hegemonia — há apenas soberania ou submissão.


O tempo histórico se estreita. O império joga suas últimas fichas em decretos e drones; o continente precisa apostar em projetos e ideias. O futuro não se definirá por tratados, mas por infraestruturas de autonomia — físicas, cognitivas e informacionais. A nova guerra não se vencerá com armas, mas com clareza. E é essa clareza que hoje começa a emergir nas margens do continente, onde o poder global acreditava haver apenas silêncio.


A América Latina está no ponto de virada. E, se for capaz de reconhecer em si mesma a força que o império teme, poderá fazer da resistência não um gesto de sobrevivência, mas o primeiro ato de um novo ciclo histórico: o da soberania plena.

1 comentário


Luiz Mattos
Luiz Mattos
há 4 horas

Após Venezuela será Colombia.após Colombia.....VAI ESTADISTA VAI FRAGILIZAR NOSSAS FRONTEIRAS

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